Alface e Manuel da Silva Ramos. Voltar a “os lusíadas” 40 anos depois: Hip, Hup, Eia!

Já lá vão uns anos, precisamente 40 anos, desde a publicação d’ “os lusíadas” (1977), os medíocres sucessores dos varões assinalados de Camões. O encorpado livro reanimou esta língua como jamais se vira, gravando-lhe as experiências colectivas que a marcaram. Embora grafado em minúsculas, não há-de ter sido fácil registá-lo na Sociedade Portuguesa de Autores. 

1977. Não andava assim tão longe o ano em que se comemorara, com pompa e um pouco por todo o Portugalinho, os quatrocentos anos da primeira edição de “Os Lusíadas”, indexados, em regime de exclusividade, a Portugal para efeitos retóricos. 

Quando, no final d’Os Lusíadas – êxito alcançado e prémio virtualmente arrecadado – Camões propunha a D. Sebastião uma nova partida, rematando o poema numa quase imposição de novos motivos de epopeia, estaria talvez longe de imaginar que a ausência desses motivos pudesse um dia originar um canto com o mesmo título do seu. O certo é que aconteceu. Grafados em minúsculas, “os lusíadas” de Alface e Manuel da Silva Ramos, romance inaugural da trilogia Tuga, eram publicados em 1977 com a chancela da Assírio & Alvim. 

Os doutores e os “letrados ultramarinos”, ambos visados no transgressor romance, é que não pularam de alegria. Os que viram no livro uma oportunidade para abrir caminho “por mares nunca dantes navegados”, assinalar com uma cruz as semelhanças compendiadas e, quicá, exercitar o olho filológico, embateram em páginas em branco, outras esburacadas, salto de capítulos, títulos que, ao invés de apontarem caminhos, funcionavam como sua cortina semântica, atilhos a que não sabiam dar nós, uma pontuação inusitada e desconcertante, já para não referir a avareza desta parceria literária, “forreta no ponto finalbis”; tudo técnicas correntes que punham o leitor mais experiente à beira de um ataque de nervos. Quase se podia dizer deste romance o mesmo que Camões, dando conta das primeiras dificuldades do encontro com o Outro, disse, pela boca do Gama, no Canto V: “Nem ele entende a nós, nem nós a ele”. 

Mas nem tudo era dificuldade nestes “lusíadas”. Veja-se o começo do capítulo 18, onde se afirma, numa linguagem nada adequada à esperada grandiloquência épica, que “quem quiser pode saltar as páginas seguintes […] que não perderá nada arrancar mesmo essas folhas e limpar-lhes o cu ou queimá-las ou fazer delas uma capa de um livro”.  E não se julgue que a parceria, supostamente sensível ao grau de dificuldade da obra, tinha em conta apenas o leitor preguiçoso. Não: “para as pessoas que chegaram agora com a carocha para aquelas que não sabem ler aqui fica o resumo: da sentina à retina vai um pestanejar”.  

A ideia da (ultra)passagem da norma, tão condizente, bem vistas as coisas, com o espírito epopeico que tanto atraía Camões, saltava aos olhos na coragem transgressora do próprio editor, “valente editor” – escreve Almeida Faria, um dos poucos a saudar a obra – “meio louco ou louco de todo que se atreveu a publicar semelhante romance em tempo de vacas magras”. 

Procurando ajustar-se ao clássico procedimento do início “in medias res”, o livro abre, num clima de grande euforia, bem no meio de um extenso e semi-articulado discurso, que inicia na página 77, o que terá levado muitos leitores – famosos escritores incluídos – a querer devolvê-lo de imediato: “é e ele, eia, ei-lo, eaovooooo!”. A musa surrealista, em ruptura com modelos literários que confessadamente Camões assume e a que os autores chamam “flácidos”, faria o resto: “[…] ergo o estio, a esprensa, o estorpor […] a ecomania e o enjoogo, a éctica semântica dos transcomânticos, o esgar-das-gares (etc!), o entontecer dos epignomos  e a eucaristia da vida, enfim eravá o ermetismo erocidental («se a terra acaba, ele é alto no mar)”.

