Que balanço faz do primeiro dia de greve?
Tivemos oscilações entre 60% e 100%, com uma média de 85%. O Hospital de S. João teve a maior adesão, de 100%.
Esta greve tem a particularidade de não ser apoiada por todos os sindicatos de enfermeiros. Como é que o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP) diz que as negociações estão a decorrer e existe este ponto de rutura?
A lógica é esta: o sindicato afeto à intersindical (CGTP-IN) é o SEP.
Portanto mais próximo do PCP.
Sim, muito próximo. O SEP está a ser comandado por Ana Avoila, que dirige a frente comum dos sindicatos da função pública, que são 35. É a cereja desse bolo. E portanto, este sindicato está de facto a negociar, mas está a negociar um regime geral para carreiras gerais no Ministério das Finanças.
Também estão nessas negociações?
Sim. Há três grupos em negociações no MF para essas carreiras gerais: um desses é a frente comum, outro é a FESAP com José Abraão e a UGT e outro é a Helena Rodrigues, do STE – Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, grupo do qual nós fazemos parte. Mas são negociações que se aplicam a todos os trabalhadores do Estado. Depois há carreiras especiais, como são os enfermeiros, cujas especificidades têm de ser negociadas nas respetivas tutelas. E é isso que nós tencionávamos fazer. Isto não é por vaidade, é pela especificidade do trabalho.
O Sindicato dos Enfermeiros a que preside é afeto à UGT.
O SE é fundador da UGT e o outro sindicato que convoca a greve é independente.
Sendo a UGT mais próxima do PS, porque é que os sindicatos mais à esquerda estão aparentemente mais satisfeitos do que um sindicato mais ligado ao partido no governo?
A UGT é uma central sindical predominantemente ocupada por professores e bancários, os enfermeiros têm estado um bocado à margem. Veja: os paramédicos, por exemplo, já resolveram os seus problemas porque têm uma paramédica no executivo da UGT. Os outros não podem fazer nada que não seja controlado por Ana Avoila, que com a enfermagem reduzida a uma simples carreira engrossa a sua fonte de influência. Avoila percebe de hotelaria mas não percebe nada de enfermeiros nem da problemática da enfermagem.
Esta aparente divisão entre sindicatos não refletirá também o facto de estar em negociação o Orçamento do Estado nos partidos à esquerda?
É isso também. Há um provérbio popularíssimo que diz: “dividir para reinar”, assim governa-se muito tempo. Uma questão que pode colocar-se é: porque é que os médicos, tendo as mesmas tendências sindicais que os enfermeiros – com sindicatos mais à direita e mais à esquerda – têm uma só frente negocial no Ministério da Saúde? E porque é que os nossos sindicatos, tendo tendências comunistas e não comunistas, estão divididos? O objetivo é que quando se entretêm a macaquear-nos, vão levando água ao seu moinho.
Quem é que vai levando água ao seu moinho?
Sobretudo a corporação médica.
Mas o que têm os médicos a ver com este impasse na enfermagem?
Tudo. O ministro da Saúde é médico, o secretário de Estado Adjunto da Saúde é médico e só o outro secretário de Estado é que não é médico, mas tem de estar de acordo com os médicos porque ganhou esse jeito nos muitos anos em que foi administrador hospitalar de carreira. Toda esta engrenagem tem como consequência final o dinheiro. E o facto é que os médicos são 14% dos funcionários do ministério e ganham 87% da massa salarial total. Os enfermeiros são 33%, portanto um terço e o dobro dos médicos, e junto com os outros profissionais recebem os outros 13%. Aqui começam e acabam todas as dificuldades que o senhor ministro tem. O seu potentíssimo lobby, ou seja a corporação médica, não permite interferências alheias.
O facto de o Presidente ter reunido ontem com o bastonário dos Médicos é reflexo dessa influência?
Não creio. Essa reunião estava pedida para quinta-feira, mas como o Presidente esteve em Andorra teve de ser adiada. E Marcelo já deu o toque a dizer que gostava de ver diálogo. O ministro da Saúde está a fazer as coisas de forma muito desonesta. Primeiro tentou circunscrever o conflito às parteiras, quando é geral. A luta é geral, para que haja chefias e categorias próprias para assegurar a eficácia e segurança do nosso trabalho, o que hoje não acontece. Estamos a ser telecomandados pelos interesses dos outros. Um médico quer sair depressa do hospital, vai buscar a enfermeira e anda à sua volta para resolver os problemas e os doentes ficam em segunda plano. Não queremos isto. Um médico tem o seu trabalho e a enfermeira tem o seu. Se o médico tem os seus problemas a resolver e precisa da enfermeira, é uma coisa, agora andar ao serviço dele é outra. É um pormenor mas perturba o dia a dia. Depois veio com a questão da irregularidade.
Que garantias dá de que o protesto foi devidamente marcado e que os enfermeiros que aderirem não vão ser prejudicados?
