Aos 61 anos, Mário Cordeiro mantém o consultório na Av. Guerra Junqueiro, mas são variados os interesses. Dos projetos editoriais aos passeios com a Tenrinha, passando pela paixão pela história de arte, conversar é outras das coisas que gosta de fazer. Foi assim, ao sabor do tempo, numa manhã de verão em Lisboa.
Pai de cinco filhos, três a passar pela adolescência, o pediatra admite que a pedalada é diferente e os desafios também, mas a idade trouxe-lhe mais calma e sabedoria. Nos últimos tempos, sente-se um bocado pessimista com o rumo da sociedade e um certo umbiguismo dos mais novos. Disciplina-se desde cedo, avisa, sob pena de estarmos a criar uma geração de narcisistas.
É médico pediatra há mais de 30 anos. Tem cinco filhos, cinco netos. Ainda se surpreende com as saídas das crianças?
Acho que sim. Surpreendo-me sempre com o ser humano e com a sociedade, em constante mutação, com coisas inimagináveis há meia dúzia de anos. Como as pessoas resultam muito da sua interação com o contexto em que vivem, é natural que acabem por mudar.
Com toda a informação e estímulos, podemos dizer que hoje os miúdos estão mais espertos?
Não acho que isso seja verdade. Se calhar, para os nossos avós que só tinham uma telefonia, sabermos agarrar num comando de televisão e mudar de canal, mesmo antes desta parafernália de canais, era capaz de gerar a mesma reação de espanto que hoje temos com as coisas que os miúdos são capazes de fazer. Mas não acho que os miúdos sejam mais inteligentes. Têm um enorme acesso a informação, muitas vezes de mais. Uma informação que não chega a pouco e pouco, vem em catadupa. Coisas de menor de dimensão, não digo um acidente na Madeira, mas algumas coisas que hoje chegam na hora demorariam uma semana a ser conhecidas.
E isso traz consigo o quê?
Há um apelo maior a estarem informados, a procurar informação. Agora perceber o que se está a passar, saber relativizar, aí é que falha e isso não mudou. Mesma a relação com a tecnologia não terá nada de especial. Muitas vezes ouvimos dizer que o cérebro funciona como o computador… É o computador que funciona como cérebro. É uma extensão do cérebro em termos de funcionamento e isso leva a que quando estamos a pensar em alguma coisa, se pudermos materializar esse raciocínio puxando o rato para um lado ou deslizando o dedo, vamos fazê-lo. É intuitivo, os nossos avós e bisavós é que não o tiveram.
Ainda assim, uma das constatações dos mais velhos é que hoje os recém-nascidos até abrem os olhos mais cedo.
As pessoas é que não estavam despertas para que um bebé pudesse abrir os olhos tão cedo. Há pais que me perguntam: “Quando é que o nosso bebé começa a ver?” Vê ainda antes de ter nascido. É um dado cientifico irrefutável. Os bebés não mudaram, as pessoas é que não lhes ligavam como ligam hoje. O conceito era: o bebé come e dorme, interessa que esteja quentinho, mudar a fralda e dar-se uns miminhos, mas nos primeiros tempos era um sujeito passivo do amor dos pais. Só mais tarde, quando sua excelência começava a barafustar, ali a partir dos seis meses, é que se dizia que o bebé espevitava, isto quando desde o início vê, ouve, tem competências. A sociedade hoje dá mais atenção às crianças e, com isso, elas começam cedo a apreender tudo. Um bebé está aqui e olha para esta lata de Coca-Cola. Se nunca lhe disser o que é, não sabe. Se convive com os pais, se vê o pai pedir uma cola, vai identificando a lata, ligando as coisas. As crianças hoje têm esta excelente oportunidade de conviver com o mundo adulto, os pais falam mais com elas e elas vão pescando mais informação. Antes ninguém lhes explicava nada, é só essa a diferença.
Sente que já existe essa perceção generalizada da mais valia dos estímulos? Às vezes até aquela pressão do “se não fizer isto o meu filho vai ser um burro”?
