‘O cão polícia recebe mais do que o agente remunerado’

Natural de Bragança, Paulo Rodrigues, líder sindical, entende que a justiça condena sempre o polícia em caso de dúvida

No espaço de uma semana aconteceram duas situações muito diferentes em relação à polícia. Temos um caso de um agente que é agredido e outro de uma mulher morta pela polícia. O que tem a dizer sobre estas duas situações tão diferentes?

Começando por esta última, aquilo que é conhecido deixa muitas dúvidas em relação à responsabilidade dos agentes. E digo isto porque estamos a falar de um crime [assalto a caixas multibanco] que é praticado com muita frequência e que tem assolado a população. Ainda há bem pouco tempo algumas pessoas diziam “já não vou comprar casa se estiver por cima de multibancos ou de agências bancárias”. Ou seja, estamos a falar de um crime que começa, de alguma forma, a ter impacto no dia-a-dia das pessoas.
É natural que a polícia tenha, relativamente a estes casos, vontade de encontrar soluções, ou seja, reduzir ao máximo possível o crime. Segundo o relato desse crime, há uma perseguição, e entretanto há uma situação de uma tentativa de paragem de uma viatura que não para e, para iniciar a fuga, tenta atropelar um polícia e o polícia reage. Há uma vítima e é de lamentar, mas em termos legais, e segundo este relato que é contado pela própria polícia, enquadra-se a utilização da arma de fogo. Tudo levava a crer que aquela pessoa que não parou e que tentou atropelar o polícia não era propriamente uma pessoa de bem. Se tivesse parado, de certeza que não tinha havido tiros, portanto, o problema tinha-se resolvido.

E a história do polícia agredido?

Aquilo que estamos a sentir nos últimos meses é, de alguma forma, um desrespeito pela autoridade do Estado. Como já foi referido, agredir um polícia não é só agredir aquele cidadão que é polícia, é agredir uma instituição e é agredir a autoridade do Estado. E esta falta de respeito pela autoridade do Estado leva-nos a outras situações, que é justamente o não respeitar a ordem de paragem, e já houve outras situações, por nada. Às vezes, porque a pessoa ia com álcool e desrespeitou, porque tem a plena certeza de que, mesmo que depois seja apanhado, a gravidade de ter fugido à polícia não é relevante, ou seja, a resposta da própria justiça não é relevante, não há uma pena que desmotive uma próxima vez. Isto acontece em todas as situações no plano em que a polícia atua. Nós sentimos isso na atuação diariamente, sentimos isso na falta de autoridade, há uma ideia de desrespeito pela autoridade do Estado. E se compararmos com há uns anos, quando um polícia numa rua era um sinal de segurança, hoje, um polícia sozinho numa rua é um alvo, pura e simplesmente, e tem muita sorte em sair dali – ainda para mais em períodos noturnos e em determinados locais – sem ser agredido, no mínimo. Esta é a realidade com que trabalhamos e, por isso, a própria polícia tem de se preparar para essa realidade, mas é importante que a própria sociedade tenha em atenção todas estas situações que começam a acontecer com regularidade. Uma coisa é os polícias fazerem fogo sobre uma viatura que não para sem saber porquê, outra é haver um conjunto de episódios – e neste caso houve perseguição de uma viatura que se pensava que era aquela mas, se mesmo nessa situação o condutor tem imobilizado a viatura, não se iniciavam os disparos.

Estes polícias, por exemplo, que já percebi que não sabe quem são, quantas vezes por ano têm treino de tiro? Em que circunstâncias são treinados para responder a este tipo de situações?

A formação ideal seria um dia de serviço, um dia de formação, essa é que era a ideal. Mas neste caso em concreto, essa questão da formação não se coloca. Primeiro, porque neste momento os polícias, todos os anos, têm pelo menos uma formação, mas a cada dois anos tem uma certificação de tiro para avaliar se têm capacidade de manuseamento da arma, se têm capacidade em termos de pontaria, e fazem um teste teórico onde saem perguntas sobre a lei de utilização de armas de fogo, sobre uma norma de execução permanente, interna, que é como se deve usar a arma de fogo, em que circunstâncias e de que maneira, e quais são as circunstâncias em que se pode usá-la de forma passiva ou ativa. Se a pessoa não passar é-lhe retirada a arma, é remetido para um treino mais exigente ou mais rigoroso durante um curto espaço de tempo até que fique apto novamente e consiga passar nos testes, para lhe voltar a ser dada a arma. A formação nunca é ideal, podíamos ter mais formação, mas neste caso em concreto não me parece que os polícias – até porque estão em equipas de intervenção rápida – tivessem utilizado a arma de fogo se as circunstâncias não o permitissem…

Mas é uma arma de fogo. Se eu tiver mais treino, em vez de disparar para cima, posso disparar para os pneus…

Sim, mas repare, não acredito que o elemento tivesse disparado para a pessoa que acabou por falecer, não acredito nisso.

