Catalunha. Desgraçadamente, não terão aprendido nada…

A sequência de notícias que chegam em acelerando da vizinha Espanha convida-nos a reabrir os livros de História, procurando num ou noutro episódio da gesta secular dos nossos irmãos ibéricos a chave para a compreensão do tempo presente ­– é a perspetiva histórica que nos auxilia a não tomar a nuvem por Juno. E são…

Já ciente de como todo o século XIX e as primeiras quatro décadas do século XX foram especialmente conturbados, reli a síntese, límpida e sensível, de Jacques Chastenet (1893-1978) para tal período na sua Histoire de L’Espagne (Hachette, 1967). A tarefa de Chastenet não era fácil, pois a trama política é por demais complexa: só a finesse e a pena segura daquele membro da Académie française permite guiar-nos por entre a confusa e espinhosa silva de abdicações, de pronunciamentos e de levantamentos autonomistas. A galeria de personalidades fortes, exaltadas e tantas vezes truculentas é inexaurível, personagens que entram e saem de cena com um gosto de espontâneos numa tourada improvisada. As colhidas fatais não são raras e o sangue não tem muito tempo para secar numa arena política que evoca de forma sombria as impressivas gravuras da Tauromaquia de Goya (1816).

O triénio da Guerra Civil (1936-1939) levou o drama espanhol ao paroxismo. À vitória das forças nacionalistas seguiu-se a ditadura de Francisco Franco, que controlou com duríssima mão o país e cortou cerce qualquer veleidade autonomista. Significativamente, o uso na esfera pública das línguas regionais – onde se incluía o catalão ­– era punível com pena de prisão, se bem que a aplicação dos interditos fosse perdendo alguma da sua severidade ao longo das mais de três décadas de vigência da ditadura. À morte de Franco (1975) seguiu-se a abertura à Democracia, conduzida pela mão segura de Adolfo Suárez e que contou com o apoio explícito do recém-entronizado Juan Carlos I. O receio de que a reação dos ultranacionalistas pudesse, num último bote de violência, reverter todo o processo de abertura acabou por ser ultrapassado com o insucesso do golpe de 23 de fevereiro de 1981. No ano seguinte, Felipe González, líder do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), assumiu a presidência do governo, cargo que ocuparia até 1996. Quem poderia ter previsto que, sete anos após a morte de Franco, a Espanha teria um governo socialista, governo que iria ocupar em condições de estabilidade institucional o poder por largo período?

Fundamentalmente, a Constituição de 1978, que está vigente, proporcionou uma ampla autonomia às regiões da Espanha. Em particular, a Catalunha desfrutou nestas quatro últimas décadas de Parlamento e Governo próprios e do livre e pleno uso da sua língua regional. Esta Constituição foi referendada na Catalunha com uma taxa de aprovação de 95.15% (a segunda mais alta do País), para uma participação eleitoral de 67.91% (superior à média nacional de 67.11%).

Num dos seus títulos preliminares afirma-se: «A Constituição fundamenta-se na indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis e reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas.» Qualquer reforma constitucional que implique os títulos preliminares deverá ser aprovada por pelo menos dois terços de cada uma das duas câmaras, que deverão dissolver-se e convocar novas eleições. A reforma deverá ser também aprovada por pelo menos dois terços das câmaras novamente eleitas e será ainda sujeita posteriormente a referendo nacional. Não será um mecanismo ágil, mas, precisamente, a agilidade é indesejável em assuntos de tal gravidade. Aquilo que é fundamental deve ser preservado da volatilidade política associada a maiorias simples.

É este o enquadramento legal e político da aguda questão catalã. Procurar a solução da crise fora deste enquadramento é abrir as portas à anarquia, ao particularismo ­regional – que tantos exemplos infelizes a História de Espanha acumulou – e, eventualmente, à violência fratricida.

A juventude que hoje ocupa a Universidade de Barcelona, garridamente ostentando a bandeira estrelada aos ombros como traje académico, e entoando a frase «as ruas serão sempre nossas», alimenta essencialmente um sonho anárquico. Não será muito diferente daquela juventude que desceu às ruas de Madrid no 15 de maio de 2011. Tanto naquele ano como nos recentes dias, os jovens associam o governo central ao Estado que não lhes consegue abrir verdadeiras perspetivas de futuro, humilhando-os com o trabalho precário, com os baixos salários e confrontando-os com a impossibilidade de constituírem e sustentarem famílias estáveis. Não terá sido por acaso que o aumento sensível do apoio à causa independentista na Catalunha surgiu na peugada da crise económica. Concorrentemente, a corrupção que tem grassado no seio do Partido Popular (PP) e do PSOE sapou a autoridade desses dois partidos políticos, que são essenciais à estabilidade do regime democrático.

Ninguém pode verdadeiramente prever o desenlace do braço-de-ferro político no próximo dia 1 de outubro, nem tampouco o que se lhe seguirá.

Tal como o reabrir dos livros de História, revisitar duas das mais famosas imagens espanholas do século passado pode revelar-se caucionário. A primeira foi pintada no início de 1936 por Salvador Dalí, que a designaria de Premonição da Guerra Civil (dispense-se o título surrealista alternativo). A segunda, Guernica – verdadeiro ícone do século XX –, é o grito de raiva e de desespero de Pablo Picasso, imediato ao bombardeamento da cidade basca na primavera de 1937.

O meio milhão de mortos da Guerra Civil – muitos deles vítimas de execuções sumárias, tão mais difíceis de perdoar – deveriam pesar, e muito, sobre a consciência coletiva de um povo. E assim foi durante algumas décadas. Até que, com o rolar das gerações, aqueles que foram marcados a ferro e fogo na carne e na consciência deixaram de poder narrar de viva voz aos seus próximos os horrores que viveram. As memórias diluíram-se e as gerações jovens acabam por subir ao palco da luta política impacientes, como é seu timbre, e já não imunizadas contra os erros do passado.

E os erros não foram poucos. Jacques Chastenet recorda-nos:

Admirável e patética história de Espanha! História desgostante de sangue e fulgurante de glória, longa sequência de epopeias entrecortada de dramas atrozes e de comédias caricatas! […] O seu povo, de um individualismo desenfreado, encontra-se sujeito à constante tentação da anarquia à qual dificilmente resiste.

No entanto, repetir grosseiramente os erros do passado não é fatalidade. Assim, neste outono incipiente de 2017, há que avivar a esperança de que Espanha saberá esconjurar os seus demónios e que não irá esbanjar de forma inconsciente o capital de tolerância e paz proporcionado por quatro décadas de Democracia.

 

Jorge Filipe de Almeida, professor universitário