Cada vez mais, às vezes em excesso. Poderá haver exceções, mas acho que a maior parte dos pais já sabe que uma criança tem bastante para dar e se, puxar por ela, terá mais hipóteses. Como um jogador de futebol ou qualquer talento: é preciso treino para dar alguma coisa.
A partir de que idade é que uma criança começa a ser manipuladora?
Desde cedo, mas isso é o normal. Em qualquer situação, uma pessoa tenta ver como conseguir o melhor para si. Um bebé a partir dos nove meses, um ano – quando já passou à história aquela angústia de saber se vai comer ou não, se estão garantidas as suas necessidades básicas – começa a sentir maior autoestima. Começa a perceber que consegue fazer muitas coisas em termos corporais, que consegue comunicar mesmo que atabalhoadamente. De repente sente: “Afinal não sou um suplente da equipa B, estou em campo na equipa A”, e isso dá-lhe uma pujança ao ego incrível. Numa fase em que uma criança se vê a partir de si, em que acredita que o seu umbigo é o centro de tudo e que é a pessoa mais importante do universo, começa essa manipulação. E depois quando os adultos pedem uma gracinha, para bater palminhas, o artista sente-se ainda mais no centro do palco e vai tentando fazer o que quer. Percebe que há um caminho a percorrer, coisas a conquistar e começa a ver os trunfos que tem. Aquele arzinho, o choro, a tossezinha para interromper o pai e a mãe quando sente que não é o centro das atenções, os guinchos. É tudo para testar até que ponto é capaz de manipular. Vê-se muito quando caem e reforçam a situação de fragilidade com aquele “dói dói dói”.
Educa-se a partir dessa idade ou é deixar passar essas primeiras fitas?
Acho que deve haver traços de educação coerente e consistente ao longo do tempo. Não é por acaso que uma pessoa aos 18, 20 ou 30 anos se revela ou se constitui uma pessoa narcisista, sem empatia.
Mas esse traço de personalidade já nasce em parte connosco, não? Qual é o peso da educação?
Toda a gente pode ser um narcisista. Claro que há fatores intrínsecos ou extrínsecos que podem levar isso a agravar-se ou não, mas vem sobretudo da falta de limitação externa. Todos nós somos candidatos, uns mais ou menos, mas todos preenchemos o papel de candidatura para sermos tiranos. Felizmente, depois, os nossos pais, a sociedade e até o nosso superego, o nosso polícia interno, intervêm: as pessoas aprendem que não é caminho e percebem que, além disso, não se iam sentir muito felizes. Agora isto reprime-se desde cedo.
Como?
O tal bebé que comeu, que está bem disposto no chão a brincar. Os pais finalmente vão para a mesa jantar e estão descansados. O bebé vê aquela cena e pensa qualquer coisa do género: “Olha-me aqueles meus dois escravos a libertarem-se” e começa numa guincharia. Aí não há hipótese: os pais têm de dizer “xiu, caluda. Agora estou a falar com a mãe e tu estás calado”. E mesmo que a criança continue a chorar, naquela vitimização de que ninguém gosta dela, os pais devem continuar a conversar sem dar muita atenção, sem se enervarem muito nem entrarem também naquelas grandes explicações: “não vês que eu tive um dia muito difícil no trabalho, etc..”
Não é pedagógico? Às vezes há essa tentação de falar com eles como se fossem mais crescidos.
Entrar nessas explicações que a criança não percebe não é muito produtivo, não percebe.
Depois, quando os pais são mais assertivos em público, acabam por surgir uns olhares recriminadores. Por exemplo, se uma criança desata aos berros no supermercado e se tenta dizer “parou”. É como se estivesse instalada uma certa vigilância…
Há uma certa vigilância que me parece idiota. Lá estão as mudanças na sociedade. Passou-se de um país onde se podia bater, zurzir e queimar crianças que ninguém se metia – e os vizinhos até sabiam mas “era lá com eles” – para um país onde há leis e regras contra os maus tratos infantis mas as pessoas estão muito mais indignadas e intrometidas. Exagerou-se. Passou-se de ver um pai espancar um filho e ninguém intervir para ver-se um pai que fala mais rispidamente e meterem-se logo na conversa a perguntar se aquele pai não esta a ser demasiado duro com o filho.