Sim, mas é um facto que aconteceu. Acha que o treino é suficiente?

Foram disparados, segundo dizem, 30 ou 40 tiros. Se houvesse um elemento ali que não estivesse à vontade para utilizar a arma de fogo, não a utilizava. Estamos a falar de elementos que não chegaram hoje da escola. São elementos que estão nas equipas de intervenção rápida, que tem elementos entre o corpo de intervenção e a polícia normal, que tem, por norma, já alguma experiência e perfil para o conhecimento tático e técnico, até porque esses elementos têm mais formação – e a formação também é em trabalho de equipa. No fundo, há uma formação um pouco acima do pessoal da esquadra. Quando se quer atingir a parte do motor para imobilizar a viatura, às vezes pode acontecer um acidente. É como um médico: quando está a operar, pode acontecer, a ideia não é cometer um erro. Segundo o relatado pela polícia, o conjunto de episódios justificaram aquela intervenção. De acordo com o que está na lei e no nosso regulamento de utilização de meios coercivos, está perfeitamente enquadrado.

Mas a polícia só tem treinos com arma uma vez por ano?

Sim.

Portanto, só têm treino de tiro uma vez por ano.

Antigamente treinavam uma vez por ano, e claro que é pouco, só que não havia a avaliação se a pessoa estava em condições ou não. A diferença deste momento é que, ao segundo ano, se não passar no teste, é-lhe retirada imediatamente a arma. E isto é um grande prejuízo porque o pessoal deixa de fazer os serviços operacionais enquanto está a fazer formação intensiva, para que possa ser submetido a novos testes. E como ninguém quer chumbar nos testes, há muitos que do seu próprio bolso vão fazer tiro. A polícia criou este modelo para obrigar os agentes a pagarem a formação do seu próprio bolso. Porquê? Porque sabem que, se não passarem no teste, retiram–lhe a arma. Ao retirarem-lhe a arma, o elemento perde todos os suplementos de âmbito operacional – o suplemento de turno, 150 euros, o suplemento de patrulha, que são 60 euros. Mas, além disso, deixa de poder fazer aqueles serviços extra, como gratificados.

Em relação à justiça, qual foi a situação que mais o indignou de um agente ser agredido e o agressor ser libertado?

Olhe, foi este caso que apareceu nas redes sociais, em Santa Catarina, Lisboa. Estamos a falar de um indivíduo que já tinha um histórico de agressões a polícias e não só. Com um histórico daqueles… uma coisa é alguém agredir porque se chateou naquele dia e deu dois pontapés no polícia, até percebo o juiz. Mas estamos a falar de um indivíduo que é recorrente e, mesmo assim, o juiz diz para ele ir para casa. Isto indigna-nos. Claro que o juiz também não pode fazer o que quer, a lei tem limites, mas é verdade que há situações em que o juiz pode decidir e, se calhar, uma decisão de uma prisão preventiva, ainda que seja por pouco tempo, é se calhar uma pena com a gravidade da agressão. No fundo, se formos ver qual foi o prejuízo que ele teve para não continuar a ter aquele comportamento… É isso que nos indigna, haver históricos e termos sempre o mesmo resultado. Por vezes não falamos da gravidade das agressões, mas não podemos esquecer que, em consequência das agressões, a polícia tem cento e tal elementos com deficiências permanentes, além dos agentes que perderam a vida desde 2000.

Quantos agentes foram agredidos este ano, até à data? E no ano passado?

Foram agredidos, em 2016, 491 polícias; em 2017, 385. Neste caso, não são só os números que são preocupantes, mas também o aumento da violência e da gravidade das agressões.

Quantos agentes perderam a vida por causa de agressões nos últimos anos?

Estes casos qualificam-se como mortes em serviço e nenhum polícia foi morto por ter sido agredido. Já as mortes em serviço são seis, desde 2000. As últimas duas em 2015: dois polícias atropelados por um comboio quando perseguiam dois suspeitos.

Quantos agentes ficaram com deficiências nos últimos anos?

De acordo com um levantamento da ASPP/PSP efetuado em 2016, foram contabilizadas 111 pessoas com deficiência ou incapacidade, tendo 14 um índice de incapacidade superior a 60%.

Porque acha que isso acontece?
A polícia perdeu a autoridade?

