Há uma intimidade vertiginosa que fará de qualquer leitor que caia na prosa de Virginia Woolf um confidente viciado. A sua escrita assume uma intensidade muito particular, a de uma mulher para quem a literatura representava uma perspectiva imensa sobre a vida e o mundo e era, ao mesmo tempo, uma forma de clausura. Numa carta ao irmão Thoby, queixava-se: «Eu não tenho ninguém com quem debater, mas tenho vontade. Tenho de escavar dos livros, sozinha e dolorosamente, aquilo que tu obténs todas as noites à lareira, a fumar cachimbo com Strachey, etc.» Escrevia-lhe para Cambridge, da morada da infância dos dois, onde teve de esperar pelos 22 anos para que, em 1904, o pai morresse e então pudesse abandoná-lo para se juntar finalmente aos irmãos.
Nos seus diários, falando da morte do pai, confessou: «Pai… teria hoje 96… e poderia ter chegado aos 96, como outras pessoas de que vamos sabendo: mas misericordiosamente não chegou. A sua vida teria posto inteiramente um fim à minha». Leslie Stephen deu aos filhos uma educação muito para lá do que faria de nós figuras ilustradas, cultas, obrigados a uma distância quase higiénica face às tépidas noções culturais destes dias. De Virginia esperava ele que viesse a tornar-se uma «autora». Se qualquer dos quatro filhos assegurou o renome do apelido que sobre eles pesava, Virginia Stephen viria a influenciar decisivamente o destino da escrita modernista, indo mais longe do que Joyce na forma como especulou com o monólogo interior, sendo a primeira a construir uma narrativa de vozes sobrepostas, passando para as palavras o peso das assombrações que, se tornavam a sua consciência tão aguda, fizeram da sua mente um mecanismo particularmente vulnerável, ao ponto de o seu domínio da linguagem não ser já suficiente para manter ao largo a loucura.
Desesperada, pouco antes de se suicidar, escrevia numa das cartas à irmã: «Sinto que fui demasiado longe desta vez para poder voltar. Tenho agora a certeza de que estou a voltar a enlouquecer. É exactamente como da primeira vez. Estou sempre a ouvir vozes e sei que agora não vou superá-lo.» Desde os treze anos que se debatia com estes episódios.
A Portugal, só este mês chegaram cinco ensaios autobiográficos que, se não foram escritos com o objectivo de serem publicados, assumem um carácter mais do que revelador, crucial, na obra de uma autora que, nos diários, chegou a questionar-se: «E se toda a minha obra não tivesse sido mais do que uma tentativa de esboçar uma autobiografia? E se as minhas personagens não fossem mais do que os meus modelos?»
Sob o título Momentos de Vida, estes textos foram encontrados entre os papéis da escritora após a sua morte, em 1941, mas só viriam a ser divulgados em 1976 pelo seu sobrinho, Julian Bell – a quem o primeiro deles, Reminiscências, é dirigido. A intenção era contar ao primeiro filho da sua irmã mais velha, Vanessa, e de Clive Bell, como fora a vida da mãe, mas a evocação da infância e adolescência das duas adquire vida própria, num texto que revela já o génio literário da escritora e o tão singular talento, que viria a tornar-se a sua imagem de marca, para «afiar as suas personagens com o que não se vê». Assim, é numa leitura profunda do mundo familiar e no reconhecimento de figuras marcantes e quase arquetípicas, que viriam depois a povoar os seus romances, que começa um ponto de vista particularmente atento e mordaz sobre a realidade. Como esclarece a tradutora, Eugénia Antunes, numa nota introdutória, este texto «começou a ser escrito em 1907, tinha Virginia 25 anos, e insere-se no período de aprendizagem da autora, que se autoprescrevia vários exercícios de escrita, consciente de que era uma aprendiza do ofício».
Woolf tinha um especial orgulho no percurso que desenvolveu enquanto autodidacta, e este livro oferece um olhar por cima do ombro da escritora, dos anos de formação quase ao final da sua vida – tendo o segundo dos textos, Um Esboço do Passado, sido escrito entre 1939 e 1940 –, uma vez que, ao contrário dos textos destinados a publicação, estes não foram submetidos a uma tão apertada vigilância. Virginia «tinha por hábito escrever algumas versões e depois revê-las e dactilografá-las até oito ou nove vezes», de modo que os textos aqui reunidos «apresentam marcas evidentes de um work in progress», adianta Eugénia Antunes.
Não quer isto dizer que esteja aberta a caça às fragilidades, mas talvez fosse encorajador sentir que, num arco temporal de mais de três décadas, a evolução tivesse partido de qualquer coisa menos admirável. De facto, o que impressiona é o quanto, para lá das diferenças de linguagem e de estilo, na juventude como no fim da sua vida, não deixamos de estar sempre perante uma escritora cuja prosa se confunde com a própria noção de experiência, cuja simples respiração capta mais aromas, prende mais vida no herbário das suas reminiscências.
Organizados segundo a ordem cronológica dos eventos neles descritos, nestes ensaios podemos acompanhar a evolução desta escrita de uma fluência sagaz e inquietante, da forma como os textos vão sendo pontuados por uma fina tapeçaria de metáforas, que crivam os relatos de uma expressividade que expande o vigor e o significado das suas observações. Como refere James Wood no soberbo ensaio que lhe dedica em A Herança Perdida, «é óbvio que toda a obra de Woolf é como uma tatuagem arrancada dos poetas ingleses e colada nas suas frases. Toda ela é poeticamente metafórica». Para ele, nos ensaios que escreveu enquanto recenseadora, como nos diários, ou nos livros de memórias que agora deixam de estar inéditos entre nós, surge a mesma escritora «ímpar, pretensiosa, nova, preciosa» que se encontra nos seus melhores romances – Mrs. Dalloway, Rumo ao Farol e As Ondas –, naquela «mistura de uma tristeza aguda e de um apetite literário constante».
E Wood sabe ser mais enfático do que ninguém ao explicar as razões que fazem da escrita de Woolf uma estratégia literária tão absorvente, tão poderosa na sua capacidade de produzir emoção, por ser uma escrita que existe sob o risco de ser avassalada, com a sua espantosa disciplina, que foi cunhada face à ameaça da loucura, um contraste perigoso e que nos faz sentir como tudo nela está em causa. Que nada é certo e que, a qualquer momento, toda aquela beleza pode ceder, ficar debaixo de escombros. Diz o crítico que «quando a prosa de Woolf resulta, não há nenhum romancista inglês do século XX cuja linguagem pareça tão natural, tão seminalmente viva. Ela escrevia ‘palavras com raízes’. (…) Woolf vê que as palavras, quando escolhidas em absoluta concentração, se transformam em abstracções, como acontece com tudo o que observamos durante muito tempo. Leva as palavras a revelar os seus pigmentos abstratos. Nas suas mãos as palavras parecem cores».