De onde vem essa inversão?
De uma certa vontade de fazer o bem, certamente, mas também de protagonismo e de necessidade de censurar o outro.
Acha que as redes sociais, tendo dado microfone a toda a gente, acabaram por alimentar essa imiscuição na vida dos outros?
Também. As pessoas gostam de ser justiceiras. Apanham ali uma cena que nem viram desde o início mas fazem logo o seu statement e depois voltam as costas com ar de Lucky Luke.
Há uma tentativa maior de proteção das crianças do que havia no passado. Tem o efeito desejado?
Acho que com a voragem do tempo e com a autonomia que conquistam nas redes sociais está a haver um certo paradoxo: têm muita informação mas esquecem-se de que a informação, só por si, não vale nada. Precisam de experiência e sabedoria. E depois acham que sabem muito, e como sabem muito, podem atuar pensando pela sua cabeça, mas não podem porque não têm maturidade. Há crianças de 12 anos que são mais altas do que a Marta. Porque não podem conduzir um automóvel? Se calhar usavam melhor toda a tecnologia. Não podem porque não têm uma visão sistémica: esqueciam-se da pessoa que vai atravessar a estrada, do semáforo. Essa visão de ecossistema não é algo que um adolescente possa ter. E, de facto, eles conseguem fazer tudo nos computadores, mas depois falta-lhes essa visão e esse filtro. A autonomia a navegar não é acompanhada de uma autonomia no pensar, no estruturar ideias e na tomada decisões. Resultado: temos bebezolas enormes convencidos de que sabem tudo e que vivem muito no hoje, no agora. É levantarem-se de manhã, aguentar uns “stôres” pelo caminho e depois dominar nas redes sociais e as mensagens.
E os pais?
Muitos pais deixam andar e vai faltando uma visão mais a médio prazo. É importante um jovem ter noção de que o seu percurso escolar se dirige algures e o que é que pretende desse algures. Tomar decisões, pensar a médio prazo não é compatível com querer viver só o hoje.
Os adolescentes não foram sempre um bocado inconsequentes?
Não tanto, parece-me. Os pais acabavam por estar mais disponíveis para coisas tão simples como ensinar a mudar um pneu de um carro ou a construir um móvel e aplicar bondex. Há coisas que se perderam.
Mas não será também porque hoje os sonhos parecem mais difíceis de concretizar, maior precariedade no trabalho.
Não creio. O que acho é que se contemporiza hoje mais com a falta de rigor e com o “tanto faz como fez”. Em coisas pequenas. Ali perto de casa há uma zona de calçada portuguesa que tinha um desenho simétrico. Quando vieram arranjar umas caixas e foi preciso calcetar de novo, puseram tudo à balda. Nem é uma questão de esforço, porque pôr as pedras de uma maneira ou de outra ia dar ao mesmo, mas é uma questão de brio e de perceber que havia ali um desenho que era importante completar. Mesmo que isso não interessasse nada ao calceteiro.
De onde acha que vem essa erosão do brio da sociedade?
Odeio generalizações, mas vem muito da família, da escola e da sociedade, deste viver apenas o hoje. É uma sociedade que se está a demitir de reconhecer o brio, desde miúdos. Limita-se a estas coisas dos rankings, dos quadros de honra, que são sempre instrumentos muito enviesados dependentes de duas ou três disciplinas e que não avaliam o estudante como pessoa.
Vive perto de uma escola pública que este ano esteve no centro de uma polémica na altura de inscrições, com suspeitas de moradas falsas. Como vê esta corrida ao Liceu D. Filipa de Lencastre?
Há outros casos assim em Lisboa, no Porto ou em Coimbra. São escolas que atingiram patamares de excelência educativa, mesmo que os alunos digam sempre que há “stôres” horríveis. O facto é que há escolas e escolas e esta é uma boa escola. Conheço bem, os meus filhos estudaram lá.
