Foi há exactos 15 anos que Gonçalo M. Tavares lançou a primeira pedra do conhecido Bairro que homenageou senhores ilustres da literatura, trocando a habitual reverência (tantas vezes estéril) pela ousadia da construção significativa. Desde então, o seu ritmo editorial faz pensar num Aquiles, «de pés velozes», cujo calcanhar tivesse sido mergulhado num preparado de partes iguais de talento e vontade firme.
As pulsões do autor de O Reino (série que inclui os romances que trouxeram o reconhecimento e os prémios, como Jerusalém e Aprender a Rezar na Era da Técnica) estão para a escrita como as de Aquiles para a guerra. As suas armas são conhecidas: pensamento lógico e frieza narrativa, argumentação científica, ímpeto (des)construtivo, sentido lúdico, irreverência humorística dada em golpes de audácia, não esquecendo o domínio de uma máquina de interrogar que despreza olimpicamente vias de sentido único e caminhos a direito. Move-se a vários ritmos esta máquina, apelando a diferentes velocidades de leitura, ora mais pausada, ora mais veloz («É preciso acelerar!», lê-se a meio de um dos capítulos deste novo livro de energia visceral).
Gonçalo M. Tavares corre por gosto e é avesso a elogios homéricos e a convenções literárias. Continua a preferir o alfabeto e daí não arreda pé, em nome da liberdade criativa que não se cansa de reclamar. Os géneros canónicos não lhe calçam e a comprová-lo aí está o primeiro livro de um mundo a que chamou “Mitologias”. O plural não será certamente aleatório.
Há livros que parecem ter todo o tempo do mundo. Este, pouco dado a vagares, começa a tecer a sua trama logo na portada. Sem mais demoras, somos recebidos pelas figuras da capa, que de imediato nos conduzem ao mundo da fábula e a uma inversão no modo de a escrever, como que anunciando a passagem da clássica humanização do animal à bestialização do homem. Uma visita às traseiras confirma e alarga a impressão: homens, objectos, animais e máquinas surgem ao mesmo nível. Igualados pelo estatuto de personagem, agem num indefinível universo de dinâmica feroz, sem antes nem depois.
Situadas fora do mundo – mas com o mundo todo lá dentro –, figuras concretas, históricas (o padre Bartolomeu de Gusmão, os irmãos Romanov, Lumière) e acontecimentos identificáveis que dão o tom aos séculos dispõem-se a conviver com espantosas produções da imaginação que suspendem a nossa relação familiar com o mundo e põem em movimento figuras sem outro nome que o das suas características fisionómicas (o Homem-Mais-Alto, a Mulher-Ruiva, a Noiva) ou o das acções que praticam (a Revolução, a Caminhada-Muito-Extensa). Todas elas se movem como um autómato, sujeito a uma regra superior, espécie de fatum que tudo submete e que ninguém questiona ou ousa desafiar.
O mote deste livro, deslocado para o final, é dado por Walter Benjamim: «somos cada vez mais pobres de histórias de espanto». A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, publicado com o selo da Bertrand, pode ser lido como uma colectânea de histórias de espantar que subvertem, advertem e, no limite, divertem, devolvendo-nos o gosto da narrativa tradicional, evocada quer através dos discursos da oralidade em que sempre se apoiaram os contadores de histórias, quer de esquemas narrativos absorvidos de forma mais ou menos subversiva, proporcionando o prazer do (re)conhecimento e o da surpresa.
É o caso de um estrangeiro que, vindo de longes terras, chega a um acampamento faminto. Embora da grelha do conto popular penetrem ressonâncias sensíveis, o episódio desenrola-se por outras vias, incluindo a do humor negro. Dispensado da habitual “prova de acesso à mão da princesa”, o estrangeiro «torna-se Cunhado, devora-se o Cunhado […] O banquete termina. E a caminhada prossegue. A partir desse momento, aquele grupo chamará Cunhado a todos os homens que encontrar no caminho.»
O narrador serve-se de todos os recursos que os bons narradores, ao longo dos séculos, foram congeminando, a começar pelos começos, que nunca deixa aos cuidados do acaso, encontrando toda uma variedade de eficazes substitutos para o milenar “era uma vez …” Pergunta, logo a abrir: «A Mulher Sem Cabeça – onde está ela?». E o leitor, num misto de interesse e sobressalto, trata de investigar. “O Homem-do-Mau-Olhado assusta». E o leitor logo fica advertido para o que vai seguir-se. O narrador avisa: “O grupo avança, cuidado!». E o leitor treme. A questão é que, neste livro, «Quem tremer é culpado!».
Tão dirigido à imaginação como à razão, o meio mais eficiente para o exercício de uma maldade dada em diferentes graus e escalas, este livro bem podia ser uma biografia da humanidade, escandida em treze curtos capítulos – uns mais funestos que outros, intercalados por páginas em branco, autêntico convite à reflexão. A uni-los, uma lógica de “singularidades” rapidamente cruzadas, a iluminar o enredo, e de mudanças imprevisíveis, similar à que regula a instabilidade e as contingências da história humana.
Compêndio actualizado de mitos, parece atirar a matar à mitologia clássica, que, pela narração repetida, se tornou estável, previsível, familiar. É certo que há um labirinto, há perigos experimentados, há feitos ímpares e figuras que são recebidas como heróis, rituais de iniciação, há presentes envenenados e artefactos dignos de Pandora, há artífices prodigiosos (ou quase), há banquetes excessivos, amores ilícitos, há pares estranhos, a começar pelo do título, há olhos vazados, reviravoltas e perfídias de espantar, lâminas feitas de pura crueldade. Enfim, toda uma série de aventuras de marcha imprevisível cujo relato, alheio a explicações, transgride os tradicionais padrões de narratividade.
O mundo dos velhos mitos clássicos, de que nos chegam ressonâncias difíceis de ignorar, dadas em intertextual roda livre, estão fora da órbita destas Mitologias que tomam a máquina como centro, espécie de minotauro que tudo devora. Como se Gonçalo M. Tavares os tivesse estendido ao longo de um cordame de fios e depois o torcesse para dar a ver melhor a natureza humana, com os seus medos, as suas tentações, as suas loucuras.