No ano da sua morte, 1988, António José Forte lembrava, numa entrevista que deu a Ernesto Sampaio para o “Diário de Lisboa”, a frase que por esses dias ainda se lia num muro da Avenida de Berna: “Não vos inquieteis, é a realidade que se engana”. Tinha feito 57 anos nesse mês de Fevereiro, dava-se como vivo a pouco mais de nove meses do fim, e garantia que não se inquietava. Tinha a confiança daqueles dois olhos grandes, que sabiam ler bem como sempre só poucos fizeram. E não se inquietava porque há muito se apercebera que a realidade não era senão outra aparência, um acordo de bestas que o poeta só pode repudiar. Por isso mesmo, logo na sua primeira intervenção escrita – “Quase 3 Discursos Quase Veementes” -, no segundo número da revista “Pirâmide”, em Junho em 1959, nos diz: “Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes e passai depressa.”
No desfiar das “horas imundas” deste mundo, há períodos em que o tão concorrido programa do nojo provoca o abandono de todas as posições, quando a própria política fica reduzida “a um montão de cabeças petrificadas”, e a realidade não passa de uma ordem que “engendra monstros”. Então, chega a ser demasiado tarde até para se ambicionar, na linha do surrealismo, “transformar o mundo/ mudar a vida”. Esse horizonte terá de esperar, quando antes é preciso que os homens se apercebam da urgência de uma postura de total insubmissão. O mal torna-se então o único bem que resta.
O desafio era imenso, e por isso, entre aqueles que se reconheceram na linhagem do surrealismo, coube a Pedro Oom a proposta de uma saída que não os condenasse a ficarem à espera, era necessário antes de tudo que cada um encontrasse a sua resposta para a pergunta: “que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”
No livro “Uma Faca nos Dentes” (publicado em 1983, na & Etc), Forte reconhecia-se nestes termos: “eu estou de facto na pele e no osso/ relativamente no tutano da esperança/ apenas a carne mínima para as noites na cama/ esse cordão umbilical que me prende à Revolta/ e me exalta no Amor”. E na tal entrevista, a única que deu, referia como, “ao deslumbramento que foi a descoberta do surrealismo, sucedeu uma interpretação menos deslumbrada mas mais profunda”, sendo a face mais visível e combativa do surrealismo precisamente “a rebeldia contra todos os poderes, desde o poder do Estado, passando pelo poder dos partidos até ao poder de distribuir prémios literários”.
E começámos pelas ruas, esse “corpo de ninguém”, porque nos parece que a tão breve obra de Forte podia toda ela ter surgido ainda mais dispersa, fragmentada, escrita nos muros da cidade, Lisboa ou outra, sendo ela a antítese da poesia como “excrescência ornamental”, como registo de surtos de uma febre sensível, afectada, um caderno de remorsos florindo liricamente. A flor aqui é outra, aquela “que se abre na boca dos suicidas”, não a voz do homem que se coloca acima das circunstâncias e do seu tempo, como se sobre elas passasse ileso, mas antes a de “um homem ferido de morte”, trocando a escrita pela urgência da fala, por um outro ritmo sanguíneo, mais fresco.
Em “A Literatura e o Mal” – recentemente reeditado entre nós com nova tradução, a cargo de Manuel de Freitas -, Georges Bataille, esclarece a aguda consciência e aquela “obscura necessidade” da qual provêm os verdadeiros poemas, afirmando: “Creio que o homem se insurge necessariamente contra si próprio e que não pode reconhecer-se, não pode amar-se até ao limite, se não estiver sujeito a uma condenação”. Parece claro, nestes termos, o quanto a obra de António José Forte se afasta de todos quantos vêm para a poesia exibir as suas penas. Tendo publicado em vida apenas cinco livros – sendo que, antes da sua estreia em 1960, com o volume “40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes numa Girândola Implacável e Outros Poemas”, destruíra dois livros organizados anteriormente -, não há uma única página, decorridas quase três décadas da morte, onde não se mantenham acesas as “lâmpades trémulas e bárbaras e ferozes” à luz das quais foram escritas.
A primeira leitura dos poemas nesta “caligrafia ardente” é de tal modo marcante que se imprimem em nós como se pudéssemos destacá-los a cada um, como se nos descolassem os dias do rumor quotidiano. Versos que nos ficam como se os houvéssemos descoberto num muro, numa parede que nos perturbou o caminho, porque fulgura neles a feroz exemplaridade dos desastres, esses acontecimentos que arrancam a realidade às suas certezas, aos enganos que, pela repetição, nos provoca.