Uma greve é anunciada. O anúncio não é ao ministro nem ao primeiro-ministro, é ao povo. Recuando um pouco, nós a 20 de abril decretámos uma greve de zelo. Foi o mesmo: não sabiam o que era, não sabiam se era legal. Tivemos de invocar um acórdão do Supremo Tribunal onde os juízes faziam greve de zelo. Depois de descredibilizarem a nossa greve de zelo, passamos à fase seguinte.
Já este verão.
Sim. A 20 de junho decretámos uma greve de 31 de julho a 4 de agosto. Eram cinco dias, com os mesmos moldes desta. A 20 de julho, foi o senhor ministro que nos chamou para uma reunião às cinco da tarde depois de um Conselho de Ministros, estava a greve para ali a dez dias. Eu ouvi-o, deu a palavra de honra de que ia negociar e deu-me carta branca para fazermos um protocolo negocial. Nós suspendemos a greve e os colegas de obstetrícia suspenderam o protesto que estava a decorrer em paralelo.
E depois?
Na segunda-feira seguinte entreguei um protocolo negocial. Fomos à Administração Central do Sistema de Saúde, aceitaram o nosso protocolo e começámos a negociar. O que é feito em primeiro lugar? Linhas orientadoras para a negociação, baseadas num arquivo que eu tinha com todo o processo em 2009. Selecionaram o que era mais importante e definiram essas linhas. Negociámos duas semanas. A 16 de agosto apresentámos um projeto completo de acordo coletivo, sobretudo com a definição de competências, categorias e tabelas salariais.
Questões em cima da mesa há dez anos?
Sim. Quando a carreira especial de enfermagem foi definida em 2009, ficou definido no artigo 22.º que as normas podiam ser revistas em contratação coletiva. E é por isso que nos batemos. Os médicos têm um artigo semelhante na carreira deles, que foi publicada aquando a nossa e ainda nesse ano celebraram um acordo coletivo, que é o que nós estamos a tentar fazer agora. Já o reviram várias vezes mas têm essencialmente dois acordos coletivos e nós nenhum.
O ministro da Saúde disse na sexta-feira que a aplicação da vossa proposta no próximo ano seria um encargo superior a 120 milhões com alguns aumentos de base de 100%, de mil euros.
O ministro tem a vantagem de ter uma expressão fácil. Mas esquece-se que a proposta que fizemos tinha três fases, isto em termos salariais, para que os enfermeiros tenham um aumento de 800 euros até 2019.
Os enfermeiros na base da carreira?
Sim, mas basicamente só existem enfermeiros na base da carreira: não há progressão, não há chefes, não há especialistas. Estamos a falar dos enfermeiros que ganham hoje 1200 euros brutos. Em 2017, o que propomos é que aumentassem 400 euros, ficando iguais aos paramédicos, nutricionistas, psicólogos, a todos os profissionais de saúde que têm licenciaturas como nós. Ou seja, com um vencimento de 1600 euros. A diferença dos enfermeiros para esses profissionais é que não têm o grau de complexidade funcional 3. Estes 400 euros são 50% do aumento que propomos. Em 2018 propúnhamos mais 200 euros, para 1800 euros brutos. E só no orçamento de 2019 ficaríamos então com os 2020 euros.
E aí seria um vencimento superior ao dos médicos em início da carreira?
Nem de perto nem de longe, isso é quando se compara com os internos, que têm um exercício tutelado. Um assistente começa com um vencimento 2746 euros brutos, portanto os enfermeiros ficariam 720 euros abaixo dos médicos. O ministro não falou verdade e os números baralham as pessoas.
Acha que existe ainda uma excessiva valorização do trabalho médico?
Pois, é o problema da mística. Os gregos fizeram o caminho do mito à razão, inventaram a lógica. Os médicos é o contrário: partiram da razão para o mito. Tudo é medicina e os outros andam à volta. É um erro crasso. Os médicos não fazem nada sem os enfermeiros.
E os enfermeiros fazem alguma coisa sem os médicos?
A diferença está aí. Os médicos precisam dos enfermeiros para fazer quase tudo e nós precisamos dos médicos para fazer algumas coisas. Na cirurgia, são os médicos que operam, somos nós que recuperamos os doentes. Tem de haver um equilíbrio e é por isso que lutamos.
Que atualmente não existe?
Está claro que não existe. Se um quarto dos funcionários do ministério da saúde levam 87% do bolo, não há hipótese de haver harmonia. Os enfermeiros têm estado calados porque têm andado atrás de promessas. Voltando à situação atual: começámos a negociar e a 16 de agosto apresentámos um projeto concreto. Terá sido essa a surpresa, não pensaram que fizéssemos o trabalho de casa.
Mas a vossa proposta não acaba por coincidir com as reuniões no Ministério das Finanças?
