João Soares: ‘Ser filho de Mário Soares prejudicou-me imenso na política’

Foi João Soares que teve a ideia de fazer uma coligação à esquerda para a Câmara de Lisboa. É ele o verdadeiro precursor da ‘geringonça’.

«Não é doutor. É João Soares». Há décadas que João Soares repete esta frase cada vez que o tratam por ‘dr.’. O país dos doutores irrita-o e só é capaz de chamar doutor a alguém que lhe apareça de bata branca.  Esta entrevista foi feita entre a esplanada do Pão de Canela, na Praça das Flores, onde João Soares vai todos os dias, e a biblioteca da Assembleia da República.  João Soares fala abertamente de como ser filho de Mário Soares o inibiu na sua vida política e como, ao contrário dos socialistas da sua geração, nunca foi candidato nem a presidente da junta até o pai ir para Belém. Esta entrevista passa dos anos 80 do século XX para julho de 2017, à velocidade do pensamento rápido de João Soares, que diz tudo o que tem a dizer sem gravitas. É por isso que não tem contas a ajustar com ninguém.

Num país em que ninguém se demite, por que se demitiu por causa de um post no Facebook?

Cada um é como é. Acho que é preciso de vez em quando mostrar desapego pelo poder. Não tem nada que ver com o gosto com que estava a exercer as funções que me foram confiadas.  E, passe a presunção, com a avaliação positiva com que as estava a exercer. Senti que podia passar a constituir uma dificuldade e decidi demitir-me, de facto num país em que pouca gente se demite. Costumo dizer que tento honrar a tradição republicana do meu avô paterno, que foi ministro na 1.ª República durante seis meses, o que era uma verdadeira longevidade na altura! Como sou muito fiel à memória do meu avô paterno,  não podia nunca ultrapassar o tempo de permanência no Governo do meu avô! Por respeito à memória do meu avô fiquei cinco mesitos mal medidos [risos].

Mas teve pena de sair….

Claro que sim, mas não é nenhum drama. Vivo bem com isso. Claro que gostava do que estava a fazer e até tenho a pretensão, sublinho mais uma vez, que estava a fazer bem. Mas estas coisas são como são. Vivemos numa sociedade de espectáculo hiper-mediatizada. Alguns dos dramas com que estamos confrontados neste momento têm a ver com isso. Não há tempo para refletir sobre coisa nenhuma, não há tempo para ter memória, mesmo das coisas mais próximas. Às vezes as coisas transformam-se numa bola de neve… O que aconteceu comigo é um bom exemplo disso.

Mas no momento em que escreveu o post deu-lhe um ataque de fúria?

Eu escrevi duas linhas no Facebook. Como é que duas linhas, em que eu falo de uma promessa que tinha feito uns anos antes, que era um metáfora óbvia, se transforma no acontecimento do dia? No dia em que o Presidente da República reuniu pela primeira vez o Conselho de Estado e convidou o presidente do Banco Central Europeu para vir a Portugal assistir em parte à reunião do Conselho de Estado, no dia em que o ministro das Finanças foi ao Parlamento discutir a questão do Banif, nesse dia três linhas escritas por mim no Faceboook transformam-se na notícia do dia! Todos os fóros televisivos, já para não falar das redes sociais, só falavam das ‘bofetadas’ do João Soares! Como se eu fosse um tipo conhecido por ser um agressor ou andar à pancada!

O Costa na altura não foi muito simpático quando disse que os ministros eram ministros mesmo à mesa do café…

Não tenho a menor razão de queixa! Estou solidário com este projeto político, que é muito importante. E eu, passe a imodéstia, sempre me bati por uma solução próxima daquela que estamos a viver e ajudei a protagonizá-la com o Jorge Sampaio, e depois sozinho, na Câmara de Lisboa.

Agora vivemos uma situação mais complexa e ninguém se demite.

Com toda a sinceridade, estou convencido que se tivesse sido eu próprio apanhado no quadro de responsabilidades – estamos a falar da ministra da Administração Interna e do ministro da Defesa –  muito provavelmente teria feito exatamente o que eles fizeram. A demissão quer de um quer de outro não ajudaria a resolver os problemas que são muito sérios. Pelo contrário, acrescentaria dificuldades onde elas já existem. O que não significa que daqui a uns tempos não haja necessidade nessa matéria de reformular equipas.

Conte-me então como se bateu para que houvesse uma aliança com o PCP para a Câmara de Lisboa…

Há muita falta de memória! A verdade é esta: eu defendi isso durante muito tempo sozinho, ou praticamente sozinho, com algumas pessoas que estavam comigo.

O ‘joãosoarismo’…

Nunca houve ‘joãosoarismo’. Mas havia um grupo de pessoas que representava uma determinada sensibilidade do PS e que tinha um número de eleitos na Comissão Política. Nessa altura, eu e o Acácio (Barreiros) defendemos sozinhos uma solução de entendimento à esquerda para conquistar a Câmara Municipal de Lisboa.

Jorge Sampaio só adere à ideia mais tarde?

O Jorge Sampaio chegou a dizer numa comissão política – e estamos a falar de coisas que se passaram à frente de pelo menos 50 pessoas – que até gostava, mas isso seria impossível. Claro que na ponta final, quando disse ‘Obviamente o candidato sou eu’…

Então existe alguma injustiça contra si. A ideia é sempre atribuída a Jorge Sampaio, que até era um homem mais à esquerda.

