Acórdão polémico. MP não pode recorrer para o Supremo

Bispos e Amnistia Internacional juntaram-se ontem ao protesto contra o acórdão que usou adultério para atenuar culpa em caso de violência

O Ministério Público não vai poder recorrer da decisão do Tribunal da Relação do Porto que manteve penas suspensas para dois homens acusados de violência doméstica, usando uma situação de adultério para atenuar a culpa e gravidade deste caso, que está a gerar uma onda de indignação nacional. A Procuradoria-Geral da República indicou ontem ao i que, ao abrigo do Código de Processo Penal, a decisão proferida este mês pela Relação “não é passível de recurso”.
O impedimento resulta da duração das penas em causa neste processo. A PGR refere que não é possível recorrer “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.a instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Ora, neste caso, os desembargadores mantiveram as penas suspensas decididas em primeira instância, na Comarca de Porto Este, que são inferiores aos oito anos. O marido da vítima foi condenado a uma pena suspensa de um ano e três meses de prisão. Já o homem com quem a mulher tinha tido uma relação extraconjugal, e que foi cúmplice na forma consumada das agressões, foi condenado a uma pena de prisão de um ano, também suspensa.

No esclarecimento ao i, a PGR revisitou o caso, lembrando que o MP não se conformou com a decisão da 1.a instância e, por isso, recorreu para a Relação. Fê-lo por considerar “que as penas de prisão aplicadas em concreto a cada um dos arguidos deviam ser mais longas” e que o caso “reclamava a aplicação de penas de prisão efetiva (e não suspensas na sua execução)”.

Foi este entendimento que foi rejeitado pela Relação no acórdão que ontem foi criticado pela Amnistia Internacional, mas também pela Conferência Episcopal Portuguesa, que recusou a referência à Bíblia usada pelos juízes para legitimar a reação do marido ao adultério. “Não se pode atenuar ou justificar qualquer tipo de violência, no caso a violência doméstica, mesmo em caso de adultério”, declarou Manuel Barbosa, porta-voz da CEP, à agência Ecclesia.

Além de protestos convocados para esta sexta-feira no Porto e em Lisboa, estão a circular petições contra a decisão a exigir, por exemplo, que todas as decisões judiciais cumpram a Constituição, tanto no espírito como na letra. Um outro acórdão assinado pelo desembargador Joaquim Neto de Moura já tinha declarado, em 2016, que uma mulher adúltera é “uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil e imoral”.

O Conselho Superior da Magistratura recebeu entretanto 25 queixas de cidadãos e caberá ao conselho plenário pronunciar-se. O estatuto dos magistrados prevê sanções disciplinares que podem ir da multa à demissão. 
Numa nota emitida na segunda-feira, o CSM manifestou censura ao teor do documento ao dizer que as sentenças judiciais devem realizar justiça “sem obediência ou expressão de posições ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento jurídico da sociedade em cada momento, expresso, em primeira linha, na Constituição e Leis da República, aqui se incluindo, tipicamente, os princípios da igualdade de género e da laicidade do Estado”. Ainda assim, disse o CSM, “nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar. Outra consequência poderá ser as decisões virem a pesar caso algum dos juízes pretenda concorrer ao Supremo”.