Casa dos tabuleiros, casa dos tambores, casa da caldeira. Depósito de chá, casa da secagem, casa de baixo, casa dos coches e casa do Pavão, nome devido a um antigo caseiro que lá morou, o Sr. Pavão, visita regular ainda deste lugar que não é plantação de chá mas já foi, porque como os Açores, como São Miguel, o Pico do Refúgio, um dos lugares a partir dos quais se pode contar a história da ilha, já teve muitas vidas. E a história é longa, registos que vêm do século XVII, altura em que poder não era coisa que importasse por aqui, ilha usada para cultivo. De laranjeiras quando foi o tempo, antes da praga que acabou com elas e obrigou à invenção, para virem o ananás, o tabaco e o chá.
Pois já se viu que foi chá o que se plantou por este pedaço de 20 hectares a Sul de Rabo de Peixe, antes de lá chegar quando se parte de Ponta Delgada. Foi a história que ouviu Bernardo Brito e Abreu dos mais velhos. Da mãe, do avô, do Sr. Manuel, caseiro tornado assistente de artistas – e já havemos de perceber porquê -, dos mais velhos que conheceu por Rabo de Peixe que lhe contaram que chegaram a trabalhar ali antes da crise que abalou o mercado do chá na década de 1950 ter começado a fechar fábricas até que sobrasse apenas uma que não fechou até hoje, a Gorreana.
A história do Pico do Refúgio foi outra. Acabou-se o chá a meio do século, trabalhadores, alguns, emigrados para Moçambique, que na ilha fechavam fábricas à velocidade em que na ex-colónia aumentava a produção. E à parte disso, e do pastel que se chegou a plantar aqui também, há o resto da história. Do tempo em que foi usado como forte, ponto de vigia da costa que se tentava defender dos piratas, de refúgio para miguelistas na guerra civil que opôs liberais a absolutistas, em 1831. “O conde de Vila Flor chegou com os liberais, desembarcaram na Ladeira Velha, e vieram até aqui, onde foi a batalha em que os conservadores tiveram que fugir e acabaram por se esconder em Rabo de Peixe.”
Quando o Pico do Refúgio chegou à família de Bernardo, marinheiro por muitos anos que se fez depois arquiteto, já vinha com nome. “O nome é muito antigo”, diz-nos enquanto vamos entrando para o jardim por uma zona que há 100 anos seria fábrica de chá. “Conta-se que vinham refugiados para aqui, exilados políticos, daí o nome”, explica-nos sem nenhum sotaque. A verdade é que não nasceu aqui, chegou para viver com os pais, regressados de Macau no Portugal pós-revolução, para passado alguns anos se mudar com a mãe para Nova Iorque.
À chegada, anos 70, o Pico do Refúgio não era mais que uma quinta abandonada, “um lugar que ninguém queria” que a mãe de Bernardo, escultora, tinha herdado. “Quando vieram de Macau a vida em Lisboa era demasiado confusa, então eles decidiram ficar com a quinta e reconstruíram-na, até aos anos 80, com o Manuel, que está cá há 40 anos e que tomava conta da quinta. Foram eles – o meu pai com o Manuel e o pai dele – que reconstruíram a casa, lá em cima. E nos anos 80 vivíamos aqui.”
Veio Nova Iorque depois, mas os regressos iam-se fazendo. Bernardo lembra-se dos verões em que a sua mãe, a escultora Luísa Constantina, levava alunos de Belas Artes de Lisboa para workshops, primeiro, depois artistas, escultores de Nova Iorque, onde continuou a dar aulas, para simpósios. “Foi aí que tudo começou.”
Candeeiros, cadeiras e um disco Thurston Moore
E tudo é a explicação para as obras de arte e peças de design que tínhamos encontrado à entrada do Pico do Refúgio, reaberto há poucos anos por Bernardo como turismo rural com oito lofts e apartamentos – Casa dos Tabuleiros, Casa dos Tambores, Casa da Caldeira, Depósito de Chá, Casa da Secagem, Casa de Baixo, Casa dos Coches e Casa do Pavão, espaços da antiga fábrica de chá e da quinta adaptados à hotelaria – a que se junta a casa que continua de Bernardo, a tal que viu o pai reconstruir há mais de 30 anos.