Se alguém fizer uma pesquisa a sério sobre as posições que cada um assumiu, verá que eu tive um papel relativamente importante na Federação de Lisboa (FAUL)… Mais tarde viria a ser presidente da FAUL, ganhando ao Costa por oito votos. Agora, a defesa da coligação de esquerda, não apenas com o PCP mas com todos os partidos de esquerda, essa fi-la sozinho. Aliás, falei informalmente com o PCP, com o Vítor Dias e com o Carlos Costa, que era o responsável das autarquias do PCP.  Falei com o PCP muito antes do Jorge Sampaio avançar para a ideia de uma coligação.

Então, João Soares é o verdadeiro precursor da ‘geringonça’?

Não gosto da expressão ‘geringonça’. Embirro com ela. A solução que se encontrou é séria demais para ser resumida assim. Mas é verdade que a primeira coligação de esquerda que existiu foi para conquistar Lisboa a uma coligação de direita encabeçada pelo atual Presidente da República! A coligação incluía o PCP, que teve sempre responsabilidades executivas, a UDP, que na altura existia autonomamente, o PSR, o MDP-CDE.

O que eu me lembro é que João Soares disponibilizou-se para ser o candidato do PS à Câmara de Lisboa nas eleições de 1989 e Jorge Sampaio avançou porque não o queria como candidato, até porque era um opositor interno dele.

Não era por ser opositor interno. Não faço juízos sobre essa matéria e também tenho muito respeito por Jorge Sampaio. Mas a montante dessa questão há um outro, que é o Constâncio, que também foi líder do Partido Socialista. Já ninguém se lembra disto. Quando o Soares pai foi eleito Presidente da República, pôs-se a questão de escolher uma nova liderança para o Partido Socialista. Quem foi eleito foi o Vítor Constâncio, tendo como presidente do partido o velho Tito de Morais. A frente que esteve por detrás da eleição do Constâncio englobava o atual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que foi um dos operacionais mais importantes; o grupo do Jorge Sampaio, onde estava o Nuno Brederode Santos; o grupo dos sindicalistas onde estava o Torres Couto que nessa altura era uma figura muito importante e muito influente no partido e mais alguns históricos do PS como o Tito de Morais e o Manuel Alegre, que também apoiou o Constâncio. Depois, separou-se. Toda este frente apoiou Constâncio contra o Jaime Gama, que arrancou tarde e apresentou como candidato a presidente do partido Almeida Santos. O ticket vencedor foi Constâncio/Tito de Morais e o ticket derrotado, que eu apoiei, foi Jaime Gama/Almeida Santos. Depois, a gente sabe o que se passou: o PS perdeu as eleições em 1987 e Cavaco Silva teve maioria absoluta pela primeira vez. O Constâncio faz muito mal as contas de votos – admito que faça bem as contas lá dos euros, não ponho as mãos no fogo por isso. Permito-me dizer estas coisas porque sempre pensei pela minha cabeça e porque ele também foi muito indelicado comigo numa Comissão Nacional e nunca me pediu desculpa.

Indelicado como?

Já vou contar. O Constâncio teve um ano e meio como secretário-geral do partido e era obviamente um erro de casting. Ele próprio demorou algum tempo a perceber, mas depois percebeu e demitiu-se. Mas, entre outras razões, demitiu-se por causa do processo que tem a ver com a Câmara de Lisboa. Isto passou-se em 1987/1988, com vários episódios pelo meio. A seguir ao péssimo resultado do PS nas legislativas de julho de 1987, houve uma recomposição da direção do PS. Depois houve outro congresso onde só estivemos nós na oposição – meia-dúzia de gatos pingados – e em que o Constâncio já com o Gama do lado dele teve 90 e tal por cento dos votos. Eu, com os meus amigos mais chegados, tinha conquistado uma grande influência na Federação de Lisboa. E nessa altura eu já dizia que o grande objetivo para o PS era ganhar a Câmara de Lisboa. E a única maneira de conquistar a Câmara era com a esquerda toda! Na altura, o PCP tinha 12 juntas de freguesia e o PS não tinha uma! Por isso é que era preciso um processo negocial, que eu sempre defendi. E tive dois encontros a sós com o Constâncio.

E como correram?

Disse-lhe ‘Olhe, camarada secretário-geral, um dos objetivos centrais que temos aqui para cumprir é conquistar a Câmara de Lisboa à direita que é uma coisa muito importante e simbólica. E digo-lhe que isto só se conquista com um acordo à esquerda’. Ele disse logo que estava contra, invocando tudo, o santo nome do meu pai, tudo! E eu disse-lhe que, a menos que tivesse alguém melhor do que eu, gostaria de ser candidato a presidente da Câmara. Mas depois  fiz a minha primeira visita ao Savimbi e o Constâncio fez logo uma declaração muito desagradável. Na altura era de bom tom dizer que a UNITA era um grupo terrorista…O Cavaco também usava essa linguagem. Eu respondia sempre no mesmo tom. Terá que reconhecer que eu nunca fui peco nessas coisas. Não sou agressivo, mas se me atacam respondo. Não tenho contas para fazer com ninguém. Está tudo feito. Faço logo na hora e depois a seguir também passa.

Mas a ida à UNITA prejudicou a sua possível candidatura à Câmara?

