Não acontecerá a todos, mas a alguns, com os anos, a sinceridade usada como desculpa parece cada vez mais uma falta de educação. As palavras vão-nos ganhando suspeitas – “graças a isto, graças a esta desproporção/ graças a esta inexplicável fissura” –, seja pelo muito que lhes escapa, seja pelo modo como, involuntariamente, tendem a exceder-se. Acabam por instruir-nos na arte de dizer menos, calar, ou, pelo menos, reservar alguma distância face a erupções emocionais, a súbitas e ferozes certezas, como, inversamente, isto nos permite debelar dúvidas arrasadoras, crises paralisantes. Um dia e outro dia, é a receita. A vergonha desembaraça-se da ansiedade, desce uns degraus, senta-se, torna-se um mestre. A este respeito, a poesia de Adam Zagajewski tem, como já veremos, muito a dizer-nos.
“Os meus mestres”, um dos poemas iniciais da antologia deste poeta polaco que acaba de ser publicada entre nós, diz-nos: “Os meus mestres não são infalíveis./ Não se trata de Goethe, que só conseguia/ adormecer quando ao longe/ gemiam os vulcões, nem de Horácio,/ que escrevia na língua dos deuses/ e dos sacerdotes. Os meus mestres/ pedem-me conselhos. Vestindo macios/ sobretudos deitados velozmente/ por cima dos sonhos, ao romper do dia, quando o vento/ fresco interroga os pássaros, os meus/ mestres falam por sussurros./ Consigo ouvir a sua voz trémula.”
A edição da Tinta-da-China estava já em andamento e foi anunciada quando, em junho passado, Zagajewski venceu o Prémio Princesa das Astúrias. Proposto a este por vários dos anteriores galardoados, o vencedor do ano anterior, o ficcionista norte-americano Richard Ford, rendeu um dos mais acertados elogios ao congratular-se com a decisão dos jurados: “A poesia de Adam Zagajewski, luminosa, profunda, às vezes crua, mas sempre lírica, consegue o raro triunfo literário de ser política e, no entanto, supremamente humana, num único, contínuo e complexo movimento”.
Aos 72 anos, o seu processo entrou definitivamente nos andares superiores dos serviços administrativos da glória. Peças da sua roupa foram distribuídas pelo canzoal, e as homenagens e distinções hão de suceder-se a bom ritmo, como pedrinhas lançadas às janelas da Academia Sueca. O mais celebrado dos poetas vivos do seu país, Zagajewski conta com auspiciosos precedentes, tendo o Nobel consagrado dois dos protagonistas (ambos reconhecidos sobretudo enquanto poetas) na geração imediatamente anterior à sua: Czeslaw Milosz, em 1980, e Wislawa Szymborska, em 1996. Mais novo, Zbigniew Herbert morreu primeiro – em 1998, aos 73 anos –, autor de uma obra que não apenas ombreia com a daqueles como é, no juízo de muitos, mais singular e marcante.
Merece ainda destaque entre aquela primeira geração de poetas de um país que tinha acabado de recuperar a sua independência (1918), após um século de divisões entre as nações vizinhas, Tadeusz Rózewicz. E se um inescapável sentido de urgência, uma veemente legibilidade na poesia deste homem que integrou as forças de resistência polaca à ocupação nazi, não é difícil perceber as semelhanças com a poesia de Zagajewski, também ela testemunho de uma sensibilidade “esmagada pela fatalidade”.
É bastante aguda em qualquer destes poetas a noção de que não se vira as costas à História sem pagar um preço. O risco de a arte se render à futilidade, acabar servindo de tricot para quem não quer abrir a porta até que a arrombem ou esqueçam, é muitas vezes a irrelevância em que caem aqueles que não aceitam o menor compromisso com outra coisa que não a expressão da sua individualidade. Cada um à sua maneira, contribuíram para firmar o altíssimo exemplo que a poesia polaca serviu ao mundo no século XX, através de uma mordacidade impetuosa capaz de segurar pelo fio de umas poucas palavras o sacão de um momento histórico em que a realidade ameaça rasgar de alto a baixo a compreensão humana das coisas.