Quando estava prestes a abrir a quinta renovada ao turismo, Bernardo teve a ideia de pedir a uns amigos que desenhassem algumas peças de mobiliário. “Queria ter qualquer coisa de autor e tinha uns amigos, o João Abreu Valente e a Maria Pita Guerreiro, que são designers industriais e estavam interessados em fazer umas experiências com basalto”, recorda. “Então convidei-os a ficarem cá um mês em troca de me desenharem uns candeeiros e umas cadeiras. Foi o que fizeram.” E isso, com estes candeeiros em criptoméria, madeira abundante no Japão e nos Açores, que vemos na entrada, foi só o princípio do programa de residências artísticas que Bernardo lançava no Pico do Refúgio quase sem dar por isso.
Porque isso foi em janeiro de 2015 e logo a seguir vieram António Júlio Duarte (fevereiro), Tito Mouraz (março), Márcio Vilela (agosto) e Miguel Palma (novembro) para o que se foi transformando naquilo a que Bernardo já chama de programa de residências para o qual pondera abrir concursos no futuro. Porque da mesma maneira que a abertura do comércio do chá acabou com duas dezenas de fábricas e plantações no século passado, 2015 foi o ano da liberalização do espaço aéreo. “Acho alguma piada a isto, à logística monetária para missões impossíveis”, diz Bernardo. “E entretanto também tinha começado a estudar arquitetura porque estava farto da parte militar. Tudo isto começou a compor-se mas não veio de uma ideia, foi uma coisa orgânica. E de facto começámos a perceber que há muita procura e que a ilha é ao mesmo tempo um sítio de reflexão onde te consegues isolar e um ponto de encontro no meio do oceano onde as pessoas vêm dar de alguma forma.”
Depois daqueles artistas vieram outros, a um ritmo de seis ou sete por ano: Thurston Moore, dos Sonic Youth, escreveu aqui um disco, entre fevereiro e março de 2016, numa parceria com o festival de música Tremor, altura em que pela ilha andou também Gustavo Ciríaco a preparar o espetáculo “Gentileza de um gigante”, que apresentou depois em Lisboa, na Zé dos Bois. E vieram ainda Daniel Blaufuks e Cláudia Varejão, realizadora do premiado “Ama-San”, documentário sobre as mulheres mergulhadoras no Japão do qual tínhamos encontrado um poster à entrada. Aos artistas, o Pico do Refúgio oferece um mês de residência, com viagem, meio de transporte pela ilha e algum apoio à produção dos projetos. Em troca, cada artista deixa a Bernardo uma obra. E são várias as que vão formando esta a que podemos chamar uma coleção em construção.
“Entre aqueles que já estiveram cá, mas ainda não terminaram os trabalhos, há por exemplo a Cláudia Varejão”, que em novembro esteve no Pico do Refúgio a desenvolver um projeto de fotografia a partir da ilha e da sua comunidade que será o ponto de partida para o seu próximo filme. Enquanto aos hóspedes não chegam as fotografias, um poster do filme anterior assinala a sua presença. “Durante a residência, mostrámos o ‘Ama-San’ em dois lugares: em Rabo de Peixe, aos pescadores, e depois em Ponta Delgada”, recorda Bernardo, sempre dividido entre Lisboa, onde mantém o seu atelier de arquitetura, e São Miguel, onde gere o Pico do Refúgio com o projeto de residências artísticas.
“Decidi que não quero baixar a qualidade das residências, portanto recebo um artista por mês ao longo de seis meses”, habitualmente em época baixa. “São seis, às vezes sete, por ano e ficam um mês e até aqui o volume de artistas tem acabado por ser preenchido pelas dicas que eles vão dando uns dos outros, ou dos que eu vou conhecendo. E há sempre uma parte de que não me posso esquecer que é a questão de isto tudo ter que se conjugar com a hotelaria. Há trabalhos de que até gosto mas que não faz sentido estarem aqui – pela materialidade ou pela própria estética”, explica Bernardo, que tem mantido o programa sem qualquer tipo de apoio institucional, para acrescentar, sorrindo: “Depois tenho que me dar bem com as pessoas, porque no fim do dia isto é uma coisa muito pessoal. No fim do dia é o nosso quintal.”
A prova de que assim é está em Carla Cabanas, fotógrafa entre os artistas já confirmados para as residências do ano que vem, que quer trabalhar a partir das fotografias da família de Bernardo. “Sentimo-nos embrenhados nisto, toda a gente, desde o Manuel que está connosco há 40 anos e que já ajudava a minha mãe a fazer esculturas.”