Um misto de satisfação e cepticismo marcou a forma como a elite cultural japonesa recebeu a notícia da atribuição do Nobel a Yasunari Kawabata, em 1968. Pela primeira vez a Academia Sueca reconhecia um escritor nipónico e, no entanto, o orgulho em ver um dos seus aclamado no Ocidente parecia beliscado pelo simples facto de ser aquele um escritor particularmente querido, e que o Japão não estava com pressa de colocar no topo da sua lista de exportações.
De facto, resistia uma certa suspeita quanto à capacidade dos ocidentais terem a afinação intuitiva para apreciarem um autor tão famosamente descrito pela delicadeza como a sua atenção preenchia as coisas. Numa palavra, Kawabata seria um escritor demasiado “japonês” para que não se perdesse na tradução o suficiente para que a outra língua só chegasse um reflexo amputado da presença original. Como notou então o crítico inglês D.J. Enright, é provável que a elite japonesa tivesse ficado mais satisfeita se o galardão houvesse agraciado um escritor mais “modan”, mais representativo da sensibilidade daquele país que se abrira às influências do novo mundo, alguém menos enraízado nas suas tradições, naquela herança face à qual persistia um sentimento de culpa. Para não abandonar a vitalidade do seu papel enquanto potência regional e ter uma palavra a dizer sobre o futuro, o Japão via-se obrigado a atraiçoar valores e noções tão firmes como inconciliáveis com a “liquidez” da modernidade. Uma longa despedida que perdura até os nossos dias e que deixa claro como nenhum outro país viveu tão dolorosamente a separação dos seus ideais, uma ferida que depois da II Guerra só foi agravada.
Quanto a Kawabata, é difícil pensar que o Nobel tenha representado para ele qualquer graça incitante. Na verdade, nos últimos anos, e enquanto a sua obra era cada vez mais lida por todo o mundo, este escritor em tempos tão prolífico, tendo chegado a presidir durante um longo período ao PEN japonês, escrevia cada vez menos, aproximando-se perigosamente do silêncio que marcou o seu acto final. Ao suicidar-se aos 72 anos, em abril de 1972, saiu sem se dar importância. Não procurou a menor ênfase, um gesto heróico e nem uma nota de suicídio deixou. Ao contrário do espectacular suicídio, dois anos antes, do seu amigo e discípulo, Yukio Mishima, causando choque ao recuperar o seppuku, Kawabata foi encontrado sem vida com uma mangueira de gás na boca.
A morte causou surpresa no meio literário japonês, mas os amigos revelaram que, além de ter sido profundamente abalado pelo suicídio de Mishima, Kawabata tinha começado a sentir os efeitos degradantes da velhice. Além de uma vesícula biliar inflamada, recentemente tinha sido hospitalizado devido a uma intoxicação provocada pelo seu habitual recurso a soníferos para vencer a insónia que o afectava desde a adolescência. No discurso que proferiu em Estocolmo, na cerimónia em que lhe foi entregue o Nobel, Kawabata lembrou que “por mais alienado que alguém se sinta neste mundo, o suicídio nunca constitui uma forma de iluminação”, e que por “muito admirável que seja, aquele que comete o suicídio está longe da graça que faz de um homem um santo”. Contudo, aquilo que de mais profundo tinha a dizer sobre aquele que acabaria por ser o seu último gesto, pô-lo na boca de uma das suas personagens, naquele que é provavelmente o seu melhor romance, “A Beleza e a Tristeza”. Da boca de uma jovem que pretende vingar a mulher mais velha de quem é amante e discípula, saem estas palavras: “Não temo o suicídio. O pior que pode acontecer a uma pessoa é fartar-se da vida”.
Foi Bette Davis quem proferiu a frase que se tornou uma espécie de divisa entre as mulheres enxutas que assumem os desafios e, finalmente, as humilhações a que a velhice acaba por sujeitar aqueles que os deuses não amam demais. “A velhice não é um lugar para maricas”, disse a atriz dos olhos eternos, que viria a ter tanto orgulho nesta frase que mandou bordá-la numa almofada que tinha na sala da sua casa. Pressentiu como os seus dois óscares de melhor actriz não fariam mais pela sua imortalidade do que aquela frase que cunhou e que se tornou um desses lugares incomuns que habitam no discurso ao lado dos provérbios.