Acho que há uma desvalorização muito grande do poder político, que é o primeiro responsável a passar uma imagem, e depois também da própria sociedade. No passado, as pessoas tinham medo da polícia; hoje estamos a viver o contrário. Hoje, o polícia não é garantia de segurança, é mais um a ser agredido. Há 20 anos, se havia um assalto, a polícia colocava as viaturas e a primeira coisa que vinha à ideia dos assaltantes era fugir. Hoje, não. Hoje, a maior parte está armada e a primeira reação é confrontar o polícia. Isto tem a ver também com a evolução da própria sociedade. Parece–me que é preciso fazer um trabalho diferente nas próprias escolas. A polícia faz parte da organização do Estado e da sociedade, por isso tem de se perceber, em relação a estes casos, como é que os polícias atuaram e em que situações.

Acha que há um grande aumento de gangues armados em Portugal, nomeadamente estrangeiros?

Segundo a análise estatística feita pelo RASI, já houve mais. Há uns anos havia os gangues de leste, etc., e neste momento, até pela cooperação que existe em Portugal e outros países da Europa, é mais fácil identificar e transmitir informações mutuamente para combater esses perigos. Houve uma diminuição, mas não quer dizer que tenha sido grande. Há uma descida de alguns tipos de crime que, de um momento para o outro, disparam outra vez, porque a criminalidade não está fixa em Portugal. A criminalidade é europeia e temos de fazer a leitura ao nível da Europa. Agora está-
-se até a pensar fazer um RASI a nível europeu, justamente para perceber qual é o tipo de crime e quais são as zonas onde se movimentam com mais facilidade, para tentarmos combater. Os indivíduos estão mais equipados, mais apetrechados, e nós estamos muito aquém disso: essa é a grande dificuldade que nós temos.

Quais são as principais dificuldades da polícia?

A polícia tem dois problemas. Um tem a ver com a motivação das pessoas. Quando um cidadão concorre à polícia, tem a ideia de que o que vê nos filmes é o que vai encontrar. Mas quando começa a fazer o trabalho percebe que, afinal, o equipamento não é como nos filmes, é mesmo chato trabalhar à noite e andar a correr e a fazer relatórios, e em vez de sair às sete da manhã vai ter de fazer relatórios porque houve não sei quantas ocorrências. Mas, mesmo assim, como gosta de ser polícia, pensa que vai fazer o melhor que sabe e o melhor que pode. Por norma, os melhores polícias são aqueles que têm mais problemas. Mas quando se sai do curso, o que se diz a um polícia é que “se fores um excelente polícia, na melhor das hipóteses, daqui a 16 anos sobes um posto”. Isso é aterrador para qualquer elemento que tenha ambição de subir na carreira. É mau. E a instituição devia criar instrumentos para motivar o elemento, mas coloca-lhe é barreiras.

Mas pode concorrer à escola superior…

Estamos a falar de ir para oficial, pois pode, mas existe só a parte de oficial de polícia.

Também há os subchefes…

Repare, ele pode concorrer a subchefe mas, se calhar, pode demorar 12 ou 13 anos. Há elementos que estão à espera uma eternidade que haja concursos.
E não é só isso: desde o momento que tenha processos disciplinares a decorrer, mesmo que até seja arquivado no final, a verdade é que está condicionado, por vezes, ao concorrer.

O que falta à polícia, no dia-a-dia, numa esquadra? Que meios não existem?

Nós entramos numa instituição que, em primeiro lugar, tem logo uma carreira muito complexa, ou seja, dá-nos a possibilidade de estarmos a ganhar 800 euros durante 16 anos. Exige-se tanto, até dar a vida se for preciso, por 800 euros, já com subsídios – acho que é vergonhoso. Claro que depois pode fazer remunerados, mas isso corresponde a dez horas de trabalho por dia, e acredite que isso não é simples de fazer.

Os remunerados são pagos como?

São serviços de quatro horas, pagos por uma entidade. O indivíduo vai, por exemplo, para uma agência bancária, para uma farmácia, e tem de garantir a sua segurança, e está lá durante essas horas, às vezes em condições difíceis. A polícia tem uma tabela de pagamento e é a polícia que nomeia os remunerados.

A polícia fica com algum dinheiro desse trabalho dos remunerados?