Percebe os pais que sentem a tentação de apresentar uma morada falsa?
Percebo que exista uma tentação de pensar em fazê-lo. Sobretudo se uma pessoa até vive perto e vai demorar mais tempo no trânsito para pôr o filho na escola dele e que nem tem tantas atividades. Se o critério é a morada, deixa-me cá arranjar… As pessoas obviamente fazem-no. Não é legal, mas como toda a gente faz… E sobretudo porque há uma sensação de injustiça: se morar naquela rua pode e naquela outra já não pode.
Não é preocupante que se formem depois estes guetos de bons alunos, escolas muito concorridas e outras que ficam com os alunos que sobram?
Acho que não se formou um gueto. Estive na associação de pais durante nove anos e o que conseguimos foi desenvolver muitas atividades extracurriculares em conjunto e ir além das disciplinas centrais.
E isso é replicável em todas as escolas, mesmo em bairros mais problemáticos? Esta é uma zona de Lisboa com maiores rendimentos.
Creio que aqui mais de 90% dos pais têm licenciatura, mas acredito que é possível. Não é uma licenciatura que dá capacidade de empatia, de solidariedade. É preciso olhar mais para os alunos, perceber de que é que eles precisam, repensar a forma como se dá aulas. Parece-me que a imaginação dos professores tem de melhorar um bocadinho em muitos casos. E depois os pais podem formar associações, mobilizar-se. Em Lisboa há protocolos com as câmaras para financiar as atividades extracurriculares. Se a escola não tiver ninguém disponível para fazer esse trabalho, vai contratá-lo a uma empresa, que cobra x por esse serviço. Se a associação de pais gerir esse dossiê já sobra mais dinheiro para aplicar nas atividades.
Mas pais de uma boa escola se calhar estão mais motivados.
Isso tem muito que se lhe diga. Quando estava na associação de pais da EB1 eram 400 alunos, 800 pais e mães, e apareciam à roda de 10 a 15 pessoas. E digo-lhe, muitas vezes era angustiante. Éramos mais da associação do que os pais a aparecer. Os pais nunca foram muito às reuniões. Gostam que se faça, mas não aparecem. Claro que às vezes a pessoa pensa: para que estou aqui em vez de ir para casa? É o tal espírito de missão. E quando há ideias giras e isso tem algum eco na direção das escolas, mais motivação ainda.
No fim do ano letivo, uma das suas crónicas no i condenava a postura de Mário Nogueira e da FENPROF por terem feito greve num dia com exames. Vê nos professores um dos problemas do ensino?
Conheço professores excelentes e professores horríveis. Acho que a posição do sindicato é constantemente de defesa de uma série de coisas que compreendo que precisem de ser defendidas, mas se calhar devia haver uma Ordem dos Professores, para se focar mais na parte pedagógica e académica, para ver como os alunos poderiam aprender mais.
São, ainda assim, uma profissão um pouco maltratada. Suportar grandes deslocações, estarem até a última sem saber onde ou se vão ser colocados.
Isso sem dúvida, relatos como vemos de professores que se levantam às 5 da madrugada para ir dar aulas são inacreditáveis. E não percebo como é que estamos para começar as aulas e nem os professores sabiam onde iam estar colocados, nem os pais sabem os horários. Sendo o número de alunos algo bastante previsível, tirando uma criança ou outra que emigra ou muda de escola, em abril devia-se fazer logo tudo para que as pessoas, quando fossem de férias, soubessem mais ou menos com o que contar.
Esta instabilidade não contribuirá para uma depreciação do papel do professor?
Parece-me que contribui para uma certa desvalorização. Mas há muitas coisas que deviam mudar. Em primeiro lugar é errado que continue a chamar-se Ministério da Educação e que não seja Ministério do Ensino e da Aprendizagem. Isso fazia logo a diferença. Educar remete para uma relação paternalista quando não é isso que se pretende. Depois creio que as matérias deveriam ser reduzidas no sentido de perceber o que interessa saber. Multiplicar potências: para que é que isso serve em termos práticos?
