Donald Trump readaptou o credo isolacionista que o guiou à vitória nos Estados Unidos e ofereceu-o esta terça-feira ao mundo como um valor mestre para atenuar a pobreza, a guerra e a desigualdade entre os povos. Ofereceu-o, de forma mais relevante, no seu primeiro discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas, não apenas recusando abandonar o lema da América Primeiro, mas, na prática, multiplicando-o, numa proposta de reorganização da ordem internacional do pós-II Guerra. Se os outros países cuidarem também de si com mais afinco, argumentou, o mundo será melhor. Nas suas palavras desta terça, em Nova Iorque: “Como presidente dos Estados Unidos, colocarei sempre a América primeiro. Assim como vocês, como líderes dos vossos países, vão e devem colocar os vossos países primeiro.”
Dificilmente o novo presidente americano podia ter discursado com uma mensagem tão oposta à do seu antecessor. Ou até do discurso do secretário-geral da ONU, António Guterres, que se estreou pouco antes de Trump, falando sobre a ferida que vê crescer entre os países, crescentemente isolados. A intervenção de Trump foi mais beligerante que qualquer outro líder, mesmo estando na presença de chefes de Estado abertamente autoritários. Fez um discurso nacionalista sem, contudo, mencionar a palavra. Trocou-a por “soberania”, um termo que repetiu, de uma forma ou outra, 20 vezes. “A verdadeira dúvida para hoje nas Nações Unidas, para todas as pessoas no mundo que aguardam por melhores vidas para eles próprios e para os filhos, é básica: Somos ainda patriotas? Amamos as nossas nações suficientemente para protegermos a sua soberania e garantirmos a autoria do seu futuro?”
Trump discursou durante 40 minutos de forma articulada e sem nunca se desviar do texto preparado por um dos seus homens de confiança, Stephen Miller – também a voz mais nacionalista na Casa Branca depois da saída de Steve Bannon. Segundo a CNN, porém, houve uma introdução de última hora crucial no discurso desta terça do presidente americano. Durante a manhã, os seus conselheiros concordaram em chamar a Kim Jong-un o “Rocket Man”, um insulto estreado por Trump no Twitter e que saltou para as Nações Unidas quando o presidente americano se lançou aos países “tenebrosos” do mundo e ameaçou o regime de Pyongyang em termos de novo apocalíticos. “Os Estados Unidos dispõem de grande poder e paciência, mas se forem forçados a defenderem-se ou aos seus aliados, não teremos escolha para além da de destruir totalmente a Coreia do Norte. O Rocket Man está numa missão suicida para ele próprio e o seu regime.”
O novo “eixo do mal”
Trump, para todos os efeitos, estreou um novo “eixo do mal”, embora não tivesse mencionado a expressão de George W. Bush quando este, em 2002, afirmou que a Coreia do Norte, o Irão e o Iraque formavam uma espécie de frente imoral ao desenvolvimento do mundo. Trump retirou o Iraque da lista e introduziu no seu lugar a Venezuela – a realidade é que pôr Bagdad na última lista provocou uma invasão americana e muita da ameaça terrorista de que o seu líder se queixava esta terça-feira. E se Trump não falou de alterações ambientais, do Acordo de Paris que promete abandonar; da resolução do conflito entre Israel e Palestina; e só muito de passagem mencionou a intervenção russa na Ucrânia, não faltaram críticas a Kim Jong-un, ao governo iraniano e à Venezuela, pedindo ao mundo que, nesses casos, sim, entre em campo e interceda – se há argumento que Nicolás Maduro repita para defender as alterações constitucionais, é que a soberania venezuelana está sob ameaça dos EUA.
“Se os muitos da corretidão não confrontam os poucos tenebrosos, então o mal triunfará”, disse o mesmo presidente americano que momentos antes defendera que cada país deve focar-se nos seus próprios assuntos. “Quando as pessoas decentes se tornam observadores passivos diante a História, as forças de destruição apenas vão ganhar mais poder e força”, lançou, insistindo em dizer que o acordo nuclear iraniano “foi uma das mais injustas e piores transações em que os Estados Unidos alguma vez entraram”. Sobre esse tema – em que, excetuando Israel, está isolado –, Trump disse que “a história ainda não acabou”. A resposta iraniana, como a venezuelana, veio horas depois. No Twitter, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros e um dos principais arquitetos do acordo nuclear, escreveu: “O discurso ignorante de Trump pretence aos tempos medievais e não ao século XXI. Não merece uma resposta.A empatia falsa pelos iranianos não engana ninguém.”
Macron e Guterres
Trump, é verdade, não se desviou do discurso preparado e pareceu evitar assim os imbróglios que teimam em surgir quando se desvia do guião – Charlottesville é um exemplo recente disso. Mas nem por isso a sua intervenção desta terça-feira gerou suspiros de alívio na comunidade internacional. O guião foi seguido à risca, mas a consternação é sobre a própria mensagem, como indicou a ministra sueca dos Negócios Estrangeiros, ao dizer que a intervenção de Trump “foi o discurso errado, no momento errado e à audiência errada” – o presidente americano, com efeito, pareceu fechar portas a um diálogo com Pyongyang e mostrou estar na iminência de fazer o mesmo com Teerão, contrariando aquela que tem sido a tendência noutros líderes mundiais – Pequim pediu também o fim do “ciclo vicioso” com o regime de Kim, o que o presidente americano, apesar dos elogios à intervenção russa e chinesa na crise, ignorou.
O isolamento de Trump tornou-se evidente à medida que o dia de discursos prosseguiu. De uma assentada, quase dez líderes o criticaram em sequência ininterrupta, com termos mais ou menos frontais. Emmanuel Macron mais que todos, discursando também pela primeira vez na Assembleia Geral com o traje internacional que vestiu na campanha e mantém vestido nos primeiros meses da presidência francesa: o do antídoto ao novo presidente americano, uma espécie de ying do multilateralismo contra o yang do isolacionismo. E com Guterres, Macron foi quem esta terça-feira mais recebeu aplausos. “Isto é um bom acordo, um acordo que é essencial para a paz”, disse o líder francês sobre o entendimento nuclear iraniano. E, alinhando com a intervenção do secretário-geral da ONU, que, no início do dia, defendeu que “a imigração não pode ser um privilégio de uma elite global”, o presidente francês lançou-se às promessas do líder americano. “Não são os muros que nos protegem, é o nosso desejo de agir”, lançou Macron.