Não, do elemento não, só se esse remunerado tiver de levar uma viatura para esse serviço ou um cão, por exemplo.
É até caricato: o cão recebe mais do que o agente em remunerado, porque o cão começa num posto acima do agente.
O polícia começa como agente, o cão começa como agente principal. Costumamos dizer que começamos abaixo de cão… Não é só a questão do dinheiro que tem impacto na motivação, isso tem a ver com todas as condições. É só ver as esquadras. Por exemplo, vamos à Bela Vista, no Porto, e aquilo é vergonhoso. Quando as pessoas são informadas de que vão ter de usar um colete de proteção balística que, à partida, já está fora de validade…. portanto, à partida, tenho dúvidas de que a bala não entre. Não quer dizer que entre, mas tenho dúvidas. Aquilo, para a saúde, deve ser mesmo muito bom – andam de uns para os outros, transpirados…

Defende que deve ser um colete para cada agente?

Por exemplo, os franceses têm um equipamento essencial para o polícia quando sai da escola: arma, algemas e um colete de proteção balística. Eles até dão um interior.

O agente devia andar sempre com o colete?

Não, há missões em que não é necessário. Se estiver na escola segura, não vai andar de colete, mas o agente deve ter um colete que lhe permita decidir quando vai andar com ele. Um dia, nos aeroportos, tente ver de perto o estado em que os coletes estão. Portanto, isto também tem a ver com motivação e as condições de trabalho. Quando o turista olha para o polícia, ele pode ser muito competente, mas depois tem o colete em mau estado; entra numa esquadra para apresentar uma queixa e vê o estado da esquadra, cheia de humidade, em risco de ruir… algumas já ruíram, aliás, chega-se a esse limite. Por sorte, só houve um caso ou outro em que os polícias saíram aleijados. Claro que há uns anos investiu-se e conseguiu-se mudar, mas há muitas esquadras que se mantêm. Quanto ao armamento, nos locais onde está, deteriora-se com muito mais facilidade, mas não há outra forma. Isto acontece não em todas as esquadras, é claro. O pessoal que faz parte das equipas de investigação criminal, por exemplo, tem material muito delicado que, por vezes, tem de andar no carro para não ser colocado em zonas que podem degradar o material.

São os agentes que têm de pagar as algemas…

Sim, a falta de meios e equipamentos é dramática. As viaturas policiais: vemos um ou outro BMW, mas a realidade não é essa, a realidade é termos jipes em Beja com 20 anos, em que custa mais a manutenção do que comprar um novo. No aeroporto, há uns anos, esteve um carro seis meses parado porque o elevador do vidro se tinha partido e não vinha o documento da direção nacional a dizer “arranje-se”, porque é preciso dinheiro, estamos a falar de 150 ou 200 euros que isso valia. Por esse dinheiro esteve um carro parado durante seis meses.

É verdade que chegam a colocar carros parados na rua para dar a ideia de que a polícia está nessas zonas?

Agora já não se faz isso. Deixou de se fazer porque o carro, passado dois dias, estava cheio de pó e começavam lá a escrever coisas indecorosas…

E a falta de material?

É uma coisa recorrente. Não é só as algemas, é tudo aquilo que é essencial ao serviço. Se for falar com o pessoal de investigação criminal, eles dizem-lhe que têm de levar os computadores particulares, os telemóveis particulares… Estive em Beja recentemente e dou-lhe um exemplo. Havia três computadores e dois estavam avariados, o que significa que os agentes têm de estar em fila para fazerem relatórios. Isto é inadmissível. Hoje em dia, para nós, a informática é a ferramenta mais importante. Primeiro, porque temos o sistema de estratégia e informação que é um excelente software – dá para saber que um indivíduo furtou em Bragança se o encontrarmos em Lisboa. Há uns anos não tínhamos isso. Agora, é ótimo ter o software, mas para trabalhar com ele é preciso ter hardware… Mas isto de Beja aplica-se praticamente a todo o país. Tanto que dos 90 milhões que o governo disse que ia aplicar este ano, 40 milhões eram para informática. Até ao momento não foi aplicado nada e agravou-se o problema que existia em 2016. Quem está a fazer uma investigação precisa disso… Estar a investigar e ter de parar para estar à espera que o outro saia do computador – e às vezes há relatórios que demoram duas e três horas a fazer – é complicado…

Também há um problema com o efetivo mais envelhecido, que deve ter alguns problemas técnicos…

Neste momento, já não há tanto isso, porque todo o pessoal que tem entrado desde 1990 tem formação. Os elementos que entraram antes de 1990 é que têm mais dificuldades, mas esses não estão no serviço operacional, e os que estão adaptaram-se muito bem. Ou seja, nós temos aí pessoal com 57 ou 58 anos e estão perfeitamente adaptados à parte informática porque a polícia fez um investimento sério na década de 90 para preparar as pessoas e, hoje em dia, a formação continua. O problema são os operacionais que em alguns sítios, como Castelo Branco, têm uma média de idades já avançada – 50/60 anos. Já pedimos várias vezes ao governo uma reavaliação disto, mas parece que o fator dinheiro é sempre um argumento para tudo e tem servido para adiar. Temos polícias que não têm condições. Há também o choque de gerações – um polícia com 30 anos não quer fazer equipa com um de 57 anos e vice-versa. A motivação é outra, a forma de estar é outra.