Ah, mas depois aconteceu uma coisa espantosa. E essa deu-me imenso gozo. Numa emboscada que fez a uma coluna lá para o norte de Angola, a UNITA apanhou dois suecos. Eram três e um morreu. E o Governo sueco, que na altura era social-democracta, ficou completamente à nora. Um morto e dois desaparecidos num conflito que eles nem sabiam bem o que era! Eu tinha conhecido o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros sueco, por via familiar, era amigo do meu pai. Eles pediram a toda a gente, aos americanos, aos chineses, a todos, mas andavam à nora. O Savimbi tinha essa coisa, o gajo não obedecia a ninguém! Dizem que foi uma marioneta da PIDE ou dos sul-africanos! Tretas! A dada altura, deve ter sido o embaixador sueco aqui que deve ter dito ao seu Governo que tinha havido uma polémica aqui por causa da UNITA. E o vice-ministro que me conhecia, sabia de quem eu era filho, pegou no telefone e ligou-me.

E o que lhe disse?

‘Já sei que tu és amigo deles e tal’. Eu disse que me dava muito bem com o representante da UNITA em Portugal, o Alcides Sakala, e que ia falar com ele. Falei com o Sakala e o Sakala dois dias depois disse-me logo: ‘O dr. Savimbi manda dizer que os entrega, mas o João tem que lá ir e também diplomatas suecos politicamente importantes’. Isto deu-me algum gozo por causa daquela guerra.

Já tinha dito ao Constâncio que gostava de ser o candidato do PS.

E ele, na Comissão Nacional, disse que eu não tinha condições. Não foi nada delicado. E o Sampaio tinha medo que eu ganhasse! No fundo, não tinham medo que eu perdesse. O Sampaio só se dispôs a aceitar que se fizesse uma coligação de esquerda quando foi ele o candidato! Até aí, tinha dito que era sempre impossível fazê-la. Aqui há dias, o José Pedro Castanheira, por quem eu tenho muito respeito, escreveu, na morte do Nuno Brederode, que quando o Sampaio anunciou a candidatura a Lisboa, o Brederode tinha-se sentado ao meu lado para me acalmar e até houve um telefonema do meu pai! Já agora, digo que não dava conta ao meu pai das coisas que estava a fazer! Ele acompanhava com ternura, mas nunca foi uma coisa de dizer ‘ó pai agora vou aqui, vou acolá’ ou pedir-lhe conselhos. E o meu pai foi sempre contra a ideia da Câmara de Lisboa! É um dado histórico.

Foi contra a ideia de aliança com o PCP?

Foi contra a ideia do entendimento com o PCP e sempre achou que a Câmara de Lisboa era uma coisa menor! Ele próprio tinha escolhido a Helena Torres Marques! Para ele não era prioridade, não valorizava! Na direção do PS do tempo dele e na posterior, eles não valorizavam Lisboa! Nunca! A primeira pessoa que valorizou Lisboa fui eu! Eu fui o primeiro que lá cheguei por vontade própria de lá chegar! O Abecasis explicou várias vezes como o Freitas o convidou e como aquilo foi para ele uma surpresa. Depois, o Abecasis apaixonou-se pela função. Depois, vem Jorge Sampaio mas num contexto em que não queria ser candidato! Eles diziam que não tinham generais… Generais o tanas! Quem é que lhes tinha dado as promoções? Eles não queriam que eu fosse candidato. Achavam que eu tinha uma graduação inferior. Tentaram o Gama e o Guterres, que disseram que não.

Entretanto o Constâncio ficou fechado em casa uns dias e depois fez uma Comissão Nacional no Ritz e demitiu-se. Houve 10 votos contra ele e eu fui um deles e disse que aquilo era uma vergonha. Depois começaram a fazer romagens à casa do Constâncio em Oeiras para ele voltar para secretário-geral.

Mas o Constâncio demite-se nessa Comissão Nacional a dizer que não tinha condições?

Não tinha condições porque, segundo ele, o Soares meu pai lhe fazia uma guerra. E era a questão da Câmara de Lisboa. Ele disse isso. ‘Eu acho que o João Soares não tem condições para ser candidato, posso estar a ser injusto’.

O gajo não me conhecia, era só por causa das coisas internas. Foi nesse contexto. A coisa de África depois deu-me gozo porque eu disse aos suecos: ‘Eu vou lá, mas só vou se o secretário-geral do meu partido e o secretário para as relações internacionais [Nuno Brederode] que me agrediram há meses, me peçam para eu lá ir’.

E pediram?

O vice-ministro nesse dia ligou ao Constâncio e ao Nuno Brederode e o Constâncio pediu-me para eu ir lá ao gabinete dele. ‘Você tem que ir, por favor’. E eu disse: ‘Ai agora eu é que vou buscar os suecos porque sou amigos dos terroristas? Ai está-me a pedir? Então registo que me está a pedir. Eu vou lá. Vou lá pelo PS e pelos suecos’. Este é o contexto daquela luta em Lisboa. Depois, o Sampaio convidou-me para ser o número 2 dele. Nessa comissão política no Rato em que o Sampaio diz ‘o candidato obviamente sou eu’ interrompe a reunião da comissão política durante uma hora ou hora e meia para dar uma conferência de imprensa! Aquilo foi tão prolongado que o Gama, que tinha para aí 20 membros eleitos na comissão política, achou de tal maneira grosseiro para os membros da comissão política que se foi embora a meio.

