Sobre a virulência predadora da escrita de Bolaño, Natasha Wimmer, uma das tradutoras que ficou responsável por uma compilação de ensaios fragmentários, artigos dispersos ao longo dos anos e alguns discursos alinhados na tabela da não ficção, disse que não era que ele fosse brilhante nesse campo acidental, simplesmente era o tipo de escritor que ia direto à jugular.
“Putas Assassinas” apareceu dois anos antes da morte do escritor chileno. É o último dos seus livros de contos. Reúne 13 fugas desalinhadas entre si, abraçando todo o azar, impregnadas da característica malevolência dos destinos dessas personagens e reflexos com que Bolaño rasga a própria carne. Autobiografia e ficção revezando-se num imaginoso dom de memórias, como se tudo pudessem ser ilustrações da vertigem com que um homem faz a barba ao espelho, magoando-se sem querer ou querendo, enquanto “os pelos da barba estremecem sobre gotas de água – agulhas de bússola” (a imagem não é sua, mas assentava aqui na perfeição).
Estão aqui os tiques narrativos todos sonhando à margem da desgraça. Exilados chilenos no México e Argentina, Espanha e França, esses alter egos que amarraram uma intimidade sufocada a portos tão distantes, os ambientes e as vidas que, passado muito, ainda gemem e denunciam traumas da violência. Figuras ensinadas a esperar o pior, a acatar certos lances terríveis e a seguirem com as suas vidas apesar de tudo. O livro arranca com a história de um tipo a quem chamam “o Olho”, Mauricio Silva, alguém que “sempre tentou fugir da violência mesmo correndo o risco de ser considerado um cobarde”. E em cima desta mesma frase, a lucidez cortante de Bolaño apressa-se a aduzir que “da verdadeira violência não se pode fugir, pelo menos nós não, os nascidos na América Latina na década de 50, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende!”
É um dos aspetos cruciais e incontornáveis desta obra, que funciona na sua globalidade como uma “obra-prima fraturada”, esta qualidade não tanto testemunhal como aclarativa, um juízo que regressa dos calabouços da História. Bolaño sabe como a literatura, com toda a sua afetação e a genialidade dos seus artifícios, só serve para alguma coisa se for capaz de um ajuste de contas que estremeça as consciências. Maltratada na sua vertente enquanto passatempo de medíocres bestas cultivadas, ela é afinal uma agência dos seres que esgotaram todos os seus recursos de apelação nas instâncias terrenas.
Destes contos emergem ecos vestidos da carne episódica que serve para enroscar uma lâmpada nalgum ponto perdido. A força desta escrita está não apenas na sua irresolução, mas em meditações que se misturam com a ação de modo irritável, numa energia que espelha na página a própria convulsão interior destes habitantes de uma realidade que surge sempre mal explicada. As figuras de fundo, os personagens usados como elementos sórdidos mas que, aqui, não são uma mera papa humana com um aziago gosto.
Do chiqueiro da derrota e do fracasso, Bolaño ergue momentos que fazem jus à sua reputação como pintor de um género de “realismo visceral”, na medida em que esta gente, ainda que imersa num labirinto de inflexões próprias de uma narrativa policial, não fica de joelhos sobre a sua circunstância, mas ganha um relevo que mostra a literatura como terreno da suspensão, recreio de assombrações.
Alguém dizia que a diferença do poeta para o comum dos mortais não está na sua capacidade de explorar outros sentimentos, de apelar aos processos do exotismo ou da estranheza. Nada disso. O poeta sente o mesmo que qualquer pessoa, mas melhor. Então, muitas das cenas descritas por Bolaño não são propriamente inéditas ou inesperadas, mas há nelas uma revisitação intensificada, aquela perícia em traduzir com particular eloquência ideias e sensações mil vezes sentidas por todos nós. E disto ele é capaz pela apreensão do mecanismo do choque e da violência.
Assim, vejamos a célebre passagem tantas vezes destacada do conto que oferece o impactante título a este volume: “As mulheres são putas assassinas, Max, são macacos transidos de frio que contemplam o horizonte numa árvore doente, são princesas que te procuram na escuridão, chorando, indagando as palavras que nunca poderão dizer.” Que se lixe a adequação, a moderação e todo o catálogo de sensaborias que o bom senso produz. Bolaño serve-nos a sensibilidade dos cabrões e das putas que a vida usou na hora de fazer o trabalho sujo.
O escritor chileno que, um ano após a morte, foi transformado na grande sensação das letras sul-americanas no início deste século, é um filho dileto da ira que desponta numa consciência do mundo despertada num período de imperdoáveis atos do poder. Ele tirou da violência os seus sentidos. Mesmo os processos da memória, esse exercício a partir do qual a identidade se forma, estão sensíveis como uma ferida, e aguçam e exageram e só sabem falar por cima da dor. Quer seja num estado de melancolia extenuada, quer assumindo esse desequilíbrio de quem já não consegue encarar o presente sem a tensão de qualquer semelhança que roce uma velha chaga.
Quando lhe perguntaram certa vez qual era o seu maior remorso, Bolaño respondeu: “São muitos, e deitam-se e levantam-se comigo, e escrevem comigo, porque os meus remorsos sabem escrever.” Depois, é claro, estão lá as marcas de um leitor que não se cansa de autoprescrever outros escritores, os imaginários que formam essa comunidade dos convalescentes quer do horror, quer da mera insipidez da vida. E então voltamos à saga dos “detetives selvagens”, os companheiros de viagem em diferido ao longo da História, os poetas, as ficções oraculares e elípticas, “a lírica que se autodevora” e os sonhos onde a realidade e a literatura são espelhos e abrem portas para o desconhecido. Há todo um desdobramento ritualístico em que se vê o chileno assumir os laços nesse sangue mais abrangente cuja circulação se projeta pelas arquiteturas da vida pensada, revista, aumentada com tremendas liberdades. Os escritores, uma vez mais, como traficantes desse sentido inimigo, de um ultraje que não se refreia com os anos, mas adquire finalmente os meios de vingança.
Os contos são desiguais entre si e dentro de si mesmos. Há páginas em que o ritmo se cola à sensação do tempo, este que já conhecemos e arrastamos pior ou melhor. Há os lugares que nunca teremos e pelos quais passamos sem vontade de segurar mais do que duas ou três linhas, as coisas que só ameaçam acontecer e aquelas que, quando acontecem, parecem esvaziadas de qualquer emoção, como acontece quando a vida envelhece e os refrães nos parecem cansados, música berrante de carrossel.
E, no entanto, o próprio tédio assiste a um contraste soberbo. As duas formas de cair sobre a presa, Bolaño domina-as na perfeição. Ou castigando-lhe os nervos até ao momento em que são precisos, revelando-se então imprestáveis, ou negociando um pacto de não agressão que será violado no primeiro momento de confiança.
“Putas Assassinas” é um livro de retalhos, de um escritor que nunca aderiu às “comunidades práticas” que fazem escola. Teve pouco interesse pelo sucesso dos grandes modelos lustrosos daqueles escritores como García Márquez e Vargas Llosa que fizeram o orgulho das letras latino-americanas. Preferiu manter-se do lado do desastre, depor contra a infâmia, manter-se insubornável aos efeitos da ilusão galvanizadora e o deslumbramento com o realismo mágico. Rejeitou a fantasia como virtuosismo literário e serviu-se dos mesmos recursos para, continuando o que tinham feito Onetti, Borges e Cortázar, “saber meter a cabeça no escuro, saber saltar sobre o vazio, saber que a literatura é, basicamente, um ofício perigoso”.