Qual é a solução? Não podemos mandar esses polícias para a reforma.

Alguns, com 55 anos deviam poder sair da polícia. A pré-aposentação a partir dos 57 anos era um fator que contribuía para melhorar o serviço.

Sim, mas como pode o Estado aguentar isso? A esperança de vida está perto dos 80 anos; se um polícia se reforma aos 57, é uma quantidade de anos…

Mas é fazer as contas: qual é o interesse de ter um elemento com 57 anos no serviço operacional que está mais tempo de baixa por motivos de saúde, que já não tem capacidade? A despesa que essa baixa traz… é fazer as contas ao final do ano, se é preferível pagar-lhe para ficar em casa a partir daquela idade ou se é melhor tê-lo cá. Porque, no fundo, cá está a fazer duas coisas: primeiro, teoricamente existe, mas na prática não existe. Com o desgaste que essas pessoas já tiveram…
A polícia e a sociedade eram outras quando eles entraram; neste momento, estarem cá, além de ser um prejuízo em termos financeiros para o Estado, acaba por criar grandes dificuldade de gestão ao serviço – nunca se sabe se se pode contar com ele ou não –, e depois, em termos operacionais, não traz nenhuma mais-valia. A polícia já não tem lugares para colocar pessoal administrativo. Onde é que se colocam?

O que faz concretamente no dia-a-dia além de ser o líder sindical?

Faço parte da unidade especial de polícia, estou no Corpo de Intervenção e tenho quatro dias por mês para a atividade sindical.

Aponta sempre três problemas à polícia, que são a história dos subsídios de risco, o patrulhamento e a justiça não vos fazer justiça. Mas acha normal que um polícia que trabalhe em Belém tenha o mesmo subsídio de risco do que um polícia que trabalhe na Amadora ou na Cova da Moura?

O meu primeiro ano de serviço foi na divisão da Amadora, na esquadra da Damaia, conheço bem aqueles bairros à volta. Sei que aquele pessoal muito mais facilmente se confronta com situações de risco de vida do que, se calhar, noutras zonas. Mas os problemas podem acontecer tanto na Amadora como noutro lado qualquer, ou seja, há zonas pacíficas que, de um momento para o outro, deixam de ser pacíficas. Outra questão é que o polícia não é polícia só na Amadora… quantas vezes o polícia e até as equipas de investigação criminal pertencem à Amadora mas estão a ser chamados para irem fazer serviço noutro sítio. E ainda há outras histórias: um elemento de Lisboa foi passar a folga ao Porto e fez a detenção de um indivíduo que estava a furtar num supermercado. Infelizmente, porque teve de ir a tribunal e acabou por ficar sem a folga. E o polícia não passa toda a vida no mesmo sítio, passa por muitos sítios.

Quanto ao patrulhamento, continua a haver agentes sozinhos na rua?

É muito raro, normalmente andam dois.

Mas acha que dois são insuficientes à noite, em determinados locais?

Sim, deviam rever o policiamento. Temos muito policiamento especial, como a escola segura e o policiamento de proximidade. O patrulhamento do Bairro Alto, por exemplo, não deve ser exatamente nos mesmo moldes que o de Bragança, porque é preciso ter em conta o número de pessoas naquele local, o nível de risco associado, e deve ser adequado o policiamento ao local. Se é um policiamento de carro, devem estar três polícias. No patrulhamento apeado, por exemplo em Paris, nunca andam menos de quatro elementos. O próprio indivíduo, ao ver quatro agentes, inibe-se. É isto de que Portugal precisa e tem de evoluir – consoante, claro, as zonas.

E quanto à justiça não vos fazer justiça?

A sensação que temos é que, muitas vezes, os juízes e os tribunais julgam pelo resultado da ação. O polícia fez uma agressão, tem de ser punido. E o que eu acho que falta é ver a situação em si. Quando nós estamos a tomar decisões numa ocorrência, não dá para fazer pausas. Em frações de segundo, o polícia tem de decidir se utiliza a arma ou não, que tipo de estratégia tem de aplicar… o que quer dizer que, muitas vezes, o juiz não tem isto em consideração. Às vezes é preciso montar o puzzle tendo em conta o contexto e até a condição em que o elemento está. Além disso, é natural que a falta de equipamento ou de meios influencie o agente a tomar determinada atitude. Se eu posso ser atropelado, claro que vou usar a arma de fogo, e esta decisão tem de ser tomada em frações de segundo. Se começar a pensar que depois vou ser punido, vou ser atropelado e já não posso decidir nada. No fundo, tem de se perceber porque é que aquele polícia tomou aquela decisão, e depois sim, vamos avaliar se foi razoável ou não. Há uma agressão, o elemento foi para o hospital porque ficou com um hematoma – então vamos punir o polícia porque o agrediu.