Em mar verbalmente revolto, experimentando a desconfortável sensação do intragável, sinal do violento atentado a tradicionais protocolos, o leitor bem tenta agarrar-se à folha de cortiça que o livro traz. Em vão: apesar da inteligibilidade que as palavras e citações (algumas de clara reminiscência camoniana) guardam na cadeia articulatória do texto – que não respeita a divisão em cantos, claro está – o naufrágio torna-se iminente. Se algo ali flutuava não era o livro, como fazia crer a nota inscrita numa das badanas, mas o sentido, quebrado na linearidade da prática romanesca tradicional.

Escusado será dizer que não há neste romance (ou anti-romance) lugar para heróis: as palavras tomaram-lhes o lugar, como sublinhava ainda Almeida Faria. Grandes, umas; outras cruzadas com destreza (“fantesma”, “blasfumar”), outras com extrema ousadia (“deamputação patriórfica”), outras ainda excessivas, desmedidas, desabridas, por vezes mal medidas mesmo. Era a aventura criadora da palavra assente num exercício de violência semântica. No desejo de libertação de heróis, mitos e lendas, como a de “hómulo e remo”, por exemplo, ou melhor, do peso de uma retórica acamada de alusões lendárias e mitológicas que mascaravam o real, sugeria-se uma solução de inspiração camoniana: “Sôbolos rios que vão, deixemo-los ir”.  

Incarnação mítica do patriotismo, Camões é a grande figura a expulsar do imaginário colectivo. Aqui não se rememora o Camões da nobreza e da excepcionalidade, fisicamente marcada, o lutador incansável da pena e da espada, mas o “zarolho” de vida boémia e arruaceira de vida boémia e arruaceira, que fruía uma “pensão dietética velozmente destronada nas putas”. Acusado de fingir um naufrágio (porque outros houve), o Épico surgia aqui como um “diminuído” que quer salvar a sua epopeia: “O primeiro naufrágio fingido onde saca o coiro. […] O diminuído, pressa, quer salvar o manuscrito. Na hipocondríaca gravura ainda o vemos, a dar a dar. Não era aquele. Mão atreita espetava-lhe a epopeia (saudade vinícola: hip, hup, eia) no olho bom. Fica-se pela glória, coutado”.  É ele o grande fantasma deste livro.

 Mas não vinha só. A acompanhá-lo vinha o Velho do Restelo, descrito como “um velho de aspecto venéreo”, a aparecer numa atmosfera tumultuosa que lembra a do consílio dos deuses da epopeia camoniana, onde se fala de tudo, menos da partida das caravelas – o velho «levanta [se] a perguntar o que se havia tão bem comido a regalo”. O Adamastor não é já um símbolo mítico, um condensado do perigo e do indomável, mas um preto de Moçambique, que tem o peso de não ser ninguém. Aquele que acabou por comer a soberania nacional, “Dom Sebastião rapa o tacho”, apanhamo-lo, na sua frágil virilidade, a esgueirar-se por entre os nevoeiros modernos, uma espécie de Encoberto do século XX: “salta da arena para fugir à besta da história e disfarçado de mantilha e sapato alto […] vai comprar pevides e depois de tirar um retrato perde-se no fumo dos trânsitos”. 

A figura heróica da lusitana praia, o “português anfíbio” não escapa às lentes corrosivas da louca dupla. Encontramo-la, neste romance – quando não está a “limpar, unhar, entreter”, no “Terreiro do Pasmo” ou a perder-se numa qualquer taberna – embarcado em viagens por terra e por mar: voltas à “arena da vida”, movidas por perseguições de touros imaginários e patrocinadas por agências de existência duvidosa; jornadas de bicicleta – “5 dias em selim” (é com um misto de indignação e complacência que olhamos, por exemplo, para a “fotografia” do Trindade, “no ano em que ganhou a volta a Portugal com dois dias de atraso”) (lus); voltas infindas em torno do “biciclo do império” e seu campo de ruínas; travessias do Tejo e do Atlântico “em avestruz”, (ultra)passagem de “linhas himenginárias” e obscenas geografias do corpo. Outras fantásticas (e que pedem para ser lidas como ilusórias, fingidas ou mentirosas) – “Índia, Nápoles, Indianápolis” Enfim, destinos de cujo regresso só podem resultar cansaços vãos, feridas danadas de cicatrizar, em que cada um vê “a sua maldição pessoal de português fodido”.

40 anos depois da sua publicação, estará mais que chegada a hora de reeditar “os lusíadas” de Alface e Manuel da Silva Ramos.