Offshores. “Erro de perceção mútua” outra vez?

Déjà-vu? Podia ser, mas ao contrário. PSD e CDS acusam o governo socialista de “apagão” no que diz respeito a transferências para offshores desde janeiro

O “Ronaldo do ECOFIN” torna a ver-se em apuros devido a contradições entre ele e outro membro do governo.

Desta vez, Mário Centeno contou uma versão da história distinta da de Fernando Rocha Andrade, seu secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. E o tema da história não podia ser mais quente: offshores. As mesmas que puseram a cabeça de Paulo Núncio, o antecessor de Rocha Andrade, num cepo mediático, partidário e parlamentar. Será este um novo caso de “erro de perceção mútua”, mas desta vez entre Centeno e Rocha Andrade?

A incongruência foi detetada pelos partidos da oposição ao governo – o CDS e o PSD – depois de Mário Centeno afirmar na Assembleia da República que o Uruguai, a ilha de Man e a ilha de Jersey haviam sido retirados da lista negra de offshores, garantindo que “existe uma informação que permitiu concluir que esses territórios, que essas jurisdições podiam sair dessa lista”, numa referência à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).

Os três Estados e territórios saíram da lista negra dos paraísos fiscais em janeiro deste ano e Cecília Meireles, do CDS-PP, questionava o ministro na Comissão de Orçamento e Finanças [COFMA] sobre a existência (ou não) de um parecer da AT que justificasse a saída desses paraísos fiscais da lista negra – lista essa que obriga a que todas as transferências com ela relacionadas sejam declaradas ao Estado português.

A incoerência, para a oposição, está no facto de, esta terça-feira, Rocha Andrade ter ido a Bruxelas – após requerimento do eurodeputado Nuno Melo para a sua comparência na comissão de inquérito aos Panama Papers – e afirmado, após a questão: “Se mandei o projeto de portaria concluído para parecer do Centro de Estudos Fiscais e este produziu um documento sobre o projeto de portaria? A minha resposta é não, não foi assim que se fez, nem na minha leitura é isso a que a lei obriga.”

Tendo em conta que Centeno havia dito que a retirada do Uruguai e das ilhas de Man e de Jersey da lista negra de paraísos fiscais “não foi uma decisão sem análise feita pelos serviços”, pois eles serão “sempre ouvidos”, o CDS e o PSD acusam o governo de ter dito, na voz de Centeno, uma coisa na COFMA e outra coisa, na voz de Rocha Andrade, no Parlamento Europeu.

Cecília Meireles aponta ao i: “Não se percebe.” “Primeiro, o ministro diz-nos que foram os serviços, depois o secretário de Estado diz que não foram os serviços… se não queriam cumprir com os critérios, alteravam a lei antes”, avalia a parlamentar centrista, cuja pergunta despontou o episódio.

Para Meireles, caso não haja parecer, sendo somente “uma decisão política”, trata-se de uma “ilegalidade”, na medida em que “há critérios que têm de ser seguidos”.

“O que aconteceu foi que qualquer transferência para estes países deixou de ser controlada. Nunca saberemos quanto dinheiro foi ou está transferido”, adverte também a deputada do PP. “Isto, sim, é um autêntico ‘apagão’.” Cecília Meireles garante que vai “continuar a insistir até ver o assunto esclarecido porque a dúvida já paira há tempo demais”.

De acordo com a lei, a saída da lista negra implica quatro critérios, nomeadamente a troca de informações entre os países e um benefício fiscal por colocar dinheiro no Estado respetivo – com uma ausência de IRC, por exemplo –, sendo estes critérios que, do ponto de vista do CDS e do PSD, não se veem aplicados na sua plenitude no Uruguai e nas ilhas de Man e de Jersey.

Quem também pede uma explicação e a documentação em falta por parte do governo – ou seja, o parecer da Autoridade Tributária que justifique as saídas da lista negra de paraísos fiscais – é o PSD.

António Leitão Amaro, vice- -presidente da bancada social–democrata, admitiu ao i que o PSD “não exclui a possibilidade” de convocar Centeno e Rocha Andrade para audiências que esclareçam o sucedido no parlamento, salientando também que “perante a contradição, é necessária uma explicação e o próprio parecer [da Autoridade Tributária]”. “Aguardaremos hoje e amanhã até seguirmos para outros instrumentos”, adianta também. Tanto o PSD como o CDS requereram oralmente e por escrito a apresentação do referido parecer. Leitão Amaro considera ainda que, “se há um serviço especializado na área [a AT] e não se o utiliza, a responsabilidade política do governo é, evidentemente, agravada”.

“Parece que os ‘erros de perceção mútua’ são prática comum naquele ministério, o que não credibiliza em nada o governo de Portugal”, defende o deputado laranja.

Por sua vez, Nuno Melo, o eurodeputado português que chamou Rocha Andrade ao Parlamento Europeu, diz ao i que “a contradição é evidente e a explicação tem de ser dada”.

Ao que o i apurou junto de fonte próxima do processo, outra das incógnitas em torno da remoção do Uruguai e das ilhas de Man e de Jersey da lista negra das offshores é se estes paraísos fiscais, de facto, requereram a sua própria remoção dessas listas – usualmente, de modo a obter essa remoção, é necessário pedi-la – ou se, aí, a génese da iniciativa está junto do governo liderado por António Costa. “É preciso saber quem pediu a remoção, quem aprovou a remoção e porque é que isso foi feito. A lei não prevê que seja uma opção política”, conclui a mesma fonte, que se reservou ao anonimato. Rocha Andrade, quando ainda em Bruxelas, certificou que na sua “leitura” a lei não obriga à existência do parecer, mas o certo é que Centeno invocou as conclusões da Autoridade Tributária para, desde janeiro, os paraísos fiscais mencionados estarem isentos de ver as respetivas transferências bancárias comunicadas e tratadas pelas autoridades portuguesas.

“Se foi uma decisão política, foi ilegal” “O que aconteceu foi que qualquer transferência para estes países deixou de ser controlada. Nunca saberemos quanto dinheiro foi ou está transferido” Cecília Meireles DEPUTADA CDS-PP “Isto, sim, foi um apagão” “Parece que os ‘erros de perceção mútua’ são prática comum naquele ministério” António Leitão Amaro vice-presidente bancada psd“Se foi uma decisão política, foi ilegal”