Antes dessa comissão política o Sampaio tinha-me convidado para uma reunião no gabinete dele na rua da Emenda, ainda havia rua da Emenda [histórica sede nacional do PS que depois foi vendida nos anos 90]. Era um gabinete lá em cima, o gajo queixava-se sempre, eles faziam aquelas rábulas… ainda por cima eu era o filho do lobo mau. ‘Ai isto entra água, não temos dinheiro para nada’. É aquela coisa do ‘não foste tu, foi o teu pai’. Queria que eu fosse pedir para a porta da igreja? Era o que eu lhe dizia a ele e ao Constâncio.Vinham sempre com a mesma coisa! Mas o que é que eu tinha a ver com isso? Eu nunca tive responsabilidades no PS enquanto o meu pai foi secretário-geral!  ‘Ai não temos carros’.

Bem, eu todos os dias falava. Tinha instalado um telex lá na editora, aquilo era barato, e todos os dias mandava telexes e os telexes tinham um efeito bestial. Depois diziam: ‘O gajo tem um telex!!!’. Eu mandava telexes para as redações com as minhas posições e aquilo saía. Aquilo na altura tinha efeito, os telexes eram raros.

O Sampaio chama-me lá e diz: ‘Você não aceitava que estivesse à sua frente na lista da Câmara alguém hieraquicamente acima de si no partido?’. E eu disse: ‘Mas quem é hierarquicamente acima de mim? Estou na comissão política com os votos que consegui’. E ele diz: ‘Alguém do secretariado’. E eu: ‘Mas quem?’. E ele responde: ‘O Lopes Cardoso’.

O Lopes Cardoso era um gajo de quem eu gostava muito. Mas disse-lhe logo: ‘O Lopes Cardoso não tem interesse nenhum por aquilo, não tem projeção, não está ligado a Lisboa!’. Eu estou a ver a cena. Estávamos sentados em dois sofás. E eu digo-lhe: ‘Há um nome que aceito que fique acima de mim’. E ele diz: ‘Mas quem?’. E eu respondo: ‘Jorge Fernando Branco de Sampaio’. E o gajo diz-me assim: ‘Você parece o José Luís Nunes [histórico socialista falecido em 2003] que tem a mania dos nomes completos! Não, isto não é a França, não pode ser’. Isto porque o Chirac tinha sido presidente da Câmara de Paris antes de ser candidato à presidência. ‘Ó Jorge, a minha opinião é esta. Você pediu-me a minha opinião. E tem que me dizer por que é que não posso ser eu. É porque sou filho do Mário Soares? Porque sou da oposição interna?’.

De facto, o meu pai estava contra. O meu pai telefonou-me para dizer exatamente o contrário! ‘Pá, afasta-te dessa porcaria, isso é um disparate!’. Eu disse: ‘Ó pai nem pense nisso. Eu estou convicto, isto é uma belíssima solução’. A minha mãe também era contra o entendimento com o PCP.  E o meu pai também! Não era um problema de achar que era difícil de realizar. Não era favorável e achava a Câmara de Lisboa uma coisa menor, que não tinha importância nem para o PS nem para mim. Achava que eu não me devia meter naquilo, que parecia uma obsessão. Eu dizia-lhe: ‘Mas isto é uma coisa fantástica!’.

Hoje claro que presto homenagem a Jorge Sampaio, ele encabeçou aquilo, seguiu uma boa estratégia, foi uma batalha magnífica e tenho orgulho em que se tenha feito essa coisa histórica que foi o entendimento de toda a esquerda.

Há bocado estava a dizer-me que olhavam para si como ‘filho do lobo mau’? Como foi para si viver com essa carga de ser ‘filho do lobo mau’? Prejudicou-o politicamente ser filho de Mário Soares, fundador do PS e da democracia?

Não tenho contas a fazer com a minha vida e muito menos com a memória do meu pai e da minha mãe, memórias que me são profundamente queridas. E não quero que ninguém tenha pena do que quer que seja porque não há razões para ter pena. Tive uma vida riquíssima com a minha mãe, o meu pai e o meu avô paterno, que viveu connosco.

Agora, só quem não seja capaz de analisar com o mínimo de objetividade… A mim não me prejudicou um bocadinho, prejudicou-me imenso! Mas não tem problema nenhum! O saldo continua a ser positivo! As pessoas não conseguem olhar para mim a não ser… É raríssimo as pessoas olharem para mim e dizerem ‘Está ali um gajo, é filho de Mário Soares, mas está bem’…Claro que ser filho de Mário Soares, neto de João Soares, filho de Maria de Jesus, é uma coisa encantadora! Isso está fora de causa!

Portanto, quando tinha 22 anos já tinha esse carimbo na testa…

Quando entrei para a faculdade todos sabiam de quem eu era filho, no movimento estudantil, em todo o lado. Mas não tive um lugar insignificante antes do 25 de abril, fui da direção pró-associação dos liceus e da direção da associação de Direito. Todos os gajos da minha idade, de todos os partidos, quando veio a democracia foram quase todos para o Parlamento. Às vezes tenho que recordar às pessoas que eu nunca exerci a menor função dentro do Partido Socialista nem disputei o menor lugar enquanto o meu pai foi secretário-geral! A única exceção foi o apoio que dei ao Palma Inácio quando ele se recandidatou à Federação de Lisboa, que o meu pai correu para meter lá o Pedro Coelho e eu achei aquilo injusto. Eu tinha uma ligação afetiva muito grande com o Palma. Nunca disputei nada dentro do Partido Socialista enquanto o meu pai foi secretário-geral. Nada! Coisa nenhuma! Todos os gajos da minha geração, e alguns que não tinham tido nenhum papel antes do 25 de abril, foram deputados, vereadores, câmaras, não sei que mais…

