Enterrado a poucos metros de James Joyce, no Cemitério Fluntern, em Zurique, Elias Canetti teria certamente o humor para poder apreciar a vista da sua discreta lápide para um dos mais célebres e visitados túmulos em todo o mundo. E esta vizinhança na morte não é de todo indevida, antes nos lembra como estes dois gigantes do século XX exibiram a confiança de que a morte não haveria de comprometer a insofreável respiração das suas obras.
Tanto um como outro, compreenderam como só o exílio permite ao escritor assumir plenamente a sua inadequação face ao mundo, e um e outro exigiram de si mesmos uma identidade literária à parte. Não apenas trilharam rumos próprios e inconfundíveis com outros escritores, como rejeitaram os privilégios mundanos que lhes eram estendidos enquanto membros dessa classe. E Canetti tinha, como Susan Sontag refere num extenso ensaio para a “The New York Review of Books” – publicado um ano antes (1980) de lhe ser concedido o Prémio Nobel da Literatura -, a exigência de que fosse a sua audiência a vir até ele. Seria o tempo a graduar-se para se submeter ao seu teste, tentando deslindar os aspectos mais consequentes de uma obra que não se conformou com os protocolos de um campo específico do saber.
Acaba de ser publicado o volume de ensaios de Canetti “A Consciência das Palavras”, um livro espantoso na diversidade dos temas que abarca, e desde logo um excelente prisma para a descoberta deste autor de língua alemã, que deixou o seu país natal – a Bulgária – aos seis anos. O livro chega-nos com o selo da Cavalo de Ferro, a mesma editora que arcara já com a hercúlea tarefa de suprir uma das mais confrangedoras falhas do meio editorial português, ao publicar em 2014 “Massa e Poder” e reeditar, em 2011, com uma nova e mais competente tradução – assinada por Paulo Osório de Castro e Jorge Telles de Menezes -, a sua obra-prima de ficção narrativa, “Auto-de-Fé. Deve notar-se que, entre aqueles dois títulos e este, a editora de Diogo Madredeus sucumbiu enquanto editora independente, e hoje a Cavalo de Ferro é mais uma das chancelas da 20|20, juntando-se à Elsinore como o braço que flecte o músculo literário e perde dinheiro em nome do prestígio daquele grupo.
Com origens diversas, são 15 os ensaios coligidos neste volume, todos, salvo um, escritos entre 1962 e 1976, ou seja, depois da edição original de “Massa e Poder” (1960). Numa nota preliminar, Canetti explica que se pode “parecer algo estranho encontrar juntas aqui figuras como Kafka e Confúcio, Büchner, Tolstói, Karl Kraus e Hitler, catástrofes das mais terríveis proporções, como Hiroxima e considerações literárias sobre a redacção de diários ou a criação de um romance”, só aparentemente estes ensaios são inconciliáveis. E explica algo que, hoje mais do que nunca, estamos em condições de aceitar: “O público e o privado já não se podem separar um do outro, interpenetram-se de um modo antes inaudito. Os inimigos da humanidade ganharam poder rapidamente, chegaram muito perto do objetivo final que é a destruição da Terra, pelo que é impossível abstrairmo-nos deles e retrocedermos exclusivamente para a contemplação de modelos espirituais que ainda têm algo a dizer-nos.”
Talvez não haja outra obra de Canetti tão esclarecedora quanto à ambição do seu génio nem tão representativa da multiplicidade das suas aptidões. Aqui temos um intelectual que, ao contrário de tantos outros, não nos hostiliza com a sua erudição, não monta a sua operação argumentativa recorrendo a uma carapaça de andaimes que acabam por servir mais para rendilhar e ofuscar do que para exprimir de forma inesquecível certa ideia. A força desta prosa começa pela sua desarmante limpidez. Canetti mostra-se um escritor cheio de consideração pelo seu leitor, alguém que calibra de forma paciente cada uma das suas frases, como se nos medisse o pulso e esperasse de cada batida essa sintonia que nos permite pensar pela cabeça de outra pessoa.