Podemos sempre argumentar para que servem outras matérias em termos práticos, a História…
É diferente. A História serve de contexto, mostra como o ser humano interage em sociedade. Agora, multiplicar potências… Depois é preciso acabar com aquelas aulas de hora e meia em que os alunos, coitados… Quando vou às reuniões de pais sento-me naquelas cadeiras e, passado uma hora, é uma sova de cadeira.
Quanto tempo é que um miúdo está concentrado?
Uns 16 a 18 minutos.
Isso também não dava para nada.
Não era preciso acabar a aula, mas fazer uma pausa ali ao fim de um quarto de hora, dizer agora vamos lá espreguiçar-nos, falar de outra coisa qualquer. Um bom professor não tem de ter medo de estar a falar de matemática e parar para comentar um golo do Ronaldo no dia anterior, o atentado em Barcelona.
Tem um professor que o marcou?
Tive vários. Tive o Rómulo de Carvalho no Pedro Nunes, que fazia as coisas assim. O Jaime Leote a Matemática.
Porquê esses e não outros?
Íamos para as aulas deles com gozo. Íamos aprender.
Hoje os miúdos conseguirão ter esse sentimento? Conseguem ir à internet ver tudo.
A internet não ensina. Permite saber tudo, mas não fornece as ligações. Antes o professor era a fonte principal de informação. Uma pessoa que soubesse ler, escrever e contar tinha mais hipóteses de passar de uma profissão no campo para outra com melhores perspetivas. Bastava. Isso hoje é um dado adquirido, o ensino tem de mudar. O que é preciso é dar competências, potenciar os talentos. Porque é que os alunos têm todos as mesmas matérias? Porque é que não há mais aulas interligadas? Não fazia mais sentido as Invasões Francesas serem dadas pelos professores de História, Português e Francês em conjunto? Creio que é necessário interligar mais as coisas. Porque se é só para despejar a informação, é como diz, há a internet. E depois acho que seria preciso refletir sobre onde é que estes miúdos que têm hoje 15, 16, 17 anos vão estar daqui a 20 anos e de que é eles vão precisar.
As profissões do futuro?
Sim. Podemos falhar nessa análise, mas já temos alguma noção. Tivemos alguma disrupção, mas mesmo na tecnologia ultimamente não tem havido nada de muito novo. E mais assustador para mim: há décadas que não há uma ideia filosófica nova. Produzem-se teorias económicas, produzem-se vipes do “morte ao estrangeiro/venha o estrangeiro”…
Como a turismofobia em Lisboa.
Sim. Esta discussão do “és pró ou contra” turistas é um disparate.
Não se deixa contaminar?
Não, pelo contrário. Pois se eu adoro ser turista, não havia de gostar que os turistas viessem ao meu país? Na minha rua já há oito alojamentos locais. A passear a Tenrinha à noite era o deserto total e agora é menos, sinto uma maior segurança. Mas o que queria dizer é que temos estas reações umas atrás das outras e menos reflexões de fundo sobre quem somos, para onde vamos. Está-se a viver o dia a dia sem pensar globalmente. Era preciso mais Eduardos Lourenços.
O que mudou?
As pessoas distraíam-se menos.
Não eram tão forçadas a pensar sobre os casos que se sucedem, sobre o debate do momento.
Às tantas cansa.
Vivemos este verão o drama dos incêndios. Perdeu um familiar bombeiro.
Vivi-o de perto e sinto que muitas vezes a discussão devia ser mais contida. Como no terrorismo. Mesmo antes de Barcelona todos os dias havia uma notícia de fulano que esfaqueou, atropelou. À boleia do terrorismo noticia-se tudo e questões como a violência doméstica, que continua a existir, ficam para um segundo plano.
A discussão mediática diz alguma coisa às famílias enlutadas?