Há assim tantos polícias punidos pelos tribunais?

Há situações em que as pessoas apresentam queixa e não sabem qual dos polícias os agrediu, e então todos os envolvidos são constituídos arguidos. Isto está a acontecer.

Mas reconhece que há maus polícias, não?

É evidente que sim. Quando foi a história da noite do Porto, nós demos os primeiros passos – falámos com a IGAI dizendo que tínhamos informações de que havia polícias que estavam a fazer segurança ilegal. Quando nós temos conhecimento disso… polícia é polícia, não pode ser criminoso. Somos os primeiros a dizer quando um polícia anda a fazer coisas que não devia.

Acha que a justiça olha para os polícias como sendo os criminosos e para os criminosos como sendo os inocentes?

Também não me parece que seja assim. Agora, o que me parece é que a justiça, em caso de dúvida, responsabiliza a polícia. Este é o sentimento que nós temos. E vemos isso quando um tribunal constitui arguidos 12, 13, 14 agentes porque há um cidadão que se queixa de ter sido agredido por um elemento e, em vez de tentar perceber qual foi o elemento, o tribunal constitui-os todos arguidos. E isto é tudo logo muito complicado porque, pelo estatuto disciplinar que existe, eu posso ser suspenso logo, sem razão nenhuma. Depois, passados dois anos, afinal sou inocente e entretanto fui suspenso, tiraram-me todos os suplementos e um sexto do vencimento. Está a ver que não é preciso fazer nada, é só preciso estar no local errado à hora errada para poder ser suspenso por uma coisa que não fiz sequer. E os tribunais fazem isto com uma facilidade enorme. Em caso de dúvida, os polícias são sempre os culpados, e não devia ser assim. É culpado quem é culpado e tem de ser responsabilizado por isso. Por exemplo, no caso de Alfragide, há um elemento que nem estava lá – estava de folga – e é constituída arguida. Porquê? Porque se enganaram na lista. Esses erros não são admissíveis. Depois vêm dizer que fazia parte da esquadra… Todos fazem parte da esquadra! Até a senhora da limpeza faz parte da esquadra! Como era uma mulher que foi limpar o sangue que havia, e como a comandante da esquadra era uma mulher também, confundiram-nas e constituíram a comandante arguida, quando ela não andava de vassoura na mão nem estava na esquadra. Quando há erros destes, alguma coisa está mal. [Nota da redação: depois da entrevista, a comandante da esquadra acabaria por ser ilibada.]

Mas há uma coisa que também está mal no lado da polícia, nas acusações que estão a ser feitas… fala-se muito de que há vários elementos de extrema-
-direita na polícia, particularmente nessa esquadra de Alfragide. Tem conhecimento disso?

É verdade que havia polícias, e não é de agora, que eram muito próximos ou até faziam parte do PNR. E sei que houve investigações da própria polícia e de outras entidades nesse sentido, não por serem de extrema-direita, mas por as pessoas poderem traçar um caminho que não se adequa àquilo que é pretendido que se tenha na PSP. É evidente que é difícil perceber se isso é verdade ou mentira, mas na altura falou-se nisso. Falava-se na Polícia Municipal de Lisboa, que é mais administrativa que outra coisa, por exemplo. Mas nunca se provou nada, não tenho ideia de que alguma suspeita levantada tivesse chegado a bom porto. A própria IGAI encontrou tantos lapsos e tantas incongruências no caso de Alfragide que acabou por arquivar o processo.

Então porque acha que agora voltou?

Justamente, não sabemos.

Acredita que houve excessos policiais?

