Quem teve uma, saberá que a infância não se encontra exactamente no passado. Não é um país estrangeiro, mas uma terra onde fomos todos vulneráveis e em que tínhamos alcunhas – isto se valesse a pena chamar por nós. Nunca o “eu” nos causou tamanho embaraço, sempre com mais mãos que bolsos, e nunca mais o que diziam os outros de nós mexeu tão fundo, a nível celular, com a nossa imagem. Sobreviver-lhe sem desertar tem, por isso, de ser encarado como um feito digníssimo e que nos diz verdadeiramente quem atingiu a graduação como adulto, ou se limitou a usar cábulas ou a copiar pelo tipo do lado.
Fácil é suspeitar como João Alfacinha da Silva, um homem que nunca se desfez da alcunha dos tempos de liceu, aprendeu muito com os rituais de rebaptismo da canalha, sabendo como, por vezes, só estes fazem sair de nós uma assinatura inconfundível. E foi aqui, no país de suas Altezas, dos barões assinalados, dos doutores e das madamas, que Alface se apresentou ao serviço como escritor, com a alcunha reciclando-se em pseudónimo.
Na “Patriazinha iletrada” o mais certo é que a gente que anda aos montes não desse por um dos raros que não mijou os muros em filinha como fazem os “pirilaus das letras”, que o Pires, um dos inesquecíveis personagens de Alface, “carimbava displicentemente de mulherzinhas com período permanente”. Este que há dez anos se foi nunca fez segredo que lhe faltava a pachorra para a literatura que alguns arrastam aos ombros como uma canga. Aquele ar pesado, o do escritor afundado na sua “guerra civil” foi um ferrete cuja marca nunca aceitou. O triunfo da sua escrita é o não dar trela a uma frase pelo gosto só de vadiar e ir alçando a patinha do talento e a deixar pelas esquinas um souvenir aos “cães gerais”. Isto mesmo deixou claro na entrevista que deu a Maria João Seixas em 2005: “não pertenço à família dos danados, dos obcecados com a escrita e a leitura. Nem me sinto obrigado a viver da ficção, esta escrita ficcional que pratico é a minha Gorongoza, uma reserva de vida selvagem e doméstica”.
Faz 10 anos que morreu. Uma morte dessas que vão daqui a dizer o pior da vida. Chamar-lhe estúpida ainda é gentileza se se tiver em conta que foi dessas que gostam de se exibir. Uma morte “em directo”, chamaram-lhe. Um AVC a meio de uma sessão da Comunidade de Leitores da Culturgest, dirigida por Maria João Seixas. Depois desta o apresentar e do seu editor, Vasco Santos, ter falado do seu último livro – o romance “Cá Vai Lisboa” –, tinha Alface começado a responder às perguntas dos leitores quando foi arrepelado pela coisa. No momento, entre os 30 leitores houve quem supusesse que se tratava de uma partida do escritor, e houve risos, até que o susto que tinha nos olhos ficou claro para todos. Nessa madrugada morreu num hospital de Lisboa.
Agora, Montemor-o-Novo, a terra alentejana onde nasceu e viveu a infância e parte da adolescência, prepara-lhe uma homenagem para este fim-de-semana, a melhor que se pode fazer a um escritor: dar condições para que aquilo e aqueles a quem se foi dando o tragam de volta. O programa é variado e pode ser consultado em baixo. Deve destacar-se que, para lá das actividades através das quais a Biblioteca Municipal Almeida Faria, entre os dias 26 a 29, promove este encontro literário à volta da sua obra, teve um papel também no apoio à reedição desta – que começou pelo volume de contos de 1995 “Cuidado com os Rapazes” –, e de um livro de ensaios da autoria de Teresa Carvalho que lhe é dedicado, “Alface. Levantar as Saias ao Diabo” (ambos com o selo da Maldoror).
Depois da selvagem estreia, em 1977, com “os lusíadas” (Assírio & Alvim), o primeiro livro de uma trilogia de ficção escrita a quatro mãos com Manuel da Silva Ramos, e a que deram o título genérico de “Tuga” – seguir-se-iam “As Noites Brancas do Papa Negro” (1982) e “Beijinhos” (1996), já com o selo da Fenda de Vasco Santos –, Alface trocou o “atletismo subversivo” daquela meditação ficcional que tomou a receita de Joyce arrastando o exercício literário numa marcha extenuante, no fim da qual não se tinha de pé uma só das convenções tão gradas aos bufarinheiros das letras, voltando costas a todo aquele destempero, para revelar-se um mestre da concisão, especialista no fabrico de explosivos artesanais. Nos dois volumes de contos que publicou – a “Cuidado com os Rapazes” seguiu-se “O Fim Das Bichas”, em 1999, reunidos em 2006 em “A mais velha profissão do Mundo”, também na Fenda –, Alface mostra o que quis dizer quando falou do seu apreço extremo pela forma, cultivando “uma escrita com dinamite dentro”.