Nunca chegou a ser deputado quando o seu pai era líder do PS…

Nunca! Até 1986 era editor [editora Perspetivas e Realidades] e mais nada. Fiz umas coisas de advocacia para estar inscrito na Ordem, o estágio e tal. Mas fiquei vacinado com a passagem pela Faculdade de Direito. Eu entrei no ano em que entrou o Marcelo, o Carlos Fino, o Mega [Ferreira], o José António Barreiros, o Luís Pinheiro de Almeida… Aquela faculdade vacinou-me em relação ao Direito. Há muitas pessoas que não gostam que se lembre isto, mas foi a única faculdade onde fecharam a Associação Académica.  O Veiga Simão [ministro da Educação durante a ditadura que será mais tarde ministro da Defesa do Governo Guterres]… Não quero ser desagradável para a memória do homem, mas o Veiga Simão, já no tempo de Marcelo Caetano, que tinha sido reitor da Faculdade de Direito, fechou a Associação Académica e transformou-a num quartel de gorilas! Uns gajos que tinham sido antigos combatentes da guerra colonial e que eles recrutavam e dominaram a Faculdade durante quatro anos! Não foram 15 dias… E às vezes até humilhavam os professores. A professora [Isabel] Magalhães Colaço foi uma vez humilhada por um desses gorilas! Batiam nos alunos! Quer dizer, eles ensinavam-nos as regras do Direito lá dentro e depois era tudo violado no próprio sítio onde se ensinava! Fui aluno do Marcelo Caetano em Direito Constitucional e Direito Administrativo. 

Mas quando o seu pai é eleito Presidente da República sente-se livre dentro do PS…

Aí, senti que tinha condições para fazer o que achasse que devia fazer. Fui candidato à Federação de Lisboa, fui apoiante do Jaime Gama das duas vezes em que ele se candidatou e perdeu, primeiro contra o Constâncio e depois contra o Sampaio. O Gama é um gajo, de facto, de grande categoria. É dos homens mais cultos, mais inteligentes e mais informados que eu conheço. Tem um estilo próprio, as pessoas  enganam-se com ele… Eu, como o conheço desde muito antes do 25 de abril… O Jaime Gama até fisicamente é corajoso! Como ele tem aquele ar de urso, as pessoas não o entendem. A malta subestima-o.

Tem um grande sentido de humor…

Muito humor! Mas é preciso esgravatar! Para alguém perceber que ele tem humor tem que ter primeiro alguma intimidade com ele. O meu pai às vezes irritava-se quando eu o elogiava porque eles depois tiveram ali uma relação… Eu com o meu pai nunca tive problemas mas acho que entre o Jaime Gama e o meu pai houve assim uma espécie de relação entre filho e pai que depois se zangam… Na realidade, o meu pai escolheu o Almeida Santos para se candidatar às eleições de 1985 quando devia ter escolhido o Gama… A História foi sempre injusta para Jaime Gama. É óbvio que quem teria sido melhor secretário-geral do PS, em vez de Constâncio, era o Jaime Gama. Não tenho a menor dúvida! E mesmo com o Sampaio. Não sei se ele teria ganho as eleições, porque o Gama também tem um lado….Aquilo não é arrogância, é um certo pudor…

O Jaime Gama foi um brilhante líder parlamentar do PS, disso eu lembro-me…

Há pessoas que dizem ‘O Gama é mau orador’. Eu já vi o Gama fazer os discursos mais chatos do mundo, mas era porque lhe apetecia! Mas, por exemplo, quando ele se apresentou contra o Sampaio, numa sessão da comissão nacional no [Hotel] Penta, com o Guterres desfeito porque devia ter sido ele mas o Sampaio comeu-o em grande velocidade, porque eles faziam parte do mesmo grupo… E aí o Gama apresentou-se com um discurso completamente de improviso e brilhante!

O Jaime Gama candidata-se duas vezes a secretário-geral do PS, mas à terceira desistiu…

Pois, já não vai à terceira. Mas quando o Guterres se demite – isto da conversa é como as cerejas – a seguir à nossa derrota nas autárquicas [dezembro de 2001], aí eu também tinha um papel, eu estava em Lisboa! Ele demitiu-se 10 minutos antes de sabermos o resultado de Lisboa. E telefonou-me. O PS estava todo no Rato mas como eu estava em coligação com o PCP estava no Altis. ‘Então?’, perguntou-me ele. E eu disse: ‘Podemos perder por 500, podemos ganhar por 500’. E ele disse-me que se ia demitir. O Santana em Lisboa ganhou por 856 votos. Só eu é que me devo lembrar do número, nem o Santana se deve lembrar.

Há muita gente que diz que o João Soares fez tudo para perder essas eleições…

Tenho ouvido isso tantas vezes que até me diverte. Há coisas contra as quais não vale a pena… Eu fiz tudo o que podia fazer, fui a todo o lado! Você na altura escreveu uma coisa que me magoou. Disse que eu tinha acusado o Santana de ser instável no plano pessoal. E eu nunca disse isso!

Nunca disse? Eu li em algum lado.

Oiça, na altura… Eu também estava numa relação amorosa! Também me dizem que perdi as eleições porque estava apaixonado pela Annick [atual mulher, mãe dos filhos Jonas e Lilah].