Não, são coisas gerais, como quando é que se descongelam as carreiras. As especificidades da carreira são negociáveis nos respetivos ministérios e o SEP não está a negociar nada com o ministério da Saúde. O chefe de gabinete do Secretario de Estado Manuel Delgado, quando recebeu o nosso processo, disse-me: “Eu nunca cá vi o SEP a negociar nada”. Aquilo saiu-lhe e revela o ponto de situação. Mas depois da proposta, o Ministério começou a entreter-nos. Tivemos mais uma reunião em que puseram defeitos na proposta. Ficámos a aguardar. Isto estava a ser negociado com a ACSS e entretanto o secretário de Estado Manuel Delgado marcou-nos uma reunião para 3 de setembro, onde nos disse claramente que estávamos a pedir um salto de canguru e o ministério só podia dar um salto de minhoca. E então eu disse-lhe: ‘Senhor secretário, mas as minhocas não saltam’.
Mas está a reproduzir o discurso ou é uma metáfora?
Não, foi mesmo assim. Tem dado alguma risota porque é uma delícia.
Já anunciaram que vão recorrer ao Ministério Público e ao Tribunal Arbitral. Se a greve for de facto irregular, será desconvocada?
No dia 25 de agosto mandámos um ofício por email para o ministério a dizer que queríamos entrar em greve e que seguiam os pormenores via postal. Portanto dia 25 estavam avisados. Foi noticiado em todos os órgãos de comunicação social. A diferença está no que se entende por pré-aviso, anúncio. Se houve este anúncio, é um abuso de confiança o senhor ministro estar a pôr em dúvida o nosso pré-aviso, que por acaso chegou no primeiro dia dos dez dias úteis de antecedência obrigatório. O Ministério esqueceu-se de que tinha seis comunicações prévias. Agora um conflito nestes casos é o tribunal arbitral que tem de dirimir. O Ministério não o convocou, nós convocámos e estamos à espera de ser chamados.
Admite que o dia de ontem pode ser sido irregular?
Admito. Mas são as questões que estão para trás que têm de ser avaliadas. Se o secretário de Estado tem um ofício, não tem por que ser irregular. É possível que não tenham tido contacto uns com os outros. Para a Av. de Londres (Ministério do Trabalho), o ofício foi no dia 28, mas para a Saúde foi no dia 25. Independentemente do que o tribunal disser, se eles não retirarem as faltas têm outra greve a seguir. Temos os enfermeiros do nosso lado. Repare, não é por acaso que agora até o SEP diz que se não tiverem as reivindicações assinadas até dia 12 (hoje) aderem à greve. Era o que deviam ter feito desde o início, negociar connosco, como fazem os médicos. Simplesmente isso não aconteceu e criou esta confusão.
Mas se for irregular, desconvocam a greve?
Nem pouco mais ou menos. Desde abril/maio já tínhamos uma greve de zelo e o ministro veio dia 20 de julho falar comigo de homem para homem. E eu disse-lhe: “Senhor ministro, eu sou transmontano e, na minha terra, quando se falha a palavra, é de usar sacholada”. Palavras textuais. Disse que ia resolver o problema. E veja o que aconteceu: estivemos a fingir que negociávamos dois meses. E, ao fim ao cabo, o Dr. Manuel Delgado disse que ia ver se havia condições para iniciar negociações.
Na reunião de 3 de setembro?
Sim. As Finanças não estavam envolvidas.
Parece-lhe um problema de falta de verbas?
Não há falta de verbas. Se fosse falta de verbas, o senhor ministro não tinha a lata, passe a expressão, de promover 200 médicos a consultores. Isso implica mensalmente mais do que o salário dos enfermeiros: cada médico consultor recebe perto de 1500 euros a mais.
Acha que a crispação entre o ministro da Saúde e a bastonária dos enfermeiros está a contaminar este processo?
Essa é outra questão. Administrativamente quem controla as ordens são os ministros da tutela. Claro que dava jeito circunscrever isto às parteiras e simultaneamente invocar a intromissão da bastonária, que só disse que nos apoia. Nós não precisamos da ajuda dela para nada. Isto é um problema deles mas é por outras razões.
Porque Ana Rita Cavaco está ligada ao PSD?
Também, mas ele também é casado com uma enfermeira. Não serão razões pessoais.
Ontem foram marcadas faltas?
Foram, mas quem marca também desmarca. E se houver faltas injustificadas, convocamos uma nova greve.
O Ministério da Saúde diz que se mantém aberto ao diálogo. Tem alguma reunião marcada?
Não. Não queremos dialogar com surdos. A dialogar estivemos desde 20 de julho quando o ministro me disse, de homem para homem, que as coisas se iam resolver. A retórica não nos levou a lado nenhum. E não foi só a minhoca, houve outra coisa em que lhes fugiu a boca para a verdade. O secretário de Estado disse, a certa altura, que nos estávamos a aproximar de mais da carreira médica. Tive de lhe dizer: o senhor está a ver o filme ao contrário. Tirando o dinheiro, basta ir ver a nossa carreira de 1981 e 1991 e vê-se que estamos a decalcar muitas cláusulas, é ver quem copia quem. A Igreja Católica serviu-se do platonismo para passar a mensagem de Cristo. Os médicos também se serviram da nossa linguagem para dar corpo à carreira médica. E agora nós é que copiamos os outros.