A sua obsessão com o recorte perfeito nos contos não se confunde com caprichos de estilista. O que se vê neles é aquele exercício com o lenço de seda caindo sobre uma espada de samurai que o corta provando a fome da sua lâmina fanaticamente afiada. Somos por ele relembrados das origens míticas da literatura como a mágica tradição oral daqueles que provocavam contracções no ar com as estórias, as lendas, as lérias que contavam, o raio que desde tempos imemoriais nos partia quando ficávamos nesse empolgamento de ouvido emprestado a um bruxo que nas frases ia cozinhando uma poção inebriante. Um escritor assim é muito outra coisa, e hoje não é tarde nem é cedo para lembrar aos que vivem enclausurados na literatura, como freiras num convento na mais pia contemplação, o quanto as suas cartinhas, os seus epifânicos furores e delambidas prostrações, do lado de fora daquela reclusão toda não sabem a mais que conforto moral para virgens.
“Por detrás das suas sete dioptrias Alface topava-nos na nossa lusa alma de barata, com pessimismo, ironia e superior inteligência”, escreveu o seu editor, Vasco Santos, adiantando: “Em resumo: ‘palavra festa brava’. Amigo de Herberto Helder, que conheceu durante o tempo em que ambos trabalhavam na Emissora Nacional, com uma vasta actividade enquanto escritor para a rádio e televisão, Alface foi um desses escritores que têm muito claro o quanto a literatura, nos seus excessos, na sua luxúria onanista, arrisca banalizar-se como mais uma dessas artes de quem faz o deserto em seu redor para andar à caça de miragens. E a sua receita para escapar a esta fatalidade era simples: “para mim a escrita tem de ser contundente, eficaz (a moleza das frases e personagens enjoa-me)”. Contudo, ele sabia como a simplicidade revela ser “de uma grande exigência e credora de um imenso saber. É a mãe da criação.” E depois, é claro, há certas coisas óbvias que ninguém se dá ao trabalho de explicar aos escritores novos que vão aparecendo: “não está dito em lado nenhum que [se] tenha de ganhar dinheiro com a literatura”. E se a ideia não é fazer pela vida nem ajudar à morte dos demais, esse pode voltar a ser um espaço de liberdade, um recreio alargado onde volta a ser necessária a coragem da infância para sentir tudo como uma virgem, mas gozar como uma devassa.
O Município de Montemor-o-Novo vem convidar-vos a assistir aos Encontros Literários Alface 2017, a decorrer na Biblioteca Municipal Almeida Faria, de 26 a 29 de Outubro. Apresentamos um programa variado, com cinema, exposições, conferências, lançamento de obra, venda de livros e leitura de contos, para dar a conhecer a Vida e a Obra de João Alfacinha da Silva, ou, simplesmente, Alface, um escritor presente em toda a linha da produção artística: teatro, cinema, rádio, jornais e, por fim, na Literatura, legando-nos um conjunto de contos e romances que lhe confere um lugar de destaque no panorama da Literatura portuguesa contemporânea. Fica o convite para conhecer o ilustre montemorense que tanto contribuiu para o enriquecimento do Património Cultural de Montemor-o-Novo.
Programa:
Dia 26 (quinta-feira)
Sessões de Leitura de contos do Alface dirigidas a instituições e alunos da Escola Secundária de Montemor-o-Novo (Biblioteca Municipal Almeida Faria)
21:30 Cine-Teatro Curvo Semedo (Integrado na Programação do Cineclube de Montemor-o-Novo) Exibição do filme Facas e Anjos, argumento de Vicente Alves do Ó e João Alfacinha da Silva.
Dia 28 (sábado)
15:00 Abertura dos Encontros Literários Alface 2017 / Auditório da Biblioteca
(A Vida e a Obra de João Alfacinha da Silva)
15:30 Mesa-Redonda: João Alfacinha da Silva / Diogo Pires Aurélio, Eduardo Paz Ferreira
16:30 Mesa-Redonda: Alface na Rádio e na Imprensa
Regina Santos, João David Nunes e Mário Mesquita
18:10 Mesa-Redonda: Alface no Cinema e Televisão
Teresa Paixão, Fernando Matos Silva
Dia 29 (domingo)
14:30 Auditório da Biblioteca
Comunidades de Leitores em Viagem: debate sobre as leituras da Obra do Alface
15:30 Mesa-Redonda: João Alfacinha da Silva
Vitor Guita, Ana Prata, Luís Filipe Rocha
16:30 Lançamento da obra Alface. Levantar as saias ao diabo, de Teresa Carvalho, com apresentação de Vasco Santos
17:30 Mesa-Redonda: Alface na Literatura
Teresa Carvalho, Manuel da Silva Ramos, António Cândido Franco
19:00 Leituras de Alface, por Universidade Sénior do Grupo dos Amigos de Montemor-o-Novo (Estudos Gerais)
19:30 Encerramento dos Encontros com Poejo de Honra
Durante o evento estão patentes as exposições “Alface em Flagrante” (Oficinas do Convento) e “Alface” (Escola Secundária de Montemor-o-Novo), e uma Feira do Livro.