Desenhou, ilustrou, escreveu, paginou, montou, editou. José Vilhena era uma máquina de produzir sátira e riso. E dava cartas na arte de bem ocultar. Baralhava a PIDE e tornava a dar “inconvenientíssimas” páginas que marcaram gerações sucessivas. Foi talvez o autor que, entre nós, mais uso deu ao qualificativo de ‘subversivo’, sendo certo que o cartoonista não deixou que outros qualificativos repousassem: implacável, corrosivo, criativo, “incorrigível e manhoso Vilhena”, assim apareceu descrito num relatório da PIDE, que tantas vezes lhe bateu à porta em horário impróprio, dispensando maneiras e o cerimonial do aviso. Vilhena “riscou, rabiscou e arriscou muito”, sobretudo antes do 25 de Abril, como reconheceu Rui Zink, o mais dedicado estudioso da sua obra.
Vilhena, que morreu em 2015, frequentou o curso de Arquitectura na Escola de Belas Artes do Porto, mas foi, primeiro uma sociedade “sem tecto entre ruínas”, para usar uma expressão consagrada da nossa literatura, e depois a lusa incapacidade construtiva que profissionalmente o ocuparam. No campo do humor, a sua morada mais permanente, ergueu uma obra sólida onde vivem, em boa vizinhança, a anedota ilustrada, o desenho caricatural, os livros de bolso humorísticos, clandestina e compulsivamente publicados nos anos 60 e 70. Onde existisse um balcão de uma tabacaria, Vilhena lá estava, observando as regras da discrição: oculto numa gaveta ou num recanto seguro. Observador atento e implacável das relações de poder, exerceu a sátira política e social de modo libérrimo.
Reservava as regras e os códigos de etiqueta aos organizadores de eventos e à “gente bem”, mas, por escarninha cortesia – e já cansado das apreensões da Censura, que definiu como “a técnica de separar o trigo do joio, a fim de publicar o joio” –, diz-se que chegou a enviar exemplares das suas publicações aos inspectores da PIDE, num gesto facilitador nunca retribuído, como mandam as regras da boa educação.
A “Gaiola Aberta”, uma das suas revistas satíricas mais célebres, recebeu destacadas individualidades e as mais altas figuras da realeza, mas não esteve com etiquetas nem meias medidas. Sua Alteza, a Rainha Isabel II de Inglaterra apareceu nas bancas semi-nua, e, no limiar da década de 80, a princesa Carolina do Mónaco surgiu em pose deveras especial, numa fotomontagem que parodiava o anúncio de uma marca de brandy. A Grimaldi, que não gostou de se ver “a aquecer o copo de uma maneira … original”, considerou o retrato de muito mau tom e interpôs-lhe um processo que lhe trouxe oito anos de tribunais e uma inesperada visibilidade internacional. A “Gaiola” entretanto fechou, mas a passarinha satírica não sossegou. Vieram depois o “Fala Barato”, o “Cavaco” e o “Moralista”.
O Manual que a E-Primatur agora põe à consulta dos leitores, depois de ter publicado já a “História Universal da Pulhice Humana” e a história de Avelina, essa memorável “criada para todo o cerviço”, não ensina a degustar bolo-rei de boca fechada, embora ofereça boas sugestões para saborear docinhos alheios e deglutir sapos no local de trabalho. A propósito, perante o seu superior hierárquico nada de risos amarelos. Exiba sempre aquele “riso admirável de quem sabe e gosta/ ter lavados e muitos dentes brancos à mostra” (Cesariny). Acrescenta Vilhena que esses dentes podem ser seus ou artificiais: daí não vem mal ao mundo social. No segundo caso, e se estiver à mesa, mais do que conhecer o propósito de cada copo, interessa sobretudo evitar a todo o custo colocar a dentadura num dos copos do lado.
Também não diz o “Manual” como conter corninhos e congéneres respostas gestuais nas bancadas da Assembleia da República, mas dá-nos impagáveis retratos do estado da Nação. Contam já, é certo, com a provecta idade de 58 anos, mas alguns guardam uma actualidade inusitada (veja-se o capítulo “Roubalheiras e Outras Desonestidades”). Ontem, como hoje, o que mais visivelmente emerge é a “choldra nacional”. E também não refere o compendiozinho que um ministro jamais deve prometer bofetadas a cronistas mais acesos. É elementar. Mais civilizado é resolver o diferendo através de telefonema privado; mas também aqui há naturalmente regras a observar: “Se a conversa começa a azedar, conservemos sempre a calma e as boas regras da linguagem não usando esse português demasiado vernáculo que está tanto em moda”. E regista o conselho: “Para encerrarmos o telefonema, bastará dizer, na altura de desligar, duas palavras em tom firme e decidido: ‘Vá você’”.
Indiferente à regra que proíbe o elogio em boca própria, o precioso volume, dividido em duas partes, apresenta-se a si mesmo como “o mais profundo, investigado e detalhado Manual de Etiqueta jamais feito em Portugal”. Não é propriamente um calhamaço de funda e intrincada complexidade. Em menos de 150 páginas, numa linguagem de clareza meridiana, afiada o suficiente para cortar com marcações cerimoniosas, reverências, meneios de código rigoroso e salamaleques a compasso, atravessa o arco existencial e os seus momentos mais marcantes – do berço ao namoro, do casamento ao adultério (as senhoras, adverte o autor, devem optar invariavelmente pelo melhor amigo do marido, por razões práticas). E não deixa de lado aquela que, dizia Jorge de Sena (que nem sempre soube manter-se na circunferência da compostura), “todos se livram no enterro dos outros”, para o qual convém “afivelar a máscara do acontecimento”, não infringindo o dress code.
A morte é tratada sem paninhos quentes. E pode ser apressada pela mulher insatisfeita, futura autora do “maritricídio”. Perante o futuro marido defunto, não hesite: “toilette de veludo preto, sapatos de camurça, também pretos, uma jóia que ele lhe tenha oferecido”. E saiba que se o suicídio estiver nos seus planos – “o último dos nossos deveres sociais” –, deve primar pela mais circunspecta sobriedade. Aqui encontrará todos os passos (e a indicação das necessárias quantidades de fármacos) que nos garantem que não viremos a integrar o clube dos suicidas de Moacyr Scliar. Evite, pois, falhas imperdoáveis, erros e modos grosseiros, como atirar-se para debaixo de um comboio ou saltar de uma ponte. “Todo aquele que observou durante a vida as regras da boa educação, manterá a etiqueta neste momento solene”, afirma Vilhena.
No que respeita a índices concentrados de humor (do azul bebé ao negro sólido), o manual de etiqueta de Paula Bobone faz fraca figura quando comparado com este. E, ao contrário do de Bobone, não se dirige o livrinho de Vilhena apenas a uma classe social mais elevada. Do literato de cacife ao guarda-nocturno, do mais badalado protagonista do nosso Jet-set à simples empregada de servir e ao condutor da Carris, do milionário ao fadista falido, todos acharão aqui fundamentais ensinamentos, não fosse Vilhena um humorista transversal de leitura obrigatória.