Não sei. É muito difícil avaliar aquele cenário quando a IGAI diz que não se prova nada daquilo, que é uma zona complicada, que a relação entre a polícia e algumas pessoas do bairro não é a melhor. Que foi sempre uma relação difícil, foi. Estive lá um ano em 1999 e o problema já existia. E é verdade que, quando se entra lá, o pessoal não entra como noutro bairro qualquer. Estamos a falar de elementos que já foram assassinados, lembra-se perfeitamente, em 2005. O elemento entrou de jipe para fazer um patrulhamento normal e levou três tiros, morreu, e o outro leva mais um e ainda conseguiu chegar ao Amadora-Sintra e salvou-se. E só ia entrar, não ia perseguir ninguém. E não foi a primeira vez.
É óbvio que estas situações marcam.
Na intervenção, ali, não basta envolver a polícia, é preciso os serviços sociais da câmara, por exemplo. O que faz a polícia? Há um problema, vai lá. Quando vai lá é para resolver um problema. Quando vai, já está preparada para resolver algo que está a correr mal, as pessoas sabem isso e reagem mal.

Está a dizer que é um problema social?

Também.

Mas a polícia tem de estar preparada para essas zonas de maior confrontação. E a propósito disso, é ou não é verdade que para as esquadras mais difíceis vão os agentes mais mal classificados?

Não. Eu sou de Bragança, conhecia Lisboa de passagem, e quando vim para a capital gostava de ação e queria ir para um sítio com elementos também de Bragança. As pessoas, por vezes, gostam de ir para uma zona difícil. E é verdade que nesse ano aprendi mais do que no tempo que estou no Corpo de Intervenção, por isso é que há muita gente que vai para lá. Mas é verdade que há muitos que vão obrigados. Dos 30 elementos da minha escola que foram para lá, 20 foram voluntários. É que o pessoal gosta disto. E essa ideia é errada. Por exemplo, sabe porque se escolhia a Reboleira? Porque tinha camarata. E alguns bem classificados queriam as divisões com camarata, que era mais barata que um quarto, enquanto não arranjavam dinheiro e não conheciam bem a zona. Há um conjunto de fatores que influenciam a escolha.

Quem vem de Bragança não tem uma visita guiada de Lisboa? Os polícias que trabalham à noite, por exemplo: muitos vêm de fora e não conhecem a cidade nem o fenómeno da noite e acham que são todos uns bêbados… Acha que há um problema de não termos as pessoas certas nos sítios certos? Há um desconhecimento?

Antigamente, isso acontecia. Hoje, por exemplo, o pessoal sai da escola e vai para a 4.a divisão, e pelo menos durante um mês anda de esquadra em esquadra, tendo o contacto com as zonas.
E agora outra coisa mudou: quando se chega a uma esquadra, nunca se é enquadrado com um colega que também conhece pouco. Por norma, durante quatro meses, os novos elementos têm um mentor que os encaminha. Quando se vai para a 24 de Julho e há uma festa diferente ou assim, há um briefing na esquadra sobre o que vai haver, já não é totalmente “vai para lá e resolve”.

Há muitos suicídios na polícia

por ano?

Neste ano há registo de dois suicídios, os mesmos de 2016. No entanto, em 2015 verificaram-se sete, o pior ano desde 1998, quando a ASPP/PSP iniciou os registos, só equiparado a 2011. Há um departamento de psicologia de polícia, mas tem de melhorar muito. Costumamos dizer que, por norma, as pessoas não se suicidam por causa de serem polícias, mas serem polícias agrava o problema. E esta é que é a grande questão. Há uns meses, um intendente do Porto suicidou-se e deixou uma carta, e o que ele relata na carta não tem nada que ver com a vida pessoal, são questões de polícia. O anterior suicídio que tivemos deixou uma carta a dizer que não queria polícias no funeral.

Porque acha que isso acontece?

Nós lidamos todos os dias com problemas, o nosso trabalho é resolver problemas. E os recursos humanos e a hierarquia muitas vezes não têm a sensibilidade para perceber que há necessidade de dar apoio. E quando a pessoa coloca a questão porque está mais fragilizada, a reação é de afastamento: “esta pessoa não serve” ou então “deixa, isso é normal”. Além disso, há muitos polícias casados em que os dois são agentes, e os problemas que têm é por causa do trabalho, dos horários, etc. E, por vezes, alguma boa vontade e bom senso de quem gere podia resolver 90% dos problemas.

Há muitos divórcios na PSP?

Lamentavelmente, a PSP apenas divulgou este tipo de dados em 2007, sendo os últimos números disponíveis. Na época, 5,2% do efetivo estava divorciado. Na separação por género, a situação era de 4,6% do efetivo masculino e 13,5% das mulheres – em todos os parâmetros, bem acima da média nacional. É mais fácil na nossa sociedade a mulher aceitar os imprevistos do trabalho do marido polícia, enquanto os maridos têm muita dificuldade em aceitar isso quando as mulheres são polícias.

Há muitos polícias castigados disciplinarmente?

