Quem quer que o Nobel da Literatura distinguisse este ano, o mais certo é que desse pelo seu momento de glória num ambiente de fim de festa: o cheiro a despegado, o chão a precisar de ser varrido e as janelas abertas de par em par de modo a desanuviar as coisas. Depois da atribuição do 113º Nobel a Bob Dylan, e ainda sob o efeito da ressaca da farra dos embevecidos fãs e do entusiasmo daqueles que, por uma vez, até sabiam de quem se estava falar; depois de toda a polémica e discussão, das críticas dos que tiveram alguma dificuldade em entender o propósito da Academia Sueca ao entrar no culto de um dos legados artísticos incontornáveis do século XX, um músico que vendeu milhões de álbuns em todo o mundo, provou ser um letrista de excepção, com letras enigmáticas e imbuídas de um imaginário cosido à mão e a partir de milhares de versos lidos na berma de mil caminhos, coube a Kasuo Ishiguro, um escritor inglês de origem nipónica, ocupar o lugar seguinte na lista. É tramado.
O Nobel da Literatura de 2017 foi atribuído a Ishiguro e aos seus “romances de grande força emocional, que revelam o abismo da nossa ilusória sensação de conforto em relação ao mundo”, anunciou ontem de manhã em Estocolmo a secretária permanente da Academia Sueca Sara Danius.
Com uma escrita “marcada por uma expressão cuidadosamente contida, independentemente dos acontecimentos que retrata”, o autor de 62 anos mudou-se aos cinco com a família do Japão para o Reino Unido, quando o pai foi aceite como investigador no National Institute of Oceanography, em Southampton. Educado numa escola de rapazes em Surrey, após ter-se licenciado em 1978 com uma especialização em língua inglesa e filosofia na Universidade de Kent, na Cantuária, trabalhou como assistente social nos bairros mais pobres de Londres. Em 1980 obteve um mestrado em escrita criativa pela Universidade de East Anglia e, três anos depois, foi incluído na lista de melhores jovens escritores britânicos organizada pela Granta, a par de Martin Amis, Ian McEwan e Salman Rushdie.
O comité do Nobel adiantou no Twitter que Ishiguro tem mostrado uma certa propensão para temas relacionados com a falibilidade da memória, o tempo e as ilusões que alimentamos para suportar a vida. Após o anúncio, Sara Danius deu uma curta entrevista difundida em directo em que sublinhou o facto de a Academia distinguir este ano “um escritor de grande integridade” que “desenvolveu um universo estético só seu”. “Kazuo Ishiguro está muito interessado em compreender o passado. Não para o redimir, mas para revelar o que temos de esquecer para sobrevivermos enquanto indivíduos e enquanto sociedade”. A porta-voz do júri confessou ainda que o seu romance preferido do autor é o recente “O Gigante Enterrado”, “uma verdadeira obra-prima que começa como uma comédia de costumes de P.G. Wodehouse e acaba num registo kafkiano”.
Num tom que já de si denuncia a queda da Academia por uma obra cuja originalidade nasce de um sortido de diversas influências, Danius indicou que, além de Kafka, Jane Austen é outra das referências mais notórias na escrita de Ishiguro, acrescentando que para obter a receita completa desta será preciso ainda “acrescentar um pedacinho de Marcel Proust e depois agitar, mas não muito”.
Em declarações à BBC, Ishiguro disse que a atribuição do prémio era “uma magnífica honra – acima de tudo porque significa que estou a seguir as pisadas dos maiores autores que já viveram”. Num comunicado divulgado posteriormente pelo seu editor, o escritor não deixou de encarar a responsabilidade do prémio, e escreve este lhe chega “num momento em que o mundo atravessa uma grande incerteza quanto aos seus valores, lideranças e segurança”. “Só espero que, ao receber esta honra imensa, possa, mesmo que de uma forma modesta, encorajar as forças que se posicionam do lado do bem e da paz neste momento”.
Depois da publicação do seu primeiro romance, “As Colinas de Nagasaki” (1982), Kazuo Ishiguro “tem sido um escritor a tempo inteiro”, sublinhou a Academia Sueca. Longe de ser um autor prolífico, os romances publicados ao longo de 35 anos adoptam muitas vezes uma narração na primeira pessoa, narradores não fiáveis, que frequentemente estão em negação face a verdades que o leitor vai descortinando aos poucos. À semelhança do que viria a acontecer na sua segunda obra, “Um Artista do Mundo Transitório” (1986), editada em Portugal pela Livro Aberto, o romance de estreia tem a sua acção na cidade onde o escritor nasceu (Nagasaki) em 1954, alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial e da devastação provocada pela bomba atómica dos EUA.