Yasunari Kawabata tinha ultrassado os 60 quando publicou “A Casa das Belas Adormecidas” (1961) e neste seu romance dá-se mais uns anos ao colocar-se na pele de Yoshio Eguchi, um homem de 67 anos, que sabe o que o espera. Este pequeno romance que acaba de ser reeditado entre nós pela D.Quixote – na versão cheia de intuitivo encanto de Luís Pignatelli, que chega do japonês fazendo escala numa tradução francesa –, coloca-nos dentro de uma sumptuosa e pérfida alegoria, uma narrativa em que a história não atira uma frase sem adiantar algo ao quadro que nos preenche os sentidos, ao tempo que passa a ser modulado por aquilo que nos é descrito e, ao mesmo tempo, a uma meditação que tanto nos embala numa escrita de frases desenhadas com pincel, que tanto nos entregam ao deleite como nos arrancam a ele de súbito, nos perturbam, nos sacodem com as duas mãos.
Nas visitas que faz a uma mansão encantada nos subúrbios de Kioto, em que os velhos pagam somas avultadas para se despedirem da paixão, entrando num quarto como numa câmara onde o tempo fica suspenso, havendo apenas uma cama e nela, sob o efeito de poderosos narcóticos, uma jovem mulher nua. Não uma mulher, mas uma diferente a cada noite. E adormecidas para que os velhos não tenham de superar a humilhação, para que a questão não seja a impotência sexual mas o desejo que resta. A juventude e a virgindade aplacando nos seus braços a decrepitude daqueles corpos, enquanto a inconsciência lhes permite libertarem-se por um momento dessa vertigem que aperta como uma rede, que agasta, marca, verga, enfeia e atordoa, como se a morte não esperasse por si mesma, mas se mudasse antes de tempo para o quarto e se deixasse olhar nos momentos em que a própria luz só serve para sentir o cerco do escuro.
Eguchi sente a proximidade daquele desejo que já não concentra mas dispersa, que ao invés de assaltar o corpo como um imperativo, o deslaça e o torna um projector comovido com as suas lembranças. Na velhice, o desejo já não captura e expande os sentidos, mas desata a memória, desagregando a atenção, servindo-se do que tem à sua frente apenas como referência para o que já não está ali. Recentemente, Herberto Helder soube ilustrar diabolicamente a mesma inconformação raivosa de quem entrou pela velhice sem perder o sôfrego ímpeto que marca a juventude, essa energia ardorosa “fedendo a testerona e sangue”. Num dos mais convulsivos e radiantes exemplos dessa recusa em entregar-se à doce noite escura, Herberto decalcou estes versos perfeitos de um corpo nesse grito altíssimo: “farejo-te,/ mordo-te a nuca, lambo,/ e faminto me meto por ti adentro,/ rebento os selos,/ marco-te a fogo,/ levíssima visita à minha sêca luz e arrebatada fome”.
As regras da casa mandam que a virgindade das jovens, como se tratasse de um feitiço, não seja quebrada. Ao contrário dos outros clientes, o protagonista de Kawabata sabe que tem ainda a capacidade de violar essa regra, porque ao contrário deles mantém ainda o vigor suficiente para penetrá-las se assim decidir. Sem buscar meramente a experiência de consolação, ele deixa que a atracção o infunda e torture ao ponto de todas as fantasias se cruzarem, e não lhe passa apenas pela cabeça a hipótese de acordá-las à força, de violar uma delas, engravidá-la, ou até asfixiá-la. Destes velhos de quem nada se espera, que o mundo trata como se, em parte, pertencessem já à morte, e não tivessem muito mais a acrescentar.
Talvez como única revolta lhe reste um acto cruel. Cada um sabe quão longe se permite ir quando ninguém está a olhar. Eguchi está naquele quarto como muitos de nós. E há momentos em que do sensualismo damos um passo a mais e passámos a um terreno bem mais mórbido. Este é um livro para quem não trava a sua consciência, mas gosta de a ver desdobrar-se toda e também rastejar, apertar onde dói sem se pentear ao espelho do certo e errado. A moralidade aqui é essa condição menor com que se iludem os espíritos que, em vez de aceitarem a morte, se põem a fazer preparativos para o além. Daí que a velhice seja também uma experiência limite no que toca a atingir um estado de sensibilidade radical, um êxtase terrível. Nessa vigilância emotiva da impermanência do mundo, Kawabata torna-nos sensíveis às nuances do toque, ao modo como odores e fragrâncias dobram o tempo e o espaço, entre a pureza e o terror, como se a vida nos passasse à frente dos olhos agora igual à hora que se oferecer para nos entregar à morte.