São esferas diferentes. É evidente que tem de se perceber tudo o que se passou para que não se repita, como em qualquer coisa que corre mal, mas isto evidentemente demora tempo. O timing das famílias não é nem podia ser o timing da investigação. Para a família, a dor é tão grande que a pessoa tenta arranjar explicações, responsabilidades, como quando se tem um cancro e se pensa se o médico não podia ter visto mais cedo a massa. Mas é demais. Veja-se o caso do avião que aterrou na praia. No próprio dia passados minutos já havia especialistas em brevês a dizer tudo e mais alguma coisa, como se pudessem saber ao certo o que se passou.
Esta discussão piora o luto das famílias?
Piora, sem dúvida. Para não falar de quando dá ideias, basta ver os casos em que pessoas com problemas mentais copiam ataques com facas e carros, mesmo sem uma intenção terrorista. Ou a transmissão dos fogos nos casos dos pirómanos. Uma vez vi um pirómano falar do prazer de ver as labaredas. Ele não via a floresta a ser destruída, falava do cheiro da lenha a queimar, daquele crepitar, uma experiência sensorial que lhe dava prazer. A televisão ao transmitir isto, na minha opinião, potencia novos casos. E há outros efeitos colaterais. As pessoas ficam assustadas e até se sentem quase complexadas de estar a desfrutar das férias. E depois tudo o que é em overdose dessensibiliza. O nosso sistema imunológico funciona assim. As pessoas estão muito alérgicas aos ácaros fazem vacinas até saturar o mecanismos de resposta. Aqui acontece exatamente o mesmo.
Qual é o perigo da dessensibilização?
É a banalização do mal de que falava Hannah Arendt. Um certo alheamento. Esta repetição até exaustão das mesmas imagens não faz nada bem. Andamos a dizer aos pais que deve haver poucos estímulos antes de ir dormir, uma história para adormecer e depois os adultos vão para a cama assustadíssimos à espera que rebente a bomba. Dormem mal, andam irritáveis. Isto é acentuado no meio urbano. No meio rural, acha que aquelas pessoas estiveram a noite toda a ver os debates na televisão quando têm de acordar cedo para ir para o campo?
Estamos a terminar o período de férias. Parece um paradoxo, mas para muitas famílias são um período de stress.
São. As férias não deviam ser uma repetição da vida do dia a dia. Deviam ser um polo endorfínico, de calma, para quem tem um polo adrenalínico no dia a dia. Ou o contrário, para quem tem um dia a dia mais tranquilo. O que se passa é que as pessoas organizam muito mal as férias. Planeiam tudo, o hotel, a praia, o sítio, mas não pensam naquilo de que estão a precisar física e psicologicamente. Parece que há uma vergonha de dizer não fui ao Algarve, não fiz uma viagem, não fui às Seychelles. E depois esgotam-se nisso, mais no dinheiro que têm de arranjar. Como vivemos numa época de muito show off, de selfies, de mostrar nas redes sociais onde estamos, dizer que estou no Gerês tem menos sucesso do que dizer que estou nas Seychelles. Então se a pessoa puser que ficou em casa a dormir ou foi passear o cão…
Pensam que está deprimida.
Possivelmente. E depois, como as pessoas vão ver o número de likes e comentários, o “ah que lindo”, “que inveja”, com não sei quantos “eeee”, é uma ditadura terrível. As pessoas não são verdadeiramente livres: só sabem o que foi bom ou mau consoante os likes que têm.
Perde muito tempo com as redes sociais?
Zero. Tenho uma página de Facebook onde não meto nada, as pessoas é que de vez em quando metem lá coisas.
Nem a seguir os seus filhos?
Os mais velhos não metem grandes coisas, os mais novos menos. É mais o Instagram, gostam de fotografia.
Os mais novos já têm telemóvel?
Os mais novos têm 14, já têm. Mas tento passar-lhes que há mais coisas a fazer, nomeadamente ler, ir passear o cão, conversar. Interagir.
É fácil fazer a gestão enquanto pai?
Tem de ser pelo exemplo. Nem eu nem a minha mulher andamos no Facebook nem agarrados ao telefone à hora das refeições.
