João Semedo. “O que defendo como direito para todos é o que defendo para mim”

Termina hoje o ciclo de debates do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida em torno da morte assistida. Promotor da despenalização mantém-se firme na causa

Termina hoje na Fundação Champalimaud, em Lisboa, o ciclo de debates “Decidir Sobre o Final da Vida”, promovido pelo CNECV (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida), com o alto patrocínio da Presidência da República. João Semedo, bloquista e médico, foi um dos mentores da petição pública que trouxe a discussão da despenalização da morte assistida para a ordem do dia. Continua empenhado na causa.

O que o levou a subscrever este movimento cívico? 

É um imperativo de consciência lutar e intervir para alcançar na lei a despenalização da morte assistida, não obrigando ninguém, mas também não impedindo ninguém de o fazer se for essa a escolha livre e consciente da pessoa. Em muitos casos de doenças incuráveis, a morte é precedida de um grande sofrimento e uma acentuada degradação e dependência da pessoa. Há quem não queira que os seus últimos tempos de vida sejam um insuportável sofrimento. Julgo ser um direito fundamental deixar ao critério de cada um como quer viver esses momentos tão difíceis.

Há quem considere que o testamento vital é, já por si, uma autorização para ajudar a morrer. Concorda com isso?

O testamento vital permite que um cidadão, em caso de doença que lhe retire a capacidade de se exprimir, possa fazer valer a sua vontade sobre os tratamentos que aceita ou recusa realizar. Mas exclui a possibilidade de o doente recorrer à morte assistida por esta ainda ser ilegal em Portugal. O testamento é, sim, um travão às más práticas médicas – distanásia – que prolongam artificialmente a vida através da insistência em terapêuticas fúteis, desproporcionadas e inúteis, desde que o doente as tenha recusado (no seu testamento vital). A declaração não ajuda a morrer, pode ajudar a impedir o prolongamento inútil da vida. E há ainda uma diferença fundamental: por definição, o testamento vital aplica-se quando o doente está inconsciente e incapaz de exprimir a sua vontade. A morte assistida, ao contrário, implica que o doente esteja na posse de todas as suas faculdades mentais e consciente.

A Convenção de Genebra (versão atualizada do juramento de Hipócrates) foi alterada recentemente. É uma mudança significativa para esta causa?

Traduz uma mudança muitíssimo significativa na forma como aborda esta problemática: a referência ao “respeito absoluto pela vida humana” é substituída pelo “máximo respeito pela vida humana” e é introduzido o dever de respeitar a autonomia e a dignidade do doente. Os opositores da morte assistida deixam de poder esgrimir e invocar o juramento de Hipócrates como obstáculo inultrapassável à participação dos médicos nos processos de morte assistida.

Deve o Estado ou qualquer outra entidade interferir numa questão tão íntima?

A problemática da morte e, em concreto, a questão da morte assistida levanta problemas filosóficos, éticos, clínicos, jurídicos e políticos. Mas é fundamentalmente uma questão de direitos, é um direito humano, um direito fundamental que deve poder ser exercido sem qualquer tipo de influência ou condicionalismo. Quem decide deve fazê-lo em inteira liberdade e de acordo com a sua consciência. É responsabilidade de todos, em particular do Estado, garantir na lei e na vida real essas condições. Qualquer interferência é excessiva e condenável. 

Neste assunto ainda se sente o papel da Igreja e/ou do Estado no livre-arbítrio?

Aceito como natural que as convicções religiosas de cada um – ou a sua ausência – possam orientar escolhas e decisões pessoais nesta matéria, mesmo sabendo que há, por exemplo, católicos favoráveis à despenalização da morte assistida e ateus que dela discordam. Coisa diferente é concordar que a Igreja como instituição ou a sua hierarquia interfiram no processo de decisão sobre a morte assistida, condicionando a liberdade de escolha dos seus fiéis, transformando uma questão política e de direitos humanos numa querela religiosa. E o mesmo é válido para os organismos e instituições do Estado, que não devem envolver-se de forma alguma na decisão que vier a ser tomada, a começar no Presidente da República, cujas declarações sobre o assunto não têm escondido uma posição contrária à despenalização. 

Há um filme com o título “Este País Não é Para velhos”. Que título lhe ocorre neste caso?

O que me mais me ocorre e me parece mais adequado ao que vivemos neste país em torno desta problemática é mais isto: “Este país não é para todos os direitos…” 

Considerou ou considera a hipótese de tentar recorrer à morte assistida?

Sou um convicto defensor do direito dos doentes à autodeterminação, o que inclui não apenas o direito a recusar tratamentos e exames, mas também o direito a antecipar voluntariamente a morte para acabar com o sofrimento inútil. O que defendo como direito para todos é o que defendo para mim. A minha resposta a essa pergunta é, portanto, afirmativa. Para recorrer à morte assistida, além da aprovação de uma lei que estabeleça a sua despenalização, é ainda necessário que todos os requisitos exigidos por essa lei estejam presentes na situação e nas condições em que o doente se encontra em termos de diagnóstico – doença grave e irreversível –, de prognóstico – doença incurável e fatal –, de quadro clínico – marcado por sofrimento duradouro e insuportável –, e de estado mental – lúcido e plenamente consciente.

Em tese, ajudaria alguém a morrer?

Se estivesse absolutamente certo de ser essa a vontade da pessoa e numa situação em que estivessem presentes os quatro requisitos referidos na resposta anterior, não vejo como poderia recusar. Ajudar a morrer de forma tranquila e sem sofrimento ou degradação, sem ferir a dignidade da pessoa, é uma decisão carregada de solidariedade, fraternidade e humanidade. Não ajudar é que seria desumano.