Saiu num jornal que o João Soares disse que Santana Lopes era instável emocionalmente…

Eu nunca me meti no plano pessoal! E até tenho um fraquinho pelo Santana Lopes, apesar dele me ter dado uma derrota que eu achei injusta. Portanto, nunca poderia ter dito isso. Ao contrário do que as pessoas disseram quando ele era secretário de Estado da Cultura, ele não é inculto! Não terá a cultura musical clássica como eu também não tenho! E se calhar até tem mais do que eu, do ponto de vista da distinção entre o Beethoven e o Mozart! Agora, o Santana é um gajo com imensa piada.

Na altura disse que ‘Santana Lopes tem mel’…

Disse, porque o sacana tem mel! Então, vocês, mulheres, adoram-no! Na altura, o Rui Gomes da Silva, com quem tenho uma relação  pessoal boa – caímos os dois de um avião, que é uma coisa relativamente rara – pouco antes dele se apresentar como candidato convidou-me para jantar sozinho em casa dele com o Santana. E o Santana disse-me: ‘Estão a pressionar-me para ser candidato contra si, mas eu acho que não vou ser, você tem sido um belíssimo autarca’. Fazia uma avaliação positiva. Eu fiz tudo o que era possível fazer para ganhar aquelas eleições! O Miguel Coelho, que era presidente da concelhia, queria que eu metesse lá uns gajos na lista. Eu não meti ninguém do aparelho. Esse é um dos handicaps que eu tenho. Sou fidelíssimo ao PS, tenho a camisola do PS, sobre isso ninguém tem dúvidas. Mas não sou um gajo de aparelho, de fazer fretes. Essas coisas não faço.

Acusaram-no de ter feito pouca campanha…

Eu fiz toda a campanha. Houve um dia em que eu faltei a uma ação de campanha de manhã porque fui despedir-me do Gomes Mota que estava a morrer em casa. Falhei uma ação!

Mas até o seu pai achava que queria perder aquelas eleições…

O meu pai fez uma coisa que me divertiu imenso e eu ainda pensei: ‘Vou perder as eleições por causa disto!’. Vou-lhe contar. Eu nunca proibi, mas pedi, quer à minha mãe quer ao meu pai, para não participarem em coisas de campanha, como não participaram na campanha contra o Ferreira do Amaral, quatro anos antes. De uma forma geral, eles respeitaram. Quando foi da campanha contra o Santana, o meu já tinha saído há muito tempo da Presidência, a campanha foi em dezembro e meteu-se o dia de anos dele pelo meio. O João Amaral [deputado do PCP falecido em 2003] também fazia anos a 7 de dezembro. O João Amaral foi candidato à Assembleia Municipal das duas vezes. Aliás, tive que travar uma batalha com o PCP, porque o PCP quis correr com o João Amaral. E eu disse ao Carvalhas, por quem tenho muito respeito: ‘Eu só sou candidato se o João Amaral for candidato’. O próprio João Amaral já estava em pré-dissidência, mas ainda era do PCP. 

A campanha avançou e o meu pai dizia: ‘Tu não me deixas ir às coisas da campanha! Eu tenho votos!”. A minha mãe, por quem eu tinha a maior das ternuras, foi a uma sessão logo no lançamento e disse logo uma coisa daquelas que o Santana, que era lixado, aproveitou. ‘Mas onde estava esse senhor quando foi o 25 de abril?’, uma pergunta à Baptista-Bastos.  E o Santana Lopes respondeu: ‘Mas eu tinha 13 anos!’. Em cima dessa coisa da minha mãe, depois o Vasco Lourenço também disse um disparate. 

Sinceramente, sempre achei que havia um lado negativo dos meus pais aparecerem. Sempre paguei esse preço sem problema nenhum, mas há um lado negativo que é indiscutível. Os gajos que não gostavam deles transferiam-se todos contra mim e os que gostavam não se transferiam!

Bem, o meu pai fazia anos a 7 de dezembro e o João Amaral também. A campanha não estava a correr mal. Tínhamos planeado para esse dia uma subida da rua Augusta até ao Rossio. Eu fui lá jantar a casa e disse ao meu pai: ‘Então no dia dos seus anos, se quiser, vem connosco subir a rua Augusta, o João Amaral também faz anos e depois cantamos os parabéns ali no Nicola’. O meu pai veio, ficou todo contente, e subiu a rua Augusta à conversa com o Pina Moura.

Mas um dia ou dois depois, eu vou lá a casa e o meu pai diz-me: ‘Estive a falar com o Pina Moura e ele diz que a máquina do PC não está a fazer nada’. Eu disse ‘Ó pai, isso é um disparate total, eu estou constantemente a falar com o Carvalhas’. E o meu pai então diz-me esta coisa espantosa: ‘Eu falei para o PC’.

O seu pai falou para o PC?

O meu pai! E diz-me: ‘Falei com o Cunhal’. E eu: ‘Mas falou com o Cunhal?’ [risos]. O Cunhal já não era secretário-geral, claro. O meu pai deve ter pedido à Osita [secretária de sempre de Mário Soares] para ligar e o Cunhal passado 10 minutos respondeu. E o meu pai só me diz isto a posteriori.  ‘Ó pai, essa é das coisas que me pode causar mais prejuízo eleitoral, mas diverte-me porque é uma história que eu hei-de contar nas minhas memórias!’. Então o velho Cunhal liga ao velho Soares e o velho Soares diz-lhe: ‘Isto não pode ser! A máquina do PCP não está a fazer nada! Você tem que fazer uma declaração!’. E o Cunhal diz-lhe: ‘Eu vou falar com os camaradas’. Mas disse logo que sim, é preciso saber ler nas entrelinhas, é como perceber o sentido de humor do Jaime Gama. E eu: ‘Ó pai, mas que é isso, não é preciso nada!’. E depois o Carvalhas contou-me como o Cunhal contou aos camaradas que iria fazer uma declaração a favor da nossa candidatura em Lisboa. A declaração do Cunhal foi lida, num comício organizado por mim e pelos comunistas, pelo Raul Solnado ou pelo Carlos Cruz! Agora imagine esta coisa divertidíssima, os dois velhos a falarem um com o outro…

A sua relação com o PCP foi sempre perfeita?