Já teve aquela cena de ter pai, mãe e criança de telemóvel na mão na consulta.
Já. Numa das crónicas no i escrevi sobre uma adolescente que não largava o telemóvel.
Foi na crónica em que falava dos pais-multibanco.
Muitas crianças veem os pais assim. É “o pai dá, o pai compra”. Como não sabem a história da família, não têm sequer ideia do custo das coisas. Que o avô ou bisavô nasceu numa aldeia, que ia de bicicleta na neve para a escola. Não lhes interessa sequer saber. “Lá vem a história do pobrezinho”. Acho mesmo que os jovens estão a recuperar uma faceta narcísica do “tenho direito a tudo”.
Não será um gap geracional… está a ficar mais velho, menos tolerante com as falhas das gerações mais novas.
Talvez, mas existem diferenças. Quando éramos miúdos tudo era uma oportunidade para nós. Quando fazíamos InterRail era com pouco, íamos ao supermercado comprar comida, ficamos sentados a conversar, a observar as pessoas. Hoje os miúdos querem mais coisas e ao mesmo tempo são muito mais apegados aos pais.
Sente isso nos seus filhos mais novos?
Sim, talvez. Este ano tentámos mandá-los para campos de férias, fazer coisas diferentes. Se não depois cria-se uma rotina em que eles acomodam-se a este conforto – terem cama e roupa lavada, terem televisão, acesso à internet – e para eles é o status natural da humanidade.
Uma proposta nas suas crónicas era mais trabalhinhos de verão.
Sim, não faz mal a ninguém. Uma das tarefas deles foi andarem a pintar umas paredes lá de casa, a apanhar o lixo. Tem de ser. Podia pagar a alguém, mas havia tinta e, em vez de chamar alguém, fizeram eles. Até para eles perceberem que quando tiverem a sua independência económica não vão ter dinheiro para tudo, a menos que ganhem o euromilhões ou façam algum negócio escuro. É fazê-los perceber de alguma forma que não vão ter um T4 com vista para o Tejo, vão arranjar um T1 ranhoso algures e fazer a sua evolução e isso não tem de os fazer infelizes. Se tiverem uma vida interior intensa, uma vida cultural e relacional, serão felizes na mesma. Mas confesso-lhe que estou apreensivo com as gerações mais novas…
Pessimista?
Sim, um bocado pessimista com o desinteresse e ignorância que se vem instalando.
O que lhe faz mais confusão no consultório?
Às vezes a ignorância de pais e filhos sobre factos ou até palavras da língua portuguesa. Wittgenstein tinha razão quando dizia que o que mostrava a evolução das sociedades era a evolução da palavra. Desde os “grunfes” da pré-história, o ser humano teve necessidade de arranjar designações para as coisas que conhece, de construir frases elaboradas. A escolha da palavra numa sociedade evoluída não é à balda. E hoje muitos adolescentes estão com uma linguagem paupérrima.
Sempre houve o calão, o bué.
Não é o bué, é o que fica para lá disso. E o que fica é um discurso muito pobre. Não há aspetos metafóricos, não há associação a memórias. Acho que antes havia mais imaginação e criatividade.
Os mais pequenos têm-na.
Sim, mas depois perdem. Acabam formatados por uma escola que não estimula a criatividade nem o pensar pela cabeça. E depois diz-se que há muitos miúdos hiperativos: havê-los há, mas há sobretudo muitos miúdos que não conseguem estar ali encerrados naquela prisão, onde há menos recreio do que uma prisão a sério. As horas de recreio numa prisão são superiores às horas de recreio numa escola primária.
Depois das férias, como se desacelera os miúdos?
Muitos estarão com vontade de regressar. As férias para as crianças tornam-se um bocado repetitivas. Para os mais novos são totalmente disruptivas: mudanças de casa, de pessoas, come-se quando se come. E por isso é importante, uns dias antes do regresso, começar a haver um reset, entrar nos ritmos de dormir. E depois eles dizem “mas amanhã não tenho aulas”. É começar a deitar mais cedo, gradualmente. E começar a refrescar a memória sobre as matérias dadas no ano anterior. Não é estudar, mas reler para que haja alguma sequência. Não vai tirar mais que meia hora por dia.