Sim. Também depende muito dos comandantes. Há uns que tentam fazer tudo para que o elemento não seja punido por tudo e por nada, há outros que por qualquer coisa dão punições, como atrasos, por exemplo. As punições condicionam a carreira e a evolução na carreira, e fica um registo para a carreira. De acordo com o Balanço Social da PSP de 2016, o mais recente, o total de horas de trabalho perdidas pelos profissionais da polícia em cumprimento de pena disciplinar foi de 862 horas.

Quantos sindicatos há na polícia?

Julgo que são 15.

Quantos dirigentes sindicais tem a PSP?

Devem ser mais de 100, porque depois cada sindicato coloca os dirigentes que quiser.

Tem ideia de quantas horas por mês é que não há agentes na rua porque estão nos sindicatos?

A ASPP/PSP não tem dirigentes sindicais a tempo inteiro, pelo que os dirigentes nacionais, presidente incluído, usufruem do direito a quatro dias mensais de dispensa para atividade sindical, e 12 horas para os dirigentes locais. A ASPP/PSP já fez saber ao MAI e aos grupos parlamentares que é necessário rever a lei sindical da PSP, adequando o número de dispensas pela representatividade dos 15 sindicatos da PSP. De acordo com a ex-MAI, houve 31 mil horas de polícias ausentes do serviço em trabalho sindical, o que acaba por ser em prejuízo dos próprios profissionais, porque há muitos a fazer turnos que não fariam se o elemento não tivesse metido o crédito sindical. E depois temos elementos a meter o crédito sindical no Natal, no dia de Páscoa, à noite… por isso é que estamos fartos de dizer ao governo que é preciso mudar a lei sindical porque é uma bandalheira total.
A ASPP representa 10 600 polícias, mais de 50% – neste momento somos cerca de 20 800. Por exemplo, eu meto os dias quando não tenho alternativa. Não vou meter um domingo, só se houver uma situação em que tenha de estar e não haja dúvidas. Até porque, e do ponto de vista dos meus colegas, para eu poder credibilizar a atuação, uso os dias para o sindicato. E acredite que gerir um sindicato com esta dimensão é complicado. Gerir a ASPP com quatro dias não é propriamente simples. É complexo, mas aquilo que devemos fazer é credibilizar a atividade sindical, e o que está a acontecer é que há sindicatos que se criam não para fazer trabalho sindical, mas para ter direito a quatro dias por mês. Há tempos foi criado um sindicato que representa 20 pessoas e 19 são dirigentes – isto faz sentido? Mas o problema é porque é que isto acontece. Acontece porque o próprio poder político tem interesse nisto, que é para tirar o peso e a força aos sindicatos.

Esta atividade também é remunerada?

Não, é a título voluntário.

O Corpo de Intervenção não é propriamente uma força sempre em atividade…

Antigamente não, agora é. Não há dia nenhum que não haja ação. Ou fazemos ostensivo – aos aeroportos, por exemplo, que são aqueles polícias que andam de boina, uma HK e um colete de proteção balística.

Não faz isso?

Faço, às vezes pode ver-me em Santa Catarina.

A ASPP sempre foi conotada com o PCP. É militante do PCP?

Não. (risos)

O seu discurso é perfeitamente moderado… como é que a ASPP rompeu com o radicalismo?

Não colocaria as coisas dessa maneira. As pessoas dão mais relevância ao trabalho do Carreira do que ao do Santinhos. Um comissário [Santinhos], na altura, não tinha de se chatear com nada – estava no topo da carreira. E ele constitui um sindicato e começou a criar problemas com toda a gente, e mandaram-no para Bragança, para um gabinete debaixo de uma escadas com quatro metros quadrados, só mesmo para o chatear… Nem todos se disponibilizavam para isso.

Porque acha que a ASPP é mais moderada hoje em dia do que no passado? O PCP não tende a ter interferência direta?

Nunca senti. Tenho relações com todos os partidos. Porque a questão, aqui, não é ideológica. O que importa ao sindicato é tentar resolver um conjunto de problemas e garantir os direitos dos polícias, e que a instituição funcione em prol do melhor serviço à sociedade. Não estou a ver os partidos a influenciarem-nos, é impossível na forma como a ASPP está organizada.

Nas várias intervenções enquanto membro do Corpo de Intervenção já teve de bater em manifestantes?

Tive de usar a força física dentro do estritamente necessário

Mas houve bastonadas?

Sim, já usei. Foi mais em situações de jogos de futebol.

Estou a falar de manifestações.

Não, manifestações não. Até porque enquanto estive em Lisboa raramente se usava o Corpo de Intervenção em manifestações, só recentemente se começou a usar outra vez.

 

Beatriz Dias Coelho e Vítor Rainho