Atribuído anualmente pela Fundação Casa de Mateus, o prémio D. Diniz 2017, recolhido há cinco anos, foi entregue a Mário Cláudio pelo Presidente da República, numa cerimónia realizada no passado dia 30 de Setembro no Palácio de Mateus, Vila Real, em que também esteve presente o Ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes. Escolhido unanimemente por um júri que incluiu Nuno Júdice, Fernando Pinto do Amaral e Pedro Mexia, o romance “Astronomia”, publicado pela D. Quixote, e que conquistara já o júri do Prémio DST, mostra-nos que bater no ferro amorfo e arrancar uma estrela é uma ciência que pede disciplina, sabedoria, trato íntimo com os que nos precederam – dos trovadores aos prosadores –, mas também tempo e prática, inimigos dos tempos que correm, dominados pela pressa, pela cultura do efémero e do descartável.
Este romance autobiográfico investe contra os ritmos da sociedade moderna. No seu gosto da demora, avança por recantos e rodeios, corredores domésticos que abrem para mundos desconhecidos, lateraliza, pausa para rituais de chá e meditações nem sempre regaladas, perde-se em irónicas minudências, num modo lexical com paralelo apenas em Camilo, Aquilino ou Tomás de Figueiredo.
Marcado pela audácia da frontalidade afirmativa, é uma demonstração de inconformidade perante os esquemas em que encaixa muita da prosa literária que entre nós se produz, conformada às lógicas do entretenimento e às dinâmicas do mercado livreiro. É um cenário deplorável que o livro, aliás, descreve em lances de impagável sarcasmo, também apontado aos que, julgando escalar aos céus da literatura, acabam a engrossar o lixo editorial e a sofrer as coitas do amor pelo ego: “E rapidamente apeados das prateleiras das estantes, a fim de que as ocupem os muitos que entretanto sobem à tona, e que singram em volumes de capas douradíssimas, plantam-se defronte a um invisível muro das lamentações, a carpir a frouxa estratégia promocional com que a editora os trata, ou o complot dos colegas que apostam em riscá-los do mapa.”
Mário Cláudio situa-se nos antípodas daquela ficção de consumo assegurado que se lança nas anuais correrias pelos altos postos nas tabelas de vendas, desacompanhada de clássicos e modernos, e aparentemente sem nunca ter tropeçado nos melhores dicionários da nossa língua. Mero exercício arqueológico.
Os romances do autor de “Peregrinação de Barnabé das índias”, (recentemente reeditado pela D. Quixote), não rangem como dobradiças secas, por efeito de uma escrita apostada na eficácia da comunicação em linha recta, escorreita, funcional, escassamente oleada com metáforas de perna curta, que o próprio D. Dinis não hesitaria em enterrar no pinhal de Leiria. “Astronomia” traz, nas suas circunvoluções inquietas, mas também no seu modo implacável, a responsabilidade constante de uma ideia, vozes que lembram outras vozes, rostos posteriores de homens anteriores, velhas formas de dizer o novo.
A sua ficção não é o mero lugar onde desembocam figuras reconhecíveis, mas perfis que a sua arquitectada escrita reinventa, o do autor incluído. O contar de Mário Cláudio, variável, plural, bem texturado, não é a sucessão de lances, distendidos até ao enfado, rumo ao mistério final. É o gozo da linguagem, tão capaz de trepar aos píncaros do celeste, como de mergulhar no mais rocambolesco calão. A linguagem molda-se ao carácter do narrado e toma a justa feição, transforma-se, sofre metamorfoses – no léxico, no desenho da frase e seus efeitos, criando, ao nível da palavra, a imagem projectada da matéria. E se há, neste desassombrado “Astronomia”, matéria que não joga com eloquências bem timbradas, requintes vocabulares ou finas gramáticas discursivas, essa matéria é a que envolve a nossa cena cultural e literária, já caracterizada em “Tiago Veiga” como “o pátio das cantigas”. A expressão-farpa é todo um afamado programa: querelas, confrontos, tricas, choradeiras, ambições pessoais.
O filme é válido para o século XXI, que não acabou com a manha do “rafeiro literário [que] procura morder-lhe os artelhos, e que inventa sinuosíssimas maneiras de se apoderar dele, quer ainda em carne e osso, quer já em carcaça”. Nem fez desaparecer os combates no nosso “galinheiro literário, desencadeados pela frustrada obtenção de um troféu de que ninguém se recorda, uma vez decorridos dois meses, ou pela tradução que não se consegue publicar numa remota casa de além-fronteiras, e a breve trecho encerradas por dívidas ao fisco”.
Escreveu Camões n’ “Os Lusíadas” que os prémios é melhor merecê-los sem os ter do que possuí-los sem os merecer. No Caso de Mário Cláudio, que tem vindo a construir uma obra admirável, situada em elevado plano de exigência, é de discordar do vate, pelo menos em parte. Tanto mais que o autor d’ “Os Naufrágios de Camões” nunca perdeu de vista que os prémios são pequenas ilusões canónicas. E podem bem transformar a chamada vida literária num inferno mais penoso que o de Dante. E o “validado” autor numa espécie de pau para toda a obra: depoimentos, entrevistas, leitura de originais e recém-publicados de aspirantes a escritores que, aos “montões”, lhe caem no gabinete para a honestíssima apreciação que depois não encaixa, a redacção da biografia a pedido da viuvinha empenhada em dar nova vida ao defunto benfeitor, a escrita do prefácio “em que adoça a pílula para não denunciar a merda”, a apresentação do “livreco que numa única frase contém três erros de sintaxe”. Enfim, cenários que produzem um sentido, dicionário provável dos significados dos trabalhos e dos dias de um escriba. Catálogo, igualmente, das misérias do nosso tempo e das nossas letras, nas tintas para as prosaicas questões do vil metal.
O Prémio D. Dinis 2017 põe à vista os trunfos viciados da vida literária. À grande narrativa da literatura entendida como jogo da glória, praticado na sociedade do espectáculo, contrapõe este romance uma espécie de contra-narrativa: trabalhos forçados, emboscadas, pactos manhosos, frustrações, invejas, tricas literatas, etc..
Bem fez Mário Cláudio ao trocar os códigos do Direito, curso em que se licenciou na Universidade que D. Dinis fundou para atender à vontade familiar, pelos códigos dos géneros literários, manuseados com desenvoltura única; a verdade verdadeira pela verdade da ficção, a ditar as suas leis. É claro que a sua carteira de títulos poderia hoje ser outra, mas os seus leitores mais constantes estariam certamente mais pobres.