O 25 de Abril de 2017 ficará para sempre na história como o dia em que o râguebi português perdeu a sua voz. Desapareceu para sempre o mítico Cordeiro do Vale, o homem que ajudou a impulsionar, de forma decisiva, a modalidade em Portugal. Quem, nos finais dos anos 60 e inícios de 70, já se podia dar ao luxo de ter uma televisão em sua casa passava as tardes de sábado de fevereiro e março a ver, ainda a preto e branco, os jogos do Torneio das Cinco Nações, competição que juntava anualmente as quatro seleções britânicas e a França – só em 2000 se associou a Itália à prova, passando aí a ter a atual designação de Seis Nações.
O responsável direto por haver essa possibilidade chamava-se Cordeiro do Vale. Ou melhor, Serafim Marques – embora ainda hoje, muitos dos indefetíveis espetadores/ouvintes desses tempos não saibam que o nome profissional era, na verdade, um pseudónimo. Jornalista de profissão (passou pelo “Diário Popular” e pela secção de desporto da RTP, que chefiou ao longo de dezenas de anos), tinha duas enormes paixões desportivas: o atletismo e o râguebi.
Uma traição que todos perdoam
Mas era esta última a menina dos seus olhos. Foi formador, treinador e dirigente, tendo iniciado o seu percurso no Agronomia mas acabando por se tornar numa referência do CDUL, do qual foi sócio fundador, juntamente com o Engenheiro Vasco Pinto Magalhães, avô do atual presidente do clube. “É o sócio número 2 do clube e vai sê-lo para sempre. Acompanhou o clube em vários escalões, era ele quem tomava conta do CDUL. Mas a sua influência acabou por se alargar ao râguebi nacional: foi ele quem convenceu a administração da RTP a transmitir o Torneio das Cinco Nações, tornando-se no responsável por milhares de pessoas se começarem a interessar pela modalidade em Portugal”, explica ao i Lourenço Fernandes Thomaz, líder máximo do atual vice-campeão nacional.
Para Carlos Amado da Silva, ex-presidente da Federação Portuguesa de Râguebi, não há grandes dúvidas. “É talvez a figura mais importante do râguebi nacional. Foi o grande divulgador da modalidade em Portugal, introduziu-a na casa das pessoas. Também era seccionista e treinador, mas teve um papel fundamental sobretudo enquanto divulgador da modalidade”, realça o ex-dirigente, lembrando uma pessoa “dedicada e disponível” e, coisa pouco vista no desporto, “sem inimigos”. “Era uma pessoa muito dedicada e disponível. Vou dar-lhe um exemplo: uma vez, ainda no Agronomia, faltava um elemento numa prova de natação; ele era dirigente e nem sabia nadar, mas atirou-se à piscina para que a equipa não fosse desclassificada! Mesmo com a mudança posterior para o CDUL, nunca houve qualquer animosidade”, garante Amado da Silva.
Assíduo no campo até aos 90
Foram mais de 20 anos a comunicar râguebi. Muitos no primeiro canal, alguns já na RTP2, onde foi o responsável pelas transmissões do Torneio Internacional Lisboa Sevens a partir da terceira edição do evento, fator determinante na sua divulgação nos finais dos anos 80 e posteriormente.
Em meados dos anos 90, acabou por perder o lugar para novas vozes, como António Aguilar, o seu “sucessor” nas transmissões de jogos da modalidade já na Sport TV. Afastou-se então das lides mediáticas, mas nunca deixou de seguir a sua grande paixão. “Continuou a acompanhar como adepto fervoroso até há dois, três anos. Ia sempre ver os jogos, conhecia os jogadores, as equipas. Até aos 90 anos foi sempre assíduo no Estádio Universitário”, conta Lourenço Fernandes Thomaz.
Em 2012, foi homenageado pela Federação Portuguesa de Râguebi, que lhe atribuiu o Colar de Honra da instituição – um galardão reservado às personalidades que se revelaram indispensáveis na história da modalidade em Portugal.
Espalhou conhecimento e interesse pelo jogo, pela forma como comunicava o seu saber. A voz pausada era uma característica incontornável, como o eram as expressões de entusiasmo com cada jogada mais perigosa. Despede-se aos 93 anos, por doença prolongada decorrente da idade, um desportista de eleição e a referência de uma modalidade. A partir de agora, não voltará a haver “mais três pontos para o País de Gales”.