Festa do Livro. Marcelo dá aos livros os jardins e ao público um exemplo

Pelo segundo ano, Marcelo deixa que o público sinta o Palácio de Belém como seu, e os livros como a melhor razão para visitá-lo, e quebrar o gelo, regressando à arte da prosa.

Se basta uma dose tímida de álcool – ou de distracção – para que qualquer edifício provido de escadas e corredores resulte num labirinto (Borges dixit), talvez para que o Palácio de Belém assumisse esse “descarado propósito de confundir e desesperar” quem o visita, só era preciso que Marcelo Rebelo de Sousa se sentisse ali verdadeiramente em casa. Não há obras de alargamento mais em conta que essa extensão cultivada através da arte que aprecia a variação ao infinito das vinte e três letras.

Pelo segundo ano, Marcelo abre os portões do palácio, e dá provas de ter um entendimento tão literal quanto enfático do seu papel enquanto líder republicano, deixando que o público possa fruir dos seus edifícios mais sumptuosos. A este gesto simbólico, alia-se o assumido gosto pelos livros, que Marcelo partilhava semanalmente na rubrica com que encerrava a sua intervenção como comentador. Assim, desde ontem e até ao próximo domingo, os jardins do Palácio repetirão a festa em torno dos livros, com  debates, lançamentos e apresentações, sessões de autógrafos, concertos e peças de teatro.

Troca-se a “feira” pela celebração, em mais um gesto simbólico com o qual, segundo a assessora de cultura  do Presidente da República, Helena Nogueira Pinto, se deixa para segundo lugar a preponderância comercial destes eventos, preferindo-se a ideia de que o gosto pelos livros pode ser uma margem decisiva para se estabelecer um fórum. Como notava, faz já mais de meio século, o brasileiro Rubens Borba de Moraes, um dos maiores bibliófilos desta língua, “falar de livros é a melhor das prosas. Mas está se perdendo o hábito de prosear. Não se proseia mais em portas de livraria, não há mais café onde se possa conversar, não se vai mais à casa de um amigo dar uma prosa, com medo de perturbar o seu programa de televisão ou um joguinho de cartas. Não se proseia mais no Brasil, perdeu-se essa arte, tão boa e tão gostosa” (palavras do prefácio de “O Bibliófilo Aprendiz”, livro entre nós editado pela Letra Livre, em 2001).

Quando da boca da maioria dos políticos as citações são arrancadas aos livros e feitas reféns das noções mais bacocas, Nogueira Pinto ressalta a motivação acrescida de trabalhar para “alguém para quem a cultura não é um lugar estranho”. E a atestar esse apelo está a forma como as sugestões de Marcelo são acolhidas. A assessora lembra que, no ano passado, tendo referido numa entrevista à rádio o seu entusiasmo com os livros de Elena Ferrante – editados entre nós pela Relógio d’Água –, essa referência terá sido o suficiente para que a procura aumentasse, exigindo mais edições do que inicialmente previsto, como confirmou, meses mais tarde, o editor, Francisco Vale.

Para efeitos estatísticos, seria curioso tentar perceber se um Marcelo por cada cem portugueses seria o bastante para que os índices de leitura do país escalassem para um nível digno, até pomposo, e que lhe permitisse entreter de novo ambições de Quinto Império.

Infelizmente, nem a avalanche dos afectos perturba os deploráveis índices no que toca à leitura em Portugal, e, por isso, tudo o que envolve livros ganhou um certo prestígio ecológico, como se estivesse em causa salvar da extinção uma espécie ameaçada. Não é o caso. O lixo editorial domina o sector do livro, e mais facilmente está entre as causas de degradação do pulmão florestal.

Apesar das queixas dos pequenos editores, Belém voltou-se uma vez mais para a APEL como parceiro na organização do evento, o que a Presidência justifica com o “aproveitar da estrutura já existente” no que diz respeito à logística e mediação com as editoras. “Pedimos sempre à APEL o cuidado de ter uma amostra de editoras representativa e abrangente, ou seja, não ter apenas as grandes editoras ou grupos”, diz Nogueira Pinto, adiantando que se trata de uma “exigência do próprio Presidente”.

