Diretores de museus dizem que não há nada para devolver às ex-colónias

Museu de Arte Antiga, Museu de Etnologia e Museu do Tesouro Real respondem à polémica sobre ‘bens saqueados’ levantada pelo Presidente da República.

Haverá nos museus portugueses obras cuja proveniência levante dúvidas e que sejam, por isso, suscetíveis de devolução? A questão colocou-se depois de o Presidente da República, num longo jantar com jornalistas estrangeiros, ter sugerido a possibilidade de existirem em Portugal bens que «foram saqueados e não foram devolvidos». A confirmar-se, rematava Marcelo Rebelo de Sousa, «vamos ver como podemos reparar isto».

Não seria caso único. Em outubro de 2021, o Presidente francês, Emmanuel Macron, devolveu à República do Benim um conjunto de 26 objetos que haviam sido saqueados pelos franceses em 1892, honrando assim a promessa feita em 2017 no Burkina Faso. Na altura, perante uma plateia de estudantes universitários, Macron declarou que faria o que estivesse ao seu alcance para restituir património espoliado às antigas colónias africanas.

Marcelo, de forma menos solene do que Macron, abriu a porta a um processo idêntico. Contudo, segundo diversos responsáveis de museus nacionais contactados pelo Nascer do SOL, não existem motivos para falar em devolução.

Comércio internacional e missões de investigação

«A grande maioria das obras de proveniência extra-europeia que o MNAA possui são obras que decorrem do comércio internacional, feitas já na origem para a exportação», explica Joaquim Caetano, diretor do Museu de Arte Antiga. «De forma muito maioritária pertencem a territórios de origem onde Portugal não teve propriamente uma presença colonial, mas antes pequenos pontos de ancoragem e comércio. Talvez a única exceção seja o território de Goa, de onde vieram algumas peças importantes. Sem ser pela via comercial, as peças que detetamos na coleção são os dois retratos da galeria de vice-reis de Goa que se encontravam em Portugal para restauro à altura da anexação do território pela União Indiana e não voltaram».

No MNAA existe, por exemplo, um importante saleiro de marfim do século XVI, oriundo do reino Benim, mas trazido para Portugal num contexto bem diferente das pilhagens francesas. A representação de homens claramente ocidentais, um dos quais um cavaleiro, mostra que se trata de uma encomenda feita por europeus a artesãos locais.

Mas se há lugar para onde confluíram os objetos das antigas colónias portuguesas é sem dúvida o Museu Nacional de Etnologia, no Restelo (Lisboa). Das suas 42.000 peças (provenientes de 79 países), 13.500 vieram dos sete países de Língua Oficial Portuguesa, como refere o diretor, Paulo Ferreira da Costa. Questionado pelo Nascer do SOL, o responsável diz «desconhecer a existência de qualquer objeto que suscite dúvidas quanto à legitimidade da forma da sua aquisição para as coleções do Museu Nacional de Etnologia e que, como tal, se configure como suscetível de restituição». E esclarece: «Tal decorre de vários fatores, devendo sublinhar-se o facto de, tendo sido objeto de organização a partir de 1962, e de criação formal em 1965, este Museu resulta do trabalho desenvolvido por duas unidades de pesquisa e de ter ancorado a constituição das suas coleções nos territórios das ex-colónias portuguesas no âmbito de missões de investigação». Essas missões, continua, «tinham como objetivo a constituição de coleções que documentassem, com o caráter o mais sistemático possível, a cultura material (e imaterial) das sociedades e culturas desses territórios, em todas as suas componentes, não apenas na sua dimensão cerimonial, artística ou lúdica, mas também, nomeadamente, de caráter produtivo, tais como agricultura, pastorícia, caça, pesca, olaria, cestaria, metalurgia, entre muitas outras».

Paulo Ferreira da Costa nota ainda que «desde o primeiro momento o Museu teve como objetivo documentar o mais amplamente possível as culturas das sociedades de todo o mundo, e não o de constituir-se como um ‘museu colonial’», um modelo de que o Museu Real da África Central, na Bélgica, é o exemplo acabado.

Também o diretor do Palácio da Ajuda – Museu do Tesouro Real, José Alberto Ribeiro, afasta quaisquer dúvidas a respeito da proveniência dos objetos ali conservados. Não existem nos acervos da instituição – onde abundam as joias feitas com ouro e pedras preciosas do Brasil –, «peças recolhidas em contexto de guerra ou saque», assegura. «Todas as peças estão estudadas quanto à sua proveniência».

Não foram apenas os franceses que devolveram algumas obras saqueadas (o que não impede que os despojos de guerra pilhados pelas tropas de Napoleão continuem no Louvre). Em dezembro de 2022, o Estado Alemão entregou à Nigéria 22 bronzes, depois de ter assinado um acordo que prevê a devolução de mais de 1.100 peças ao longo dos próximos anos.

Já os ingleses não parecem fazer qualquer tenção de devolver sejam os bronzes saqueados no Benim em 1897, sejam os baixos-relevos do friso do Pártenon, adquiridos de forma hoje muito contestada, seja ainda o tesouro de Magdala, constituído por centenas de objetos pilhados após a batalha que teve lugar naquela localidade da Etiópia em 1868.

20 000 000 000 000

Quando se fala de reparações, como o Presidente da República falou, não está em causa apenas a restituição de património histórico ou cultural. O processo pode também envolver pesadas indemnizações – um cenário que foi depois descartado tanto pelo Chefe de Estado como pelo Governo. Num artigo publicado em setembro de 2023 no Observador, o historiador João Pedro Marques apresentou as contas da escravatura:_«Em números redondos seriam mais de 20 biliões de dólares que supostamente deveríamos ao Brasil». E_vincava que «um bilião equivale a um milhão de milhões». O_valor baseava-se no relatório Quantification of Reparations for Atlantic Slave Trade, publicado em junho do ano passado, que avaliava em cerca de 100 biliões de dólares os danos provocados pela escravatura. Nesse ranking, só a Grã-Bretanha teria a pagar uma fatura mais elevada do que Portugal, na ordem dos 26 biliões de dólares.

Sem revisão sda Constituição não há impeachment

O repto lançado por André Ventura na sequência das polémicas declarações do Presidente da Rep]ublica, não tem para já apoios que o possam tornar realidade.

O líder do Chega levantou a hipótese de incluir na Contituição, numa futura revisão da lei fundamental, um artigo que permita a destituição do Presidente da República, à semelhança do que existe noutros países. Refira-se que Ventura disse estar a ponderar apresentar uma queixa-crime contra Marcelo pelas  declarações a defender a indemnização aos países colonizados.

Para já, sociais-democratas e socialistas recusam pronunciar-se sobre o assunto, alegando que não está em cima da mesa um processo
de revisão constitucional. Para que o processo possa concretizar-se
é necessária uma maioria de dois terços no Parlamento e, ao que
parece, nem PSD nem PS_estão
interessados.

com Raquel Abecasis