“Sombras de sombras” não é, lamentavelmente, das mais empolgantes recolhas para se fazer a descoberta de um dos mais cativantes poetas hoje vivos em qualquer língua. Diretamente traduzidos do polaco por Marco Bruno, e apesar da revisão poética de Jorge Sousa Braga, a comparação dos poemas em português com as versões em inglês de Clare Cavanagh (a grande parceira de Zagajewski na difusão da sua obra no mundo anglófono) deixam transparecer uma incapacidade de recriar o halo de comedimento, a tensão entre o dito e o não dito, de que gozam estes poemas na língua inglesa.
Não se imputa qualquer inabilidade da parte da tradução – feita a partir de uma língua que, de resto, nos diz pouco mais do que ver formigas mortas coladas lado a lado, e dispostas segundo um padrão tão evidente quanto enigmático –, apenas se refere que o efeito de falsa frieza, graciosa ironia e humor delicado e constante, são elementos que raras vezes se combinam nas versões portuguesas com a eficácia que encontramos no inglês. E aqui ressalve-se que a diferença pode muito bem estar, não tanto na competência do tradutor, como na rede mais fina dessa língua para prender subtilezas.
Isto não impede, de qualquer modo, que se encontre nesta antologia poemas que, mesmo se não abrem muitas torneiras do português, nem o pingam em superfícies e texturas muito diversas, poemas que envergonham a maioria dos poetas que andam por aí, envergando o prestígio da língua, para se limitarem a fazer-lhe a folha. Ele há tanto capitão de barco de papel que se faz traduzir à pirata para espanhol, francês ou eslovaco sem causar especiais dramas aos tradutores. Poetas que já escrevem como tantos romancistas na língua da bagagem de mão, com rodinhas.
Quem dera a Alegre, um dos mais exportados dos nossos vates, que chegou anteontem de Pádua com mais uns centímetros na crista, mais doutor honoris causa, ter nalgum dos livrinhos de poemas que escreve não já com caneta mas com pá, indo à sepultura levantar os mortos para fazer teatrinhos de escola com eles, quem lhe dera um poema tão simples, tão firme na língua de Camões ou na de Jorge Jesus como este: “Na Beleza Criada Pelos Outros: Só na beleza criada pelos outros/ existe consolação, na música/ e nos poemas dos outros/ Só os outros nos podem salvar,/ mesmo que a solidão tenha o sabor/ do ópio. Não são o inferno, os outros,/ se os espreitarmos de manhã, quando/ têm a testa limpa, lavada pelos sonhos./ Por isso cismo muito sobre a palavra/ que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»/ é uma traição a qualquer «tu», mas,/ em troca, um poema de alguém fielmente/ oferece uma fresca, moderada conversa.”
A poesia de Adam Zagajewski, como já foi notado inúmeras vezes, lida com a sensação de se estar deslocado. As duas décadas de exílio – entre 1982 e 2002 –, claramente deixaram marcas, mas este poeta, que começou por escrever poesia comprometida, encontrou aquele que soube erguer-se das ruínas da história, “louvar o mundo estropiado”, a serenidade que nasce de uma compaixão das coisas pequenas, o incitamento do trivial a orquestrar essa harmonia que preenche um admirável plano-sequência, enquanto as observações do poeta se sucedem numa hábil progressão, enlevando o leitor, provocando nele a sensação de que mesmo o acaso ouve música, gosta de Brahms ou Beethoven (eu sei lá – não percebo puto de música clássica). Tece assim essa pausa emocional, esse avesso do mundo que às vezes nos parece um mero capricho lírico, outras vezes é aquele sinal inusitado que não precisa convencer-nos dessas grandes categorias como o Bem ou a Beleza, mas que na sua pura e espirituosa gratuitidade nos salva a vida.