Todo o vilipêndio que, neste país, envolve o sistema promocional no qual participa um número sem fim de prémios literários, tão miseráveis quanto indistinguíveis, é merecido pelo que há décadas se tornou irrefutável: o modo como, através deles, um bando de apagadas figuras do meio académico se eternizam, buscam prestígio, e se reservam uns restos de influência na troca de favores que marca o bolorento convívio dessas instituições. Está tudo tão à vista que, para os menos parvos, os prémios têm já um efeito desprestigiante. Em nome dos altos valores culturais, o regabofe não se faz sem umas massas públicas. E, no entanto, se há casos em que este nível de pelintrice só dá para rir – como o do Pen Clube, que este ano tem membros da sua direcção nomeados para os prémios que irá atribuir, e isto sem revelar que júri mandou às urtigas a mínima aparência de idoneidade -, há exemplos em sentido contrário, aqueles que nos encorajam a interceder por Sodoma e Gomorra na esperança de que haja ainda 50 ou, pelo menos, 10 justos que estarão dentro das cidades (no caso do meio português, vilarejos).
“Mea Culpa”, de Carla Pais, chegou a ser indigitado para o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís, mas a típica confusão de secretaria, permitiu que uma estreita interpretação do regulamento do prémio se impusesse, invalidando a sua atribuição por antes já ter sido publicada uma obra de carácter ficcional da autora. “Renascer” (2009), o tal livro – entretanto retirado do mercado devido a problemas com a editora (Chiado Editora) – era na verdade um relato não ficcional em que a autora retrata a sua experiência dando aulas de formação à noite numa empresa que tinha um ponto de vista privilegiado sobre a deterioração das condições laborais e a forma como a flexibilização fez de tantas empresas nacionais esse inferno onde a selva voltou a impor a sua lei.
Passemos ao que interessa. Este primeiro romance de Carla Pais chega-nos com o selo da Porto Editora, e dizer que se trata de uma aposta atípica não chega para sinalizar este cisne negro. Trata-se de uma narrativa que, com todo o seu investimento poético, não disfarça uma duríssima experiência da vida. São lugares e figuras surradas, uma escrita que faz sair debaixo da letra de imprensa uma caligrafia rude, com ambientes e descrições que nos atiram para cenários de uma ruralidade que atordoa e nos fere, como fim de mundo seguro sobre o abismo por um esgarçado fio.
E é um livro tanto mais estranho por não esconder nem borrar as suas imperfeições. Está cheio delas, de descrições obsessivas, um gosto acre, como se a acção só pudesse avançar por meio de ecos, e todos os efeitos sensoriais estivessem cobertos de ferrugem. Às vezes, fica mesmo a sensação de que a revisão do texto poderia ter sido mais cuidada. Mas isso não macula o que há de mais poderoso neste relato: como este se nos dá a ler nos antípodas do que tem sido a tónica de tanta da literatura mais elogiada entre nós, gerindo sempre um falso desespero, traindo a todo o momento as vivências dolorosas para se prantear nuns auto-deslumbramentos, numas consciências de porcelana, nuns embevecimentos de parvas princesas e pategos de muito bom coração. Uma literatura em que a poesia entra como arremedo, em que a violência é servida como a cabeça de porco numa travessa com a laranja entre os dentes. Ali, a sensibilidade literária enverniza, ou produz réplicas de cera; aqui, ela não nega o artifício da representação, mas estas personagens são ensaios bastante comprometidos com a sua desolação. Não há cá realismos mágicos nem o pindérico bailado das frases que vestem os andrajos soluçantes à Beckett, mas depois espalham purpurina no rosto, mirando um ponto no espaço com ar sonhador.
Dividido numa série de brevíssimos capítulos, funcionando quase como retalhos, com esse fulgor próprio de uma narrativa que abdica do tempo para lhe dar corda, são antes os efeitos de focagem e desfocagem que nos empurram o rosto cada vez mais fundo contra uma realidade cujos espinhos ferem a mão que procure colhê-la como flor de fábulas.
Leia-se um parágrafo para evitarmos paráfrases inúteis: “Senta-se todas as tardes debaixo da oliveira que se dobra sobre o banco. O rio corre longe das mãos e dos olhos, e à boca daquela mulher chegam apenas os passos do coveiro. Nada mais do que a espera daquele homem franzino que traz o cheiro dos ciprestes nos braços. Os pardais debandam, o vento corta-se acima dos pomares que semeiam a terra para que tudo seja silêncio. Os milheirais cobrem a secura do rosto daquele homem e a ponta do cigarro que lhe morre na boca. Vem a assobiar para o lado sul da ponte, a guardar-se do sol e das gentes. As botas pesam-lhe nos pés porque ainda acarretam a terra que aos mortos pertence. De passadas toscas, pernas desalinhadas e boca sumida no fumo, ajeita, com a ponta dos dedos, o casaco aos xadrezes. Coça o rabo amiúde como um cão pulguento. Tem pulgas no cu aquele homem que enfeita os mortos.”