Sendo certo que “não há espaço demais para ficar”, esta obra que não se estende para lá das cem páginas cumpre, como já notara Fernando J.B. Martinho, o desejo de capturar a “beleza convulsiva” que Breton fixou como objectivo maior da poética surrealista. Mas, além disso, além do impacto que perdura em nós desde a primeira vez que a lemos, com as suas “sílabas de abelhas nos ouvidos”, esta responde a um tempo de horror que converteu a si os homens. “Este rosto com que amamos, com que morremos, não é nosso; nem estas cicatrizes frescas todas as manhãs, nem estas palavras que envelhecem no curto espaço de um dia.”
É assim, atrás de um “rosto para sempre adolescente”, que Forte, antes de o esperar de qualquer outro, se exigiu a si mesmo, “aos dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e do amor, os olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no festival das letras, abrir a passagem a golpes de fígado para a saída do escarro. Se não temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares”. É conhecida a sua dedicação durante os mais de 20 anos que foi Encarregado das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, e ele próprio deixou testemunho dessa aventura em paralelo com a da poesia, como percorreu o país numa Citröen abastecida de livros, como andou pelas regiões isoladas, como muito antes dos furores festivaleiros, da cultura que pretende exercer-se de modo espectacular, deu o exemplo de que não era preciso um grande circo. Bastava a carrinha e lá dentro alguém que soubesse ir, “Sereníssimo”: “A passo de leão até à primeira rosa/ de cor em cor até ao fim da terra”.
Não são poucos hoje os leitores que reconhecem a diferença que fez ter aparecido aquele homem “com uma bomba à altura do peito” por regiões tão diversas como Vieira do Minho, Portalegre, Santarém, Loures e a periferia de Lisboa, alguém que ao lado do empenho, se mostrava atencioso, “e um bem-humorado e disponível conselheiro de leituras”, como recorda, num testemunho para a revista “A Ideia”, Fernando J.B. Martinho, que o conheceu nos anos que este passou em Portalegre: “do seu convívio beneficiaram os que com ele puderam privar nos serões do Café Facha (entre os quais me incluo), e se deram conta da sua cultura sem alarde, do conhecimento profundo que tinha da literatura portuguesa contemporânea”.
Frequentador do Gelo, e um dos membros do grupo que se reunia naquele Café do Rossio, no final da década de 50 e início de 60, vencidas hoje as provas da obscuridade, à medida que é reconhecida a individualidade e talento dos que ali cresceram face ao desafio daquela dura camaradagem (recorde-se que, “a acção poética implica”, segundo Forte, “para com a amizade uma atitude intransigente”), o grupo virou um mito. Mas o “mano Forte”, como o apelidava Luiz Pacheco, fez questão de deixar claro – num testemunho recuperado pela reunião da sua obra feita, em 2003, por Zetho Cunha Gonçalves, e publicada na editora A.M. Pereira -, o motivo por que o grupo depois de tão atacado e, finalmente, proibido, acabou por suscitar tanta admiração. Ao invés do espírito de manada que hoje agrupa aqueles que buscam integrar lotes promocionais, normalmente em torno de projectos editoriais, com a vida social a extravasar para a literária e claro sacrifício para a exigência de critérios, o exemplo do Gelo destaca-se por a literatura e as artes ali terem sido, antes de tudo, as manifestações de uma universidade de recusas, um espírito de revolta, e não as de uma guilda de marias embevecidas umas com as outras, num auto-elogio por interposta pessoa. Aqueles viveram assim uma juventude contra o sufoco, embalada ainda pelo despertar romântico e adolescente, mas voltada para uma idade adulta, uma lucidez em que “a crítica à cultura vigente era a actividade quase constante”.
Assim, já em 1988, questionado por Ernesto Sampaio sobre a tendência para a cotação social da poesia estar a aumentar, Forte deixava como suas últimas palavras este aviso: “De há uns tempos a esta parte que um verdadeiro bando, ao que parece organizado, constituído por literatos, comerciantes, necrófilos e patetas, se vem dedicando a essa actividade nefasta. São já especialistas. A verdade é que nunca tantos, ao mesmo tempo, tentaram assassinar a poesia. E em nome dela, como convém ao cinismo.”
Depois de uns anos esgotada, a obra de António José Forte, “Uma Faca nos Dentes”, tem agora nova edição, mais sóbria, já sem os desenhos de Aldina, companheira e musa do poeta, que, com o seu traço fortíssimo, “arranhado”, se podia equivaler-se ao dom abrupto de Forte, na anterior edição tantas vezes parecia uma imposição nas páginas, como se se tratasse de ilustrações para os poemas. Coisa que, de resto, só acontecera antes, em vida do poeta, no livro para crianças “Uma Rosa na Tromba de Um Elefante”. Este último permanece esgotado, depois da edição da A.M. Pereira. A actual reedição, com mais dois textos, dois retratos do autor, e mais algumas fotos num anexo iconográfico de capas e ilustrações à parte, devolve-nos a voz que entretanto foi apagada dos muros da cidade.