Crise PS-Bloco. A infidelidade não acaba sempre em divórcio

O investimento estrangeiro – leia-se, os chineses da Three Gorges – determinou a reviravolta do PS para chumbar o corte de subsídios às energias renováveis acordado previamente

Houve “deslealdade”, mas não haverá divórcio. Não há como fazê-lo. Não vai ser por António Costa “ter faltado à palavra dada” – como repetiu Mariana Mortágua num dos discursos mais duros de sempre contra o governo que apoia – que o BE retirará o apoio ao governo.

Na realidade, António Costa só soube a posteriori da aprovação da proposta que reduzia o subsídio atribuído às energias renováveis. Tudo tinha sido negociado previamente entre o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, com o Ministério da Economia a aplaudir entusiasticamente a proposta do Bloco e o Ministério das Finanças a não apresentar qualquer oposição.

Costa só sabe da notícia, através dos jornais online, na “25.a hora” e manda recuar – na linguagem parlamentar chama-se pedir a “avocação” ao plenário para nova votação.

Além do argumento avançado ontem pelo líder parlamentar para justificar a mudança de posição – “para evitar futuras litigâncias como aconteceu em Espanha” – pesou um outro factor muito mais relevante. Costa não quis mostrar que o seu governo estava contra “o investimento estrangeiro”, leia-se aquele que os empresários chineses da Three Gorges fizeram na EDP. O secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, ainda tentou durante todo o fim de semana convencer o primeiro-ministro da bondade do acordo estabelecido com o Bloco de Esquerda. Em vão.

O incómodo do PS e do governo foram visíveis durante a tarde de segunda-feira, na votação final do Orçamento. Ninguém ousou responder ou justificar cabalmente a mudança de posição em menos de três horas.

 

Demarcação favorece Bloco (e também PCP)

É evidente que o governo não gostou de ouvir Mariana Mortágua a acusar o primeiro-ministro de “deslealdade”, tal como o Bloco não gostou de assistir a uma “traição” do governo e do PS no voto de uma proposta que tinha sido negociada cumprindo os cânones usados para negociar coisas na geringonça. Como não gostará de ler, nesta edição do i, Joana Mortágua dizer que o atual PS é, afinal, o mesmo da “submissão aos interesses económicos que o país conhece bem”.

Mas dentro do próprio Bloco admite-se que toda a dramatização – sendo de facto uma derrota para o BE e para os membros do governo que a negociaram – poderá trazer aos bloquistas dividendos políticos. Ou seja, “os portugueses ficam a perceber que este PS é o mesmo PS de sempre”, como afirma um bloquista ao i, e que só mudou alguma coisa por influência do Bloco e do PCP. Nesse aspeto, a dois anos das eleições legislativas, o Bloco ganhou um inesperado argumento de campanha eleitoral. Independentemente da manutenção do apoio ao governo, o BE tratará de mostrar as suas diferenças em relação ao PS nos dois anos que faltam para acabar a legislatura – veja-se, por exemplo, o caso da renegociação da dívida, em que muitos socialistas pensavam uma coisa antes de chegar ao governo e mudaram de opinião quando Costa se instalou em São Bento.

Também no PCP mostra cada vez maior distanciamento em relação ao PS. A propósito do discurso de encerramento do debate do Orçamento de Pedro Nuno Santos, uma das vozes mais importantes da ala esquerda do PS, o deputado comunista Miguel Tiago escreveu no blogue Manifesto 74: “A intervenção de Pedro Nuno Santos na Assembleia da República é, não a viragem à esquerda do PS, mas a marcação pelo PS do espaço eleitoral da esquerda. Ou seja, o PS não quer parecer envergonhado por estar a repor direitos, quer parecer empenhado nessa recuperação, já que a ela está obrigado pela posição conjunta que assinou com o PCP e pela importância conjuntural que o PCP ocupa hoje no quadro político, considerando a força parlamentar e a força social e popular do partido”

Diz ainda o deputado: “Mostrar-se contrariado seria o pior para o PS do ponto de vista eleitoral. Mostrar-se satisfeito e empenhado é a táctica mais inteligente, colhendo assim os louros e ampliando a sua base eleitoral a todos os que esperam há décadas, quase religiosamente, um PS de esquerda. E mesmo àqueles que pensavam já não ser possível um PS de esquerda. (…) O PS nada tinha a ganhar com a insistência num discurso anti-PCP declarado, optando por fazer um discurso anti-PCP velado, fingindo estar abraçando as posições e preocupações do PCP e alargando a sua influência às camadas que até aqui se reviam apenas no PCP e não no PS”. Miguel Tiago adverte que “a ilusão sobre a natureza política do PS pode ter um negro desfecho”, defendendo que o papel do PCP e da luta de massas é neste contexto absolutamente determinante, para que ninguém compactue com um branqueamento político do PS”.