Numa entrevista concedida ao “Público”, em 2005, Ishiguro falou de como o marcou ter nascido numa cidade onde as cicatrizes da guerra eram tão visíveis: “Acho que todos tememos uma coisa como a bomba atómica, só que eu nasci em Nagasáqui e aprendi o que isso quer dizer de uma maneira diferente da maioria das pessoas. A minha desconfiança na ciência e na capacidade que a sociedade humana tem para gerir as suas próprias descobertas está provavelmente enraizada nesse facto.”
Sara Danius descreveu o autor britânico como “alguém muito empenhado em compreender o passado”, mas apesar das marcas de Proust, garantiu que a sua escrita não pode ser ligada à busca de um tempo perdido, e que não lhe interessa redimir o passado, mas que tem explorado o que é preciso esquecer de modo a que possamos sobreviver antes de tudo como indivíduos ou enquanto sociedade”.
A porta-voz adiantou ainda que, depois das divisões e da polémica do ano passado, esperava que a escolha deste ano fizesse “o mundo feliz”. Mas apressou-se a garantir que a Academia teve apenas como critério a distinção de um “romancista que julgamos ser absolutamente brilhante”.
Entre os nove livros do autor, incluem-se “Os Despojos do Dia”, livro com o qual venceu o Booker Prize, em 1989 e que foi adaptado ao cinema em 1993 por James Ivory, com Anthony Hopkins e Emma Thompson como protagonistas. Outro livro que teve ampla projecção foi “Nunca me Deixes” (2005), um romance distópico adaptado ao cinema em 2010, contando com realização de Mark Romanek e adaptação do argumento por Alex Garland, com Carey Mulligan, Keira Knightley e Andrew Garfield nos principais papéis.
A Relógio D’Água publicou em 1989 “As Colinas de Nagasaki”. Desde então, a obra do autor tem sido dada a conhecer ao público português pela Gradiva, sendo “Nocturnos” (2009) e “O Gigante Enterrado” (2015) os dois livros mais recentes do autor.
Ishiguro escreveu também “Os Inconsolados” (1995, vencedor do Cheltenham Prize) e “Quando Éramos Órfãos” (2000, nomeado para o Booker Prize e para o Whitbread Prize). Entre as múltiplas distinções pela sua obra, conta com a nomeação como Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres em França, no ano de 1998.
Depois do eco que o galardão teve no ano passado, com a atribuição a Dylan “por ter criado novas formas de expressão poética no quadro da grande tradição da música americana”, naquela que foi considerada a mais radical da história da Academia Sueca, Ishiguro é uma escolha que não supreende – ainda que o seu nome não figurasse entre os favoritos das principais casas de apostas – nem entusiasma. Apesar do quase unânime favor da crítica, está longe de ser um autor incontornável, e o mais provável é que, como aconteceu com Patrick Modiano (que venceu o prémio em 2014), depois de passar a momentânea febre do Nobel, o seu nome volte à segunda linha da literatura contemporânea.
A Academia pagou caro o preço de ter tentado colar-se a Dylan. Este mostrou-se um vencedor hesitante, esquivo. Foi descrito como “indelicado e arrogante” por Per Wastberg, um dos membros do júri, depois de se ter mantido incontactável durante dias a seguir ao anúncio, e é claro que também não compareceu à cerimónia de entrega do prémio em Estocolmo.
Este ano, a canadiana Margaret Atwood, o queniano Ngugi Wa Thiong’o e o japonês Haruki Murakami lideravam as apostas, com António Lobo Antunes a figurar uma vez mais na lista dos tradicionais candidatos ao prémio. Entretanto, as reacções foram chegando e Salman Rushdie, outro dos anuais candidatos ao Nobel, colocou a tónica certa ao felicitar o amigo, sem dar demasiado peso à distinção: “Muitos parabéns ao meu velho amigo Ish, cujo trabalho amo e admiro desde que li pela primeira vez ‘As Colinas de Nagasaki’. E ele também toca guitarra e escreve canções! Roll over Bob Dylan!”.
Por sua vez, Andrew Motion, poeta laureado do Reino Unido entre 1999 e 2009, deu sinais de arrebatamento e mostrou alguma familiaridade com a obra nas declarações que prestou ao “The Guardian”: “O imaginativo mundo de Ishiguro tem a grande virtude e o grande valor de ser ao mesmo tempo altamente individual e profundamente familiar – um mundo de espanto, isolamento, vigilância, ameaça e maravilhamento”.
“Como é que ele o consegue? Entre outras formas, ao basear as suas narrativas em princípios fundadores que combinam uma tão fastidiosa distâncias quanto igualmente vívidas indicações de intensidade emocional. É uma combinação tão extraordinária quanto fascinante, e é maravilhoso vê-la ser reconhecida pelo júri do Nobel”, disse Motion.