Fintou os caçadores de efemérides ao afirmar sempre que nasceu em 1937, quando, em boa verdade, o mundo o viu nascer a 7 de dezembro do ano anterior. Não foram os únicos a ir nas suas cantigas. No final da década de 60, a