Sim, sempre boa. Houve ali uns problemas de rivalidade no início. Eu tive o acidente de avião em plena campanha eleitoral [em 1989]. O meu contributo para a campanha foi ter sobrevivido a uma queda de um avião! Aquilo teve alguma relevância porque o Marcelo fez ali uns erros, chegou a pôr a questão se eu morresse quem é que substituía o Sampaio.

O Marcelo fez isso?

Fez. Não foi à bruta. Depois emendou. Ele pôs a questão. É verdade que eu estive mesmo mal e o Sampaio ia disputar as legislativas ano e meio depois e eu é que ficaria a substituí-lo. Depois, fui à tomada de posse da Câmara de muletas e depois fui para casa. Estava um bocado em baixo e fiz uma opção pessoal de enquanto não estivesse bem não iria para a câmara. Tive que fazer muita fisioterapia. Aliás, o Sampaio teve a delicadeza, quando nós ganhámos as eleições, de fazer a primeira reunião em minha casa, no Campo Grande. O Sampaio quando quer sabe ser delicado.

E como começa o ‘joãosoarismo’?

O ‘joãosoarismo’ não é nada! Eu e outras pessoas que me eram próximas apresentámos propostas  políticas contra o Vítor Constâncio e contra o Jorge Sampaio, mas nunca apresentámos candidato a secretário-geral. Apoiei o Gama nas duas vezes e depois apoiei com entusiasmo o Guterres. Era o número dois do Sampaio na câmara e tive uma conversa franca com ele e o Sampaio foi de uma imensa grandeza. Disse-lhe: ‘Ó Jorge, desculpe mas eu vou apoiar o Guterres’. Ele, que até era sempre muito desconfiado, foi impecável. A primeira vez que eu fui deputado em 87…

A primeira vez que é deputado o seu pai já é Presidente…

Não é ser deputado. Enquanto o meu pai foi secretário-geral do PS eu nem membro da Comissão Nacional fui!

Mas qualquer pessoa é membro da Comissão Nacional…

Mas eu não fui! É um dado objetivo. É para você perceber como houve ali uma fronteira…

Só se candidata a secretário-geral contra o Sócrates…

Sim. Eu e os meus amigos fazíamos listas e tomávamos posições, mas só fui candidato a secretário-geral contra o Sócrates, depois do Ferro se ter ido embora. Na altura disseram que também estava a pensar ser candidato a secretário-geral contra o Ferro mas isso nunca me passou pela cabeça. O Ferro foi escolhido num processo que não me agradou nada, de cooptação entre a nomenclatura no partido quando o Guterres se decidiu ir embora. Foram meia-dúzia de pessoas a escolher o Ferro. O Ferro é da minha geração, é de 49, somos da mesma colheita. Não tenho nenhum partis-pris contra o Ferro, antes pelo contrário, mas achei aquilo um bocadinho indecente. Acho que foi num jantar em casa de Jorge Coelho com seis ou sete pessoas, depois do Gama ter dado uma tampa.

E nunca ninguém percebeu…

Ninguém percebeu. Ele dizia que a mulher estava doente, felizmente a Alda estava a recuperar. Nunca percebi… O Ferro não era um caso como o Constâncio. O Constâncio não servia para aquilo.  Lembro-me de uma vez estarmos duas horas na Pontinha à espera do Constâncio para fazer uma ação de campanha. Teve que ir a Edite Estrela e o Consiglieri Pedroso a Oeiras e o gajo não abria a porta! Depois tínhamos perdido todos os sítios onde estavam as pessoas, a feira de Odivelas e mais não sei o quê! E lembro-me de uma vez o gajo dizer ao Lopes Cardoso, que o queria levar a um café: ‘Mas aquilo está cheio de gente!’. E o Lopes Cardoso para o Constâncio: ‘Mas é por isso mesmo que tens que lá ir!!’ [risos]. O Ferro era diferente, mas também não tinha jeito para aquilo.

Gostava de ter sido líder do PS?

Acho que me faz a justiça de reconhecer que eu tenho o mínimo de experiência e o mínimo de inteligência para saber muito bem que nunca teria a menor hipótese de ser líder do PS! Nunca! Dentro do PS [o facto de ser filho de Mário Soares] ainda é pior do que na opinião pública! Às vezes há pessoas que têm coisas mal resolvidas com o meu pai e projectam para cima de mim. Nunca tive ilusões sobre isso! Mas achei que era preciso dar um testemunho naquela altura. Sabia que não tinha hipótese nenhuma.

Não admite voltar a candidatar-se?

Não!!!

Mas não tem vontade de fazer mais coisas na política?

Eu gosto de fazer coisas. Não escondo de que gosto de fazer coisas. Posso dizer-lhe os sítios onde me senti feliz.

