O poder da rua

Há 10 anos realizou-se a maior manifestação de professores de que há memória, contra as avaliações impostas pela ministra Maria de Lurdes Rodrigues no Governo de José Sócrates.

O Terreiro do Paço encheu-se.

Na altura, louvei Sócrates por resistir aos manifestantes.

Quando um Governo cede ao poder da rua está liquidado.

Foi isso que matou a 1ª República.

Se os sindicatos percebem que um Governo não tem capacidade anímica para resistir às manifestações e às greves, sentem-se obviamente estimulados a aumentar a pressão.

E todos já perceberam que este Governo perdeu a força anímica.

Mário Centeno começou a semana passada a dizer taxativamente que não havia dinheiro para as reivindicações dos professores, e acabou a semana a sair de cena com o rabo entre as pernas.

António Costa andou diariamente a explicar por que era impossível acolher o que os professores queriam, e acabou a semana a ceder em toda a linha.

Foi uma rendição total, quase sem condições.

Até pode nem ter sido bem assim, pode haver algo nas entrelinhas que aponte no sentido contrário – mas em política o que parece é, e foi essa a ideia que transpareceu.

Outra razão para um Governo não ceder ao poder da rua é que isso cria sempre situações de injustiça.

Ao ceder aos professores, o Governo autorizou todos os ‘lesados da austeridade’ a exigirem um tratamento igual.

Ou há moralidade ou comem todos.

Mas como não há condições para satisfazer todos, acabará por prevalecer a lei do mais forte.

Atingirão os objetivos aqueles que tiverem mais poder reivindicativo, que conseguirem juntar mais pessoas nas manifestações e fazer greves com maior impacto social.

Ao entreabrir a porta a alguns, o Governo convidou todos os que estão do lado de fora a empurrarem com mais força.

E é a isso que vamos assistir neste final de legislatura.

Vai ser um vendaval de manifestações e greves, vamos ver Mário Centeno de cabeça à roda tentando ‘acomodar’ reivindicações impossíveis, e António Costa perdido, sem saber para onde se virar.

Não sei por que fraquejou o primeiro-ministro, quando parecia ter tudo a seu favor.

Por causa dos incêndios?

Por causa da aparente falta de apoio do Presidente da República nesta fase?

Pelo esgotante trabalho de negociação com o PCP e o BE, que não mata mas mói?

E agora?
Por muito que o Governo consiga resistir às pressões que virão de toda a parte, o descongelamento das carreiras já aceite, o pagamento de ‘retroactivos’ aos professores, as outras reivindicações já acordadas, tudo isso vai aumentar bastante a despesa pública.

E para dar a uns vai ser preciso tirar a outros.

Para dar ao setor público, vai ser preciso tirar ao privado.

Se a sociedade civil já estava asfixiada pelo fisco, ainda mais irá estar.

A estes ninguém vai devolver os aumentos de impostos e os congelamentos de salários durante a crise.

Pelo contrário, vão ser mais sobrecarregados de impostos por causa do crescimento da despesa.

Escrevi há duas semanas que a grande luta do PSD vai ser a redução do peso do Estado para poder baixar a carga fiscal.

Ora, a ‘geringonça’ está a tornar esta luta mais necessária e mais fácil.

Na sua ânsia de favorecer a classe que lhe dá mais votos – os funcionários públicos – e de ceder ao BE e ao PCP, o Governo está a abrir caminho para ter todos os outros contra si: os empresários, os profissionais liberais, os empregados bancários e do comércio, os funcionários das grandes, médias e pequenas empresas privadas, etc.

O fosso entre o público e o privado, o Estado e a sociedade civil, é cada vez maior.

E esse vai ser o grande choque num futuro próximo.