A última vez que falámos com mais vagar há dois anos ia aprender violino para acompanhar um dos filhos mais novos. Conseguiu?
Aprendi, comecei no final desse verão, tenho aulas e tento todos os dias estudar um bocadinho.
É muito diferente ser pai de um adolescente aos 60 do que aos 30?
Começam logo por ser realidades diferentes: os anos 80 são diferentes de 2017. Mas é sempre um desafio. Já não tenho aquela pedalada enorme, mas tenho uma calma e sabedoria maior.
Qual é o projeto para a rentrée?
Vou publicar um livro sobre vacinas. Estou a escrever outro sobre “pais sem pressa”.
O seu estilo?
Sim. Será sobre como contrariar esta corrida para nenhures, uma maratona sem meta à vista que não faz qualquer sentido. E dar dicas para, no dia a dia, viver com mais calma sem ser preciso enfiarmo-nos numa gruta na Serra da Estrela. A nível pessoal tenho dois livros de poesia mas há ideias para peças de teatro, romance. E depois leio livros e livros de História de Arte.
Concluiu há poucos anos o curso.
Sim e muda a perspetiva. Ainda agora em Salamanca… Não é que tenha alguém para impressionar, mas percebendo porque é que há umas igrejas mais escuras e outras mais claras, o porquê dos arcobotantes, tira-se mais das coisas.
Onde gostava de ir?
Itália, é um repositório de arte. Gostava de voltar à Toscana.
E em Lisboa, quais são as suas paragens prediletas?
Em termos de museus, o Museu de Arte Antiga, o Museu do Azulejo e agora quero ver se vou à Cordoaria ver a exposição dos guerreiros. Também queria ver a do Van Gogh. Foi um dos primeiros museus que visitei no InterRail, em Amesterdão. Lembro-me que escrevi um poema muito emotivo sobre a vida dele.
Ter sido um pintor incompreendido.
Sim, estava lá sentado e foi uma reflexão sobre aquela dicotomia de estarmos ali num museu moderno a admirar as obras ignorando o sofrimento da vida dele.
Sente-se mais sensível hoje a essas ironias?
Sempre gostei muito de refletir e de ler compulsivamente o que me faz talvez irónico, às vezes sarcástico. Felizmente a minha mulher partilha essa paixão comigo e os miúdos também vão crescendo nesse ambiente.
Que livro o tocou este verão?
Gostei imenso de um que é em homenagem à minha parceira, um livro sobre um beagle, “Uma Prenda para Bertie”.
Sente que a Tenrinha é como um filho?
Não é… Mas que sinto que faz parte da família sim. E que respeitar os animais e natureza é uma melhor forma de respeitar a humanidade. Não ponho cães aqui e humanos ali, é tudo parte da natureza. Um dia que tivemos de abater uma árvore na Lourinhã quase que chorámos. É um bocado pueril, mas ponho-me a pensar o que é que esta oliveira já viveu, há quantos séculos está aqui. E acho que a natureza faz-nos ver o quão ridículos somos. Entrei na faculdade com 16 anos. É um bocado disto que falo. Os tempos eram outros, mas com a idade dos meus filhos já debatíamos a existência de Deus, as questões metafísicas, a guerra do Vietname e hoje acho que conversam menos sobre estas questões. Não éramos um grupo de contestatários, mas discutir aquelas coisas dava-nos um gozo enorme, exercitar a teorização, filosofar, debruçarmo-nos sobre a vida.
É a prescrição para a rentrée?
Sim, muito mais filosofia, procurar perceber o outro, não rotular logo e olhar mais para a beleza natural e possível à nossa volta, sabendo que o mundo tem coisas más. É bom compensar esse lado agressivo com a beleza, as folhas que começam a cair. Deleitarmo-nos com a nossa existência. Não é no leito de morte que vamos ter tempo para isso.