A primeira edição contou com 40 editoras e, nos quatro dias, os jardins do Palácio receberam 24 mil visitantes. Este ano serão 50 os editores, e a organização espera que ainda mais gente se junte à festa. No primeiro dia do ano passado, Marcelo não se limitou a encarnar o perfeito anfitrião, dirigindo-se a cada um dos editores, mas, como qualquer bibliófilo que se preze, andou à cata de novidades. Helena Nogueira Pinto conta como muitos dos editores já o conheciam, e alguns se lembravam dele dos recuados tempos de estudante de Direito, aquele que trouxe de Lourenço Marques para Lisboa o gosto de andar pelas livrarias atento a esse furo no tempo por onde as antigas vozes e as novas, os mortos e os vivos convivem a essa altura de onde a eternidade se sente espreitada.

Se o objectivo é acolher as pessoas num ambiente descontraído, na primeira edição por vezes faltaram os lugares sentados, e as multidões terão certamente afastado os que preferem andar pelo meio dos livros caçando solitária e pacientemente. A assessora cultural de Marcelo assume particular orgulho nas duas sessões que do filme póstumo do Manoel de Oliveira – “Visita ou Memórias e Confissões” –, contrariaram a ideia de divórcio entre o público português e o seu mais celebrado realizador. Helena lembra que a plateia de 300 lugares estava completamente cheia em ambas as sessões, com “famílias inteiras a assistir, pessoas sentadas no chão, encostadas às varandas, em pé, em todo o lado, num ambiente incrível de partilha, curiosidade, interesse genuíno”.

Este ano vão passar 150 autores, escritores, escrevinhadores ou atrevidos pelos jardins. Vão dar autógrafos, vão andar por ali com muita vontade de ser achados entre os perdidos, entre as manifestações caricatas que fazem deste tipo de eventos montras do zoológico do ego. Dos debates pode esperar-se aquela gente que vai muito à televisão, repetir o que já disse antes para conforto dos que se levantaram do sofá sem esperança de ver a disposição mental da sala de estar alterar-se. E vai haver programação para a pequenada, que assim pode levar os pais a passear – os jogos didáticos, a música para bebés e crianças, contos, teatro, oficinas musicais e leituras em família. Amanhã será projectado o filme “Mudar de Vida”, realizado por Paulo Rocha em 1966, numa homenagem a Maria Barroso. No último dia, e para encerrar a festa, Luísa Sobral – a compositora da música vencedora do festival Eurovisão 2017 – dá um concerto às 20h30. 
 


 

22 de setembro

11h00 – Abertura ao público
17h00 – Debate «Primeira Pessoa» (o “eu” em literatura) Com: Isabela Figueiredo, Marcello Duarte Mathias, Maria Antónia Oliveira e moderação de Luís Caetano [Jardim da Cascata]
22h00 – Encerramento das bancas de venda de livros
22h30 – Exibição do filme «Mudar de Vida», de Paulo Rocha (homenagem a Maria Barroso) [Pátio dos Bichos]
23h00 – Encerramento das entradas do público
00h00 – Fim do filme, saída do público

23 de setembro

11h00 – Abertura ao público
17h00 – Debate «Qual Papel?» (o futuro do jornalismo) Com: Clara Ferreira Alves, Isabel Lucas, Paulo Moura e moderação de Carlos Vaz Marques [Jardim da Cascata]
18h30 – Lançamento e apresentação do livro «Viagem Presidencial 1917» , por Nuno Severiano Teixeira e Elsa Alípio (edição Museu da Presidência / Imprensa Nacional Casa da Moeda) [Jardim da Cascata]
22h00 – Encerramento das bancas de venda de livros
22h30 – Concerto pela Lisbon Poetry Orchestra – Poetas Portugueses de Agora – e pela Orquestra Académica da Universidade de Lisboa [Pátio dos Bichos]
23h00 – Encerramento das entradas de público
23h30/00h00 – Fim do concerto, saída do público

24 de setembro

11h00 – Abertura ao público
17h00 – Debate «Quem ri por último» (humor e literatura) Com: Abel Barros Baptista, Ricardo Araújo Pereira e moderação de Pedro Mexia [Jardim da Cascata]
20h00 – Encerramento das bancas de venda de livros
20h30 – Concerto de Luísa Sobral
21h00 – Encerramento das entradas de público
21h30/22h00 – Fim previsto do concerto, saída do público