Dele se disse já que foi um Fernão Mendes Pinto dos tempos modernos, salvaguardando a índole generosa que levou Vitorino Nemésio a chamar-lhe “pomba sem fel” e a fé que podemos fazer no testemunho dos seus périplos. À semelhança da “Peregrinação”, a extensa obra deste escritor infatigável possui o cunho romanesco de uma intensa aventura humana que recusa uma perspetivação de limitado cunho pessoal. A sua experiência de emigrante, que ganha contornos de exemplaridade, trouxe para a cena literária portuguesa não apenas um itinerário singular, longa e sofridamente anotado, mas uma alma coletiva, um “novo realismo”.
Com apenas 12 anos, já então órfão de pai, Ferreira de Castro (1898-1974) separa-se da sua Ossela natal (Oliveira de Azeméis, Aveiro) e parte para o Brasil, onde se inicia na solidão e no mundo do trabalho. Aos quatro anos vividos em plena selva amazónica, que o queria devorar e lhe dava a medida dos sofrimentos e injustiças vividos pelo povo local, bem como um autoconhecimento doloroso, seguiram-se, já em Belém do Pará, outros tantos de tribulações e trabalhos precários que conjuga, numa vocação irresistível, com a escrita de crónicas e contos que envia para jornais do Brasil e de Portugal.
Foi colador de cartazes, embarcadiço em navios de cabotagem, testemunha aflita das atrocidades da Amazónia, de uma natureza sem compaixão e da fragilidade humana. Tudo isto são vivências que, mais tarde, resgatará para “A Selva” (1930), romance maior e universal, de matéria vegetal – e humaníssima -, traduzido em 15 línguas, adaptado ao cinema com assinalável sucesso e considerado, juntamente com “Emigrantes” (1928), precursor do movimento neorrealista em Portugal.
Sobre “A Selva”, um estrondo editorial e durante décadas um dos livros mais lidos da literatura portuguesa, disse Jorge Amado, que o considerava um daqueles romances definitivos, que foi “o bálsamo sobre a chaga aberta da violência mais ignóbil desabada sobre os índios iguais a crianças órfãs”. Ferreira de Castro precisou de muitos anos para a reviver literariamente: “Medo de abrir, com a pena, as minhas feridas, como os homens lá avivavam, com pequenos machados, as chagas das seringueiras. Um medo frio que ainda hoje sinto quando amigos e até desconhecidos me incitam a escrever memórias”, confessa num texto de 1955 destinado à edição comemorativa dos 25 anos desse romance admirável que não passou despercebido a Albert Camus ou a Blaise Cendrars.
Já com a sua primeira novela publicada, de título muito mendiano, “Criminoso por Ambição” (1916), não deixaria a vida de o fustigar arrastando-o para uma existência de miséria extrema. Exemplo do que a vontade firme pode superar, Ferreira de Castro sempre recusou o “pobre de mim” de Mendes Pinto. Para a recuperação financeira contribuem o semanário “Portugal”, que funda em 1917, os contactos vários entretanto feitos nas viagens que realiza pelo Brasil, que lhe abrem caminho na vida jornalística, e a escrita de ficção narrativa – romances em sucessão como “Carne Faminta” (1922), “O Êxito Fácil” (1923), “Sangue Negro” (1923), “A Boca da Esfinge” (1924), “A Morte Redimida” (1925), entre outros títulos que, afastados da fase da maturidade literária, mais tarde se recusará a incluir nas suas obras completas. E mesmo aquele que considerava o seu primeiro livro, “Criminoso por Ambição”, disse que “saiu tão ingénuo, tão infantil, que não consigo evocá-lo sem ter piedade de mim próprio”.
Em 1919, regressado a Portugal, estava determinado a seguir a carreira literária e a prosseguir a atividade jornalística. Fundou a revista “A Hora” (1922), integrou o grupo anarcossindicalista A Batalha, colaborando no seu suplemento literário “Renovação” (1925-26), e cofundou o magazine “Civilização” (1928), um ano depois de ser eleito presidente do Sindicato dos Profissionais da Imprensa. Foi também redator do jornal “O Século” e diretor d’“O Diabo” (1935).
O conforto económico que em vão buscou no Brasil não o alcançou também em Portugal, onde nunca pediu nada ou “jamais [recebeu] qualquer favor ou amparo oficial”. O Monumento ao Emigrante, estátua que evoca o homem, inteiramente nu, limpando o suor da testa com a mão, é a homenagem dos conterrâneos ao romancista, notável autodidata cuja figura emerge na humanidade duma aventura imensa, terminada em junho de 1974, mal acabara de se implantar a democracia em Portugal.
A Cavalo de Ferro prossegue a reedição de Ferreira de Castro a um ritmo regular. Em “A Tempestade”, romance originalmente publicado em 1940, o autor abandona as grandes paisagens de “A Selva” para mergulhar no mundo fechado do espaço doméstico citadino, denunciando as fragilidades da Lisboa dos inícios do Estado Novo, bafienta e mesquinha, e sobretudo a condição desamparada da mulher, enfiada em espartilhos morais ainda não extinguidos. No retrato do protagonista, o bancário Albano, homem banal, inseguro, sempre pronto a tirar as medidas aos outros (e, em particular, às mulheres com quem se cruza), pela sua bitola curta, reconhecemos os Albanos que o século XXI ainda não fez desaparecer, de entendimento acanhado e gestos primitivos, dispostos a morrer e a matar em nome de uma possível traição.