Lê-se aqui o que há de mais forte como também a própria afectação de um universo que, na sua fidelidade, não evita a redundância, demasiadas vezes fica sujeita à errância, e afocinha o leitor num imaginário teimosamente sórdido. Tem a sua verdade, e a autora, nascida na aldeia de Chãs, freguesia de Regueira de Pontes (perto de Leiria), explica que este livro se serve das sua primeiras memórias, dos episódios da infância que mais a marcaram, e diz que sempre que volta para buscá-las estas “vêm nítidas, límpidas – por isso consigo transcrevê-las com grande fidelidade”.
Deixou a escola aos 17 anos depois de ser mãe, e só anos depois retomou os estudos. Voltou então a ouvir dos livros o seu vertiginoso bichanar. Conta que na sua família pouco se lia, e só um tio, hoje morto, tinha essa sensibilidade que lhe passou. Depois de ter deixado as suas origens e ter vindo para Lisboa, há cinco anos viu-se forçada a emigrar para França, onde fez limpezas, embalou salmão e tomou conta de crianças. Hoje voltou à formação, e nota que, se “o francês é a minha língua do dia-a-dia, só leio em português”. Adianta que não é que não saiba ler em francês, mas “porque tenho medo de me esquecer da língua portuguesa. Preciso dela não só para escrever, mas porque ela devolve-me às minhas raízes”.
Esse aspecto também parece ter deixado marcar na escrita, e há momentos neste livro em que a língua tem algo de função retomada, é um português que hesita, se espreguiça, e que se faz valer da estranheza de voltar a ouvir os seus sons, de se familiarizar consigo próprio e retomar a sua dinâmica caminhante.
Algo bastante notório também é a forma como esta estreia se inscreve dentro de uma experiência tão radical na auscultação dos próprios sentidos da língua, como aprendeu com Rui Nunes e dá, assim, sinal da resiliência de uma linhagem tão recuada e que encara a escrita como sentido último de uma tumultuosa operação sinestésica. “Gosto imenso de Rui Nunes”, confessa, “e precisamente por isso, porque é um escritor que tem uma capacidade de retirar de um detalhe toda uma história”.
“Li recentemente uma entrevista dele em que assumia isso mesmo, atribuindo à perda progressiva da visão, estando ele hoje praticamente cego, essa tendência para focar-se no ínfimo, e como essa se torna a sua medida do mundo. Isto conduz, por outro lado, a que os restantes sentidos compensem essa falha, e se tornem bem mais apurados do que os da maioria de nós.”
Na forma desassombrada como assume esta dívida, Carla Pais prova também a diferença de uma autora que sabe o suficiente para que o mito da originalidade não tenha sobre ela grande apelo. “Um livro do Rui Nunes obriga-nos a lê-lo demoradamente, exige-nos um exercício de contemplação”, e acrescenta: “Ao mesmo tempo, o que a sua escrita faz é tornar-nos leitores mais exigentes, obrigando-nos como escritores a uma mais profunda exigência, e assim transforma-nos.” Outra influência que enquadra nesta mesma busca de uma escrita que provoca dores musculares na língua é Maria Velho da Costa, que, segundo Carla Pais, a incita a um tipo de reflexão que é sentido como um amadurecimento, a nível tanto pessoal como enquanto escritora.
“Mea Culpa” é uma dessas estreias às quais, por facilidade, se atira a ridícula coroa de flores de tachá-la de prometedora. O tipo de banalidades com as quais a crítica se exime de encarar a literatura como um fim em si mesmo. O do livro, o da página isolada, o de uma só frase. Este livro é destemido até no não disfarçar as suas fragilidades, e é daí mesmo que arranca o que há de mais vigoroso nele, uma poética da vulnerabilidade, alguém que morde não com dentes de leite, como se pudesse sempre ir mais fundo, mas com dentes que balançam e doem nas gengivas. Porque é nessa condição que mais se aprende o gosto do mundo, uma vez que, como a autora disse ao i, “somos frágeis, e só a própria vida e as coisas que nos magoam nos ensinam a protegermo-nos.”