Sentiu-se feliz na Câmara?

Na Câmara, indiscutivelmente.

E como ministro da Cultura?

Também. E também gostei de estar na Organização de Segurança e Cooperação Europeia. Foi das coisas que mais gozo me deu.

Acha que não foi nomeado ministro da Defesa de Costa por ser crítico do regime angolano?

Isso é uma pergunta que tem que fazer ao Costa. A única coisa que posso dizer é que não estava à espera que me propusessem a Cultura. Não aceitei logo. Ponderei. E depois aceitei. 

Depois do assalto a Tancos, somos um país menos confiável?

Há duas instituições que são fundamentais na nossa espinha dorsal enquanto país: uma é a Igreja Católica, e eu estou à vontade para dizer isto porque sou ateu, e outra  as Forças Armadas. E são, além do mais, duas grandes escolas de formação cívica. As Forças Armadas são uma das instituições que funciona melhor na nossa terra. Eu sou um entusiasta porque, como membro da comissão parlamentar de Defesa, onde estou desde 2002, e como membro da Assembleia Parlamentar da OSCE, visitei praticamente todas as forças nacionais destacadas. Os melhores soldados eram sempre portugueses! Isto não é patrioteirismo. Eu sou patriota, mas não sou patrioteiro. Acho que o país não tem a noção do trabalho que temos feito. É gente do melhor que há! E devemos às Forças Armadas a nossa liberdade. Tem que se ter muito cuidado quando se põe em causa uma instituição com a importância das Forças Armadas.

Mas as Forças Armadas não foram capazes de se defender a si próprias agora…

Sobre a história de Tancos não me pronuncio. Acho que há ali histórias que não estão bem contadas. Provavelmente, quem tem a obrigação de saber já as sabe. Não me parece que o material tenha passado por um buraquinho da rede. Se são três ou quatro metros cúbicos de material, tem que haver uma cumplicidade. Tem que haver a passagem por duas portas de armas para se chegar à zona dos paióis, se não estou em erro. É possível que tenha havido ali uma viatura, que não pode ser pequena, que tirou as coisas dali. O Presidente da República, que é o comandante supremo, fez muitísismo bem em ter ido lá. E presumo que ele já tenha muito mais informações sobre essa matéria.

Este é o momento mais difícil do Governo, já disse o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Concorda?

O Governo estava num crescendo. As coisas estavam todas a correr muitíssimo bem, a economia, o emprego. O Presidente da República também teve um papel muito importante como um dos astros mais visíveis do nosso firmamento nacional. Ele acrescentou um lado muito positivo, a confiança em nós próprios, etc.

Mas o primeiro-ministro devia ter mantido as férias?

O primeiro-ministro tem uma inteligência superior. Ele é mais novo do que eu, mas como não teve as inibições que eu tinha, tem muito mais tempo de trabalho político. É um tipo muito experiente. Se ele achou  – não estou a dizer que fazia o mesmo nem estou a dizer que não faria – que não devia pôr em causa as férias que tinha marcado por razões familiares e está perfeitamente acessível… Ele é muito maduro, sabe medir. Bem, todos nos enganamos e ele não será nenhum tipo infalível. Eu estou à-vontade porque no processo interno que levou à escolha dele para secretário-geral, eu não estive com ele e não me arrependo de não ter estado.  Estive com quem achei que devia estar. Sabia muito bem qual era o resultado! E o Seguro teve um mérito muito grande, que foi fazer o primeiro processo de primárias que houve em Portugal.

O Costa disse uma coisa que eu não apreciei sobre os resultados das eleições europeias. Disse que tinha sido uma vitória poucochinha, quando tinha sido talvez a maior vitória europeia de socialistas!

Acha que Seguro foi injustiçado?

Foi. Mas agora não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Nessa altura trataram muito mal o Seguro, a começar pelo meu querido pai. Estava só a recordar isto porque acho que António Costa agarrou muito bem a oportunidade. Também se podia ter devolvido o argumento do poucochinho. Mas eu disse que não estava ali para dizer que era poucochinho, que na minha modesta opinião estávamos perante uma oportunidade histórica. Mas o António Costa, tal como o Marcelo, soube agarrar a oportunidade. O peso que ele teve na vitória interna ajudou a construir uma solução para a qual a maioria das pessoas não estava inclinada.  Na véspera das legislativas ninguém falava numa solução de esquerda como a que se construiu!

Ninguém acreditava…

Eu acreditei e voltei a dizê-lo nessa noite. Costa agarrou aquilo muito bem. Fez uma equipa de Governo que é boa, comparando com as anteriores.

Disse que não defendia demissões…

Não defendo demissões neste contexto, mas há coisas em que é preciso encontrar soluções. Há um conjunto de inquéritos e investigações que tem que ser feito com grande rigor até para evitar que coisas destas se repitam. Se a ministra da Administração Interna ou o ministro da Defesa saíssem agora não acrescentavam nada a não ser confusão. A oposição veria isso como o início do fim do Governo.

Cavaco Silva fez muitas remodelações e esteve lá 10 anos e recuperou a iniciativa política.

António Costa também estará em condições de avaliar o que é que isto representou. Ainda ninguém publicou uma sondagem sobre a imagem do primeiro-ministro, do Governo e da solução governativa depois dos acontecimentos de Pedrógão e Tancos. A mim parece-me que o crescendo em que estávamos, com tudo a correr tão bem… É visível que não estamos na mesma situação. Agora, o que isto representa não sei.