Cristina Almeida Serôdio não chegou agora à casa da literatura, e isso nota-se. Professora de Português e de Literatura Portuguesa com vários anos dedicados à formação de futuros professores, sabe mover os cordelinhos da escrita, madura, bem calibrada.
“A Casa das Tias” poderia ser a crónica subtil do Portugal salazarista, que bastante material dele incorpora: dos lençóis de linho duramente passados nos ferros de brasas aos cursos de Corte e Costura, dos livros de boas maneiras e suplementos para senhoras, “Evas, Modas & Bordados”, à telefonia dos discursos de Salazar, figura que paira sobre estas páginas como o espetro de um fantasma tutelar. E, de certa forma, é. Poderia ser também a transcrição ficcional de um feixe de vidas abastadas, atado por laços de sangue – fortes mas quebráveis. Ou uma coletânea de histórias de renúncia em que se vai fazendo tarde, cada vez mais tarde; os relógios da “Casa” marcam o tempo em fuga e anunciam a invernia do corpo em queda. E, de algum modo, também o é. Poderia ser ainda um exercício de baralhar, com lúdica lucidez, as relações entre vida e ficção, plasmadas numa escrita de acentuada compostura sintática e atenção extrema ao detalhe, suave mas firme, delicada, límpida, precisa, sem traços de maquilhagem supérflua, capaz de nos fazer voltar atrás para saborear de novo o poder encantatório de certas passagens onde reconhecemos a perfeição de estilo dos clássicos.
Traz a menção de género, romance, e desenvolve-se em curtos capítulos, alguns de tonalidade contidamente trágica, que oscilam entre o social e o recôndito subjetivo, convocando tanto os dias excecionais (“No comboio, os noivos”, “A festa”, “Os dias de Lisboa”) como o que há de menos imediatamente percetível na banalidade dos dias comuns e regulares. Mas faz pensar num poema narrativo que se desprendesse de uma temática definida para se alargar em manchas de contornos difusos que se expandissem em várias direções. Daqueles que se estendem e se retorcem, balançando entre a alegria dos dias aparentemente inteiros e limpos – vividos por Francisca e Teresinha quase à margem da História – e os dias quebrados e escuros que tanto contribuem para um clima de surda frustração, de uma tristeza mansa de domingos de missa, terços e “ave-marias ocas”.
Indiferente à seta dos encadeamentos cronológicos, trocados por uma discreta estrutura aglutinadora, o tempo é aqui uma unidade fraturada que balança entre o encanto de uma época de possíveis (“era só querer” – diria Ruy Belo) e o ceticismo desenganado. “A vida é mesmo uma tragédia”, lê-se logo nas páginas iniciais.
No seu centro, uma casa secular – a casa rural das tias solteiras de M. que, por inesperada herança, lhe veio parar às mãos. É essa casa, há muito fechada, que agora visita na companhia de uma velha amiga dos bancos de escola, a quem cabe inventar e compor uma história familiar construída a partir do que ouve e vê, feita de lances que sabem ler nas entrelinhas, criando hipóteses, supondo aquilo que não se pode saber – são verosímeis (diria Aristóteles), poderiam ter acontecido, são semelhantes a uma hipotética verdade. A narradora compraz-se a desmontar os mecanismos da ficcionalidade: “M. acha que são de folhetim estes bocados, que me desvio da verdade, invento muito.”
Falemos de casas, como naquele conhecido poema que abre o primeiro livro de Herberto Helder. À semelhança desse poema (“Prefácio”), a escrita deste romance, feito de cenas avulsas da vida familiar, episódios soltos, histórias de medidas íntimas, não é algo construído, assente em rígidas estruturas predefinidas que separassem o interior do exterior. É antes um movimento que se vai desenhando, que sabe chamar o outro e o leitor ao texto, acolhendo todo aquele que, vindo das mais diversas proveniências, aceite um momento de reflexão.
Matriz familiar, lugar pessoal e íntimo, espaço do afeto positivo em geral, da partilha, a casa converteu-se numa quadrícula apertada para os tios-rapazes, seis ao todo. A ocupá-la ficaram as tias, na sua “condição infecunda”, a esperar as cartas dos irmãos distantes, a gastar os dias sem cor nem rasgo, a varrer os sonhos quase antes de os terem sonhado, a imaginar existências alternativas, a assistir aos estragos da idade, insensíveis às bisnagas de Tokalon.
A dúvida, a hesitação, o espetro de uma eventual desilusão amorosa colaram-se-lhes à pele, incrustaram-se fundo. Cingidas à terra, ao viver da aldeia de Constantim, apenas interrompido por curtas estadias numa Lisboa de luzes e vazio, vivem “vidas côncavas”, como se a função inteira da existência estivesse toda no hospedar, no acolher. É aí que empregam os seus dons de mulheres aprumadas, capazes tão-só de dar vida ao manequim em que transformam o seu corpo.
Espécie de fadas a que faltasse o lar, uma casa toda sua, carregam a solidão das partilhas impossíveis, escavada a cada página. A certa altura, e desfeitos todos os sonhos, Francisca “senta-se na vida como num lugar estofado e certo, e é aí que feia e grande, sem a leveza frágil das meninas, decide ser rija e firme como um muro”. O amor pelo dinheiro torna-se mais importante que o amor pelos outros. A casa ressente-se, torna–se avara, ainda mais escura.
Falemos de casas. De casas pretas e brancas desse tabuleiro imenso em que a vida é sempre a perder: ocasiões falhadas, hipóteses jogadas ao ar, buscas de uma felicidade que se nega alcançar, simulacros de conjugalidade, sonhos desfeitos, corações em desarranjo, amores desacertados, desamores, porque cada um vem cair na casa para que estava destinado. Francisca não acredita no destino nem nas flores: “Gosta de mim, muito, pouco ou nada, pergunta aos malmequeres […]. uma a uma vai puxando com os dedos arqueados as pétalas brancas até ficar com um sim.”
Neste vasto campo de forças, a morte, sempre atenta às movimentações humanas, vai estendendo o braço longo para retirar peças fundamentais. Uma a uma, até a casa ficar vazia. Os retratos cumprem neste romance o papel que é o de todos os retratos: compensar ausências.
É claro que cada um escolhe a sua morada, e a de Cristina Almeida Serôdio é daquelas que se impõem pelo talento narrativo.