Xavier Viegas: ‘Há lições, coisas que as pessoas têm de saber’

Investigador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais lamenta polémica em torno do capítulo ‘censurado’, que vai apresentar na próxima semana na Universidade de Coimbra. Acredita que o Governo não está a esconder conclusões, mas admite que exista matéria para responsabilizar o Estado

Escreveu um artigo de opinião em que denunciou a censura do sexto capítulo do estudo que fizeram sobre o incêndio de Pedrógão Grande por parte da Comissão Nacional de Proteção de Dados. É uma crítica também ao Governo?

A decisão (de não divulgar na íntegra o capítulo) baseou-se no parecer da comissão e o que temos é um impedimento de divulgar o capítulo. Uso censura entre aspas porque de facto temos tido alguma dificuldade em dar a conhecer este texto.

Parece-lhe que há uma intenção deliberada de esconder alguma coisa?

Não, não digo isso. Creio que houve o interesse em salvaguardar a privacidade das pessoas, o que nós respeitamos também.

Nunca sentiu que fosse querer esconder alguma coisa?

Não creio. 

Denunciou alterações no extrato que o Governo divulgou há uma semana, algo que o ministro da Administração Interna negou…

O texto que foi publicado não foi a versão que nós enviámos. Foram modificadas algumas coisas que tínhamos colocado. Não queria pronunciar-me.

No rescaldo de Pedrógão, houve relatos de que as pessoas se sentiram abandonadas porque não havia bombeiros e até de indicações que podiam ter conduzido algumas vítimas para a morte, nomeadamente por a GNR ter encaminhado pessoas para a EN-236-1. Relatam estas situações neste capítulo?

Referimo-lo mas dizemos nas conclusões que não nos parece que tenham sido fatores decisivos neste processo. Aquela estrada tem tantos acessos que não era possível fechá-la, não era possível ter um guarda em cada cruzamento. Pode ter havido pontualmente alguma indicação e alguma dificuldade, mas não o consideramos um fator determinante.

Concluíram, ainda assim, que só uma minoria das pessoas morreu em casa, quatro vítimas, e que um dos vários fatores para a fuga foi não haver bombeiros por perto. O facto de o socorro não ter estado presente contribuiu para alguns desfechos trágicos?

Julgo que naquele período em que tudo aconteceu muito rápido era difícil haver socorro numa área tão grande. Onde falamos de falta de socorro é após a passagem do incêndio, na prestação de socorro às pessoas.

Neste capítulo que ainda não foi divulgado na integra há elementos que podem ser usados para responsabilizar o Estado criminalmente?

Admito que sim, mas é um assunto que não tenho competência para avaliar. 

Na esfera desse socorro?

Eventualmente.

Não é a primeira vez que um governo não divulga uma parte de um relatório feito pela sua equipa. Aconteceu em 2013, na análise das mortes nos incêndios do Caramulo. Encontra paralelismos?

No outro caso, o que nos foi dito era que se tratava de proteger direitos dos bombeiros que tinham sido vítimas. Penso que fossem direitos sobre os seguros. Mas de facto era diferente porque incidia muito sobre os bombeiros e as estruturas da Proteção Civil. Neste caso, trata-se de populares, civis, são análises distintas.

Mas já tendo passado por isto uma vez, estava mais preparado para que o relatório não fosse totalmente disponibilizado desta vez?

Sim, admitíamos que pudesse haver dificuldades.

Quando optaram por escrever a versão original com os nomes das pessoas, não equacionaram que pudesse haver alguma questão de privacidade, ferir suscetibilidades?

Admitíamos perfeitamente isso e nem estávamos a contar que o relatório fosse publicado. A nossa obrigação era entregar o relatório ao Governo, foi o que fizemos.

Mas tem-se batido para que as conclusões sejam conhecidas.

Com nomes ou sem nomes, penso que de alguma forma era bom que o relatório fosse publicado na íntegra.

Porque tem insistido nisso? 

Porque há ali lições, coisas que as pessoas têm de saber. O que uns fizeram ou deixaram de fazer bem ou mal tanto da parte das vítimas como das pessoas que prestaram socorro. Pessoas que optaram por ficar em casa e sobreviveram. Não é tudo negativo e há lições que temos de aprender se não temos de estar à espera de outra tragédia para reaprender. E é esse aspeto que nos dá alguma mágoa porque mesmo em relatórios anteriores já temos veiculado factos que podem ser aproveitados para melhorar as coisas e podem ser do interesse das autoridades e das pessoas no geral.

Um exemplo dessas lições?

Algo que já temos dito: em situações de incêndio, não é bom que as pessoas se metam à estrada. Não havendo a possibilidade para ir para um sítio em segurança sem ter de se meter à estrada, mais vale ficar em casa.

António Costa revelou que este capítulo cortado será entregue à Provedoria da Justiça, incumbida agora de calcular as indemnizações de cada uma das vítimas. Vê-o como a prova da relevância dos factos que relatam para cada um dos casos, algo que foi questionado pela CNPD?

Não creio que prove coisa alguma, mas poderão encontrar elementos importantes. 

As indemnizações vão ter em conta a perda de vida mas também o sofrimento da pessoa antes de morrer e o desgosto de familiares que sobreviveram. O que analisaram fá-lo antever indemnizações muito díspares? 

Não faço ideia, não queria pronunciar-me sobre isso, são coisas muito subjetivas.

Mas houve algum caso que o tivesse impressionado mais?

Sim, mas não queria pronunciar-me sobre isso.

Faz sentido que não tenha sido solicitada uma investigação às mortes nos incêndios de 15 e 16 de outubro, algo que reclama a associação de vítimas destes fogos? (Já depois desta entrevista, a conferência de líderes parlamentares anunciou que a 7 de dezembro será formalmente aprovada a atribuição dessa competência aos peritos da comissão que estudou Pedrógão). 

Realmente devia ser feito um estudo.

No caso de Pedrógão, a sua equipa foi chamada logo no fim de semana da tragédia. Mesmo que agora avance um estudo, tendo já passado um mês e meio, isso pode comprometer os trabalhos?

Em parte sim, porque se trata de um evento muito mais distribuído no espaço. Mas nós já temos estado no terreno a recolher informação, por nossa iniciativa.

E se alguma entidade estiver interessada em aceder a esses dados poderá solicitá-los?

Naturalmente. 

Na próxima semana organiza na Universidade de Coimbra um seminário sobre as lições de Pedrógão Grande onde já anunciou que divulgará as conclusões deste capítulo, eventualmente referindo os nomes das vítimas que as famílias autorizem. Teve algum aviso do Governo para não o fazer?

Não, não tivemos. Vamos apresentar as principais conclusões.

Já teve autorizações de famílias?

Sim, já falámos com muitas famílias e têm sido positivas no sentido de nos dar autorização.

O que escreveram ajudou-as de alguma forma, ajudou-as no luto?

São conversas que temos tido particularmente. Há diferentes reações.

Qual é o estado de espírito da sua equipa depois desta polémica?

Fizemos o nosso trabalho, gostávamos que não tivesse havido toda esta confusão que dispersa esforços e tempo, mas não temos qualquer mágoa.

Não teme nenhuma represália quando divulgarem as conclusões, como terem de devolver o pagamento do estudo da parte do Estado?

Não. Não espero que isso aconteça.