António leva a mão à boca assim que lhe sai a palavra “felizmente” associada àquele dia. “Felizmente” não estava lá na hora da enxurrada, mas sabia que a mulher, Maria José, “infelizmente” estava com os dois filhos pequenos em casa dos sogros, que viviam em Quintas, a aldeia que quase desapareceu com a força das chuvas torrenciais de 1967.
A morte quase iminente da mãe – que acabou por falecer dois dias depois da cheias – fez com que no dia 25 de novembro tivesse que ir a Vila Franca de Xira comprar morfina. Acabou por ficar lá a dormir e “sem telemóveis ou internet”, lembra, só ficou a saber que na aldeia onde deveria estar morreram à volta de cem pessoas – número nunca confirmado como, aliás, todos os relacionados com esta tragédia – quando não conseguiu comprar ‘O Século’. “O ardina passou de bicicleta com a cesta vazia e disse-me que os jornais não tinham chegado porque os comboios não passavam com a água”, conta.
Pôs-se a caminho imediatamente e ainda hoje, aos 78 anos, a voz treme ao lembrar um cenário que não há meio de esquecer. “A lama estava por todo lado, os corpos espalhados, alguns já a serem lavados, uma coisa…”. Não termina a frase e troca as palavras por um acenar de mão de quem quer apagar as imagens que marcam uma aldeia que teve que começar de novo.
As memórias
Neste começar de novo imediato participaram aqueles que com a força dos braços recolheram corpos, limparam a lama e reconstruiram aqui uma nova aldeia. “Quando vejo o que agora é feito às famílias das vítimas dos incêndios e o que nos fizeram a nós…nem tem comparação”, refere António, que se lembra pouco de ver as autoridades envolvidas nas limpezas e reconstrução da aldeia, mas não esquece as centenas de estudantes que se prontificaram a ajudar. “Pessoas que agora estão na política. Ouvi dizer que até o Marcelo andou por cá”.
Mas este começar de novo não vive apenas do imediato e é feito também por quem ao longo dos anos escolheu ficar. Maria do Rosário tinha cinco anos em 1967, mas não é isso que a impede de descrever uma noite que lhe ficou como a primeira das memória.
“É como se fosse hoje”, garante, à saída do portão de casa. “’Tá a ver essa torneira aí? Ainda me lembro de ver a minha mãe lavar um corpo de um bebé cheio de lama. Coitadinho, morreu”. Ficou a fazer companhia à irmã desse bebé que, por terem a mesma idade, até vestiu roupas suas.
Aprendeu a guardar para si as memórias desse dia, até porque o seu pai achava que talvez assim as coisas se fossem esquecendo. Mas não. Hoje, com 55 anos, lembra-se dos corpos serem transportados em tábuas de madeira e de ver um senhor “ao fundo ali da rua” – diz-nos com o dedo apontado à direita – a chegar em prantos a chorar a mulher e os filhos que tinham morrido em casa. Lembra-se também dos casos em que as pessoas, apanhadas de surpresa, iam sendo encontradas cadáveres, na mesma posição que estavam em vida. “Aqui ao lado foi um casal na cama, ainda todos tapadinhos”. E não esquece, claro, que numa aldeia feita de famílias, a sua – os Pereiras – perdeu 36 pessoas.
Uma aldeia que era família
Mariana Guerra começa a contar pelos dedos das mãos as pessoas que perdeu nesse dia. Mas as duas mãos não chegam.
Só sabe a que horas se deu a tragédia, porque os relógios que não foram com a enxurrada estavam parados às duas da manhã. Foi a essa hora que acordou com os gritos de quem via a aldeia desabar com a força das chuvas.
Teve a sorte de viver um pouco acima da linha máxima que a água atingiu e ver escapar a casa feita num alçapão, onde vivia com o marido e os dois filhos. Depois de garantir que Maria José e João Carlos, de sete e seis anos, estavam em segurança, galgou aldeia abaixo até à casa onde sabia estar a irmã Maria Emília e os três sobrinhos.
A porta de casa aberta – que não se sabe se por força da chuva ou da curiosidade de Maria Emília – fazia antever o pior. “Encontrei um arame no meio da lama e disse: “A minha irmã está aqui’”. Ninguém lhe deu ouvidos até que, ao esgravatar na lama, tocou na trança da irmã. Mariana sabia que aquele arame era um gancho do cabelo que Maria Emília todos os dias usava num carrapito.
Os dias seguintes foram de choro – “muito choro”, garante – mas também de força, “que nem sei bem de onde vinha”. Foi essa força que a fez ficar numa aldeia que já não reconhece como aquela onde cresceu e onde todos viviam como família. “Sabe a que é que me agarro? Ao pensar que isto foi vontade de Deus”, explica, acrescentando que nem por um segundo a sua fé foi posta em causa. Acredita que Deus levou os melhores para o pé d’Ele e é por isso que todos os dias pede paz às almas dos que foram. “E a sua, está em paz?, arriscamos perguntar. “Vai estando menina, vai estando…”