Com Hermann Broch, ele admite que “escrever é sempre uma impaciência do conhecimento”, e, como ele, exige de si enquanto escritor a necessidade de estar contra o seu tempo, e não apenas contra isto ou aquilo, mas contra todo o seu tempo, “contra a imagem completa e unitária que só ele tem deste, contra o seu cheiro específico, contra o seu rosto, contra a sua lei”. E, no entanto, tem claro que “o escritor não é de modo algum um herói, que tenha de dominar o seu tempo e submetê-lo a si”, está antes de tal modo dependente dele, “que é o seu servo mais humilde, o seu cão”.
Canetti é um crítico de grande fôlego, que recorre ao mais amplo espetro de referências nas suas análises, sem ficar agrilhoado a um qualquer quociente de cientificidade. Os seus ensaios são majestosos tratados que montam de forma romanesca uma retórica que escava exemplos entre os séculos de episódios históricos com o vigor de fábulas – sedutores, inesquecíveis -, e partilha as suas experiências e leituras, tornando-se um mestre afável, compassivo e extremamente generoso no reconhecimento do contributo daqueles autores que admira, provando ser um magnífico espécime da estirpe produzida pelo concurso de experiências e tradições, línguas e saberes que se deu no Centro da Europa.
Lido no seu conjunto, “A Consciência das Palavras” funciona como um testemunho vívido daqueles encontros que provaram ser fundamentais para a construção de uma perspetiva crítica que se impôs contra a tendência crescente para a especialização dos saberes, e uma incapacidade da generalidade das pessoas para ler “o estado do mundo”. Canetti foi particularmente sensível aos perigos do esvaziamento dos impulsos políticos, à imbecilização cultural de uma democracia que condena o indivíduo à diluição nas massas. Ele avisa que “a maioria das pessoas, atualmente, já mal domina a fala. Exprimem-se com as frases dos jornais e dos meios de comunicação social e dizem – sem, realmente, serem o mesmo – cada vez mais o mesmo.”
Alerta-nos para os erros que, por serem tão comuns, se tornam viciosos, e não se poupa a um exame de consciência, lembrando que, “quem, realmente quiser saber tudo, é por si que melhor aprende. Mas não se pode poupar e tem de agarrar em si como se fosse outra pessoa, não com menos dureza, mas sim com mais dureza”. E é nesse “diálogo com o cruel parceiro” que emergem alguns avisos contra a ambição degenerada da horda imparável de comentadores políticos de fazer vaticínios.
Canetti defende que é daqueles que se propõem “desenvolver o instrumento que lhes possibilite ficar a conhecer as pessoas e percebê-las em mil detalhes finos e grosseiros” que muitas vezes “provém o que acontece de mais terrível e de mais comum, ou de mais perigoso”. E, assim, o escritor mostra-se um juiz implacável em causa própria, revoltando-o a sua “patética vaidade” ao ter acertado na predição de algo terrível: “O avisador, o profeta, cujas predições se confirmam, é uma personagem respeitada sem razão. Facilitou em demasia a sua tarefa e deixou-se subjugar pelos temores que ele abomina, ainda antes de se terem confirmado. Crê que avisa, mas, comparado com a paixão da sua previsão, o seu aviso é desprovido de valor. É admirado pela sua previsão, mas nada é mais fácil. Quanto mais terrível for a sua previsão, tanto mais será verdadeira. O que seria para admirar era um profeta que predissesse algo bom. Pois isto, e só isto, é que é improvável.”
Nalguns dos ensaios Canetti retoma e adianta alguns capítulos à análise do poder, e explora a forma como este intensifica perigosamente o instinto biológico de sobrevivência, ao ponto de a auto preservação se transformar num desejo de “matar em massa”. A propensão do Homem para a guerra assume, nestas páginas, um arrepiante novo sentido. Há aqui noções de que dificilmente nos libertaremos, que oferecem causas e justificações terríficas para estes acontecimentos “absurdos” face aos quais invocamos sempre a estupefação dos inocentes, apenas para, perante uma súbita alteração das circunstâncias, uma que nos afete e nos galvanize, irmos também nós para a guerra. “Quem vai para a guerra de bom grado, vai com confiança, e essa confiança consiste na expectativa de que os caídos de ambos os lados, também os do próprio lado, serão unicamente outros, e ele será sobrevivente. A guerra oferece, assim, até ao homem comum, que, em tempos de paz, não pode considerar-se nada de especial, a oportunidade de chegar a um sentimento de poder, precisamente naquele ponto em que este sentimento tem a sua raiz: a continuada sobrevivência. Aqui, não é de todo possível contornar a presença dos mortos, tudo aponta para ela; e mesmo a quem, nesse sentido, não tenha grande mérito pessoal, enaltece-o a visão de todos os caídos, entre os quais ele não se encontra.
Sobre Hitler, numa concatenada série de brevíssimos ensaios, revela um prodigioso discernimento quanto às específicas tentações da sua ilusão, uma que não lhe permitia retirar-se e viver fora do mundo – e veja-se a atualidade e consequência desta revelação para o momento crítico que vivemos hoje – “ela é de tal natureza que ele tem de a impor ao mundo que o rodeia”. Canetti reconhece nele um mestre das massas, retirando forças do inaceitável desfecho que a Primeira Guerra Mundial teve para a Alemanha, convocando da morte os soldados alemães que, para ele, não podiam ter caído em vão. Mais do que isso, o ensaísta refere como ele descobriu “o ponto fraco da realidade – a parte desta onde ela é mais fluida”, e nota como a sua ousadia nasce de uma interpretação demasiado estreita, quase supersticiosa da história, do passado, exigindo ao futuro a cumplicidade de um ajuste de contas, um ansiado efeito de simetria, como se a história estivesse em falta para com o destino imortal de um povo.
Num ensaio anterior, o pensador alerta para a invulnerabilidade própria que provoca a “embriaguez de destruição”, lembrando que esta começa por existir primeiro na cabeça de Hitler. Com toda a sobriedade que lhe é característica, Canetti nunca se mostra cínico ou desapegado, as suas observações não são clínicas, estão impregnadas de uma certa urgência, a de alguém empenhado em prevenir um mal que, se não é possível antecipar, pode, no entanto, não ser ignorado: “Não se faz uma ideia suficiente da destruição que ocorre na cabeça de um paranoico. (…) Esta, contudo, está nele, pois é parte dele, e se aparecer, de repente, no mundo exterior, seja em que lado for, não o pode de modo nenhum admirar nem surpreender. A intensidade dos fenómenos que se dão em si próprio, eis o que ele impõe ao mundo como visão.” É essa intensidade precisamente o que o faz “aparecer como visionário ou profeta, como salvador ou guia”.
E há um sem número de momentos em que os alertas de Canetti parecem ser dirigidos muito particularmente à presente ameaça sob a qual vivemos. Diz-nos ele que, se “a soma total de sensibilidade no mundo civilizado tornou-se muito grande”, por estranho que possa parecer, essa sensibilidade tem a sua tradição regulamentada e não se deixa abalar por nada. Para exemplificar isto, reporta-se à Idade Média, como uma dessas épocas dissolvidas num estupor repulsivo, por as situarmos além dos limites toleráveis de crueldade. Canetti nota como a impressão que certas narrativas e ilustrações populares provocaram no imaginário é de tal modo profunda que a maioria das pessoas, mesmo cultas, não chegam a desembaraçar-se dessa ténue mas arreigada memória do tempo da tortura e da queima das bruxas. Nem mesmo “a comprovada notícia de que a queima das bruxas foi, efetivamente, invenção e prática de uma época posterior” pode deslaçar este nó, de tal modo que a Idade Média está perdida, talvez para sempre, para o tumulto de um horror que não lhe é próprio.
Mais significativo ainda é o passo que Canetti dá a seguir, intuindo que “o homem comum tem, no fundo, mais horror pela Idade Média do que pela Guerra Mundial por que ele próprio passou. Pode-se resumir este tema em uma frase arrasadora: seria mais difícil, hoje, condenar uma só pessoa a ser queimada viva em público do que desencadear uma guerra mundial.”
Este anúncio acompanha uma série de outros, e o reconhecimento de que o mundo viveu um processo de desagregação, e que ao escritor cabe refletir de forma verídica esse fenómeno sem cair numa representação caótica, em que nada se perceba. Canetti acredita que a missão do escritor passa por recuperar “os acessos entre as pessoas”, preservando por todos os meios “um dom que foi geral, [mas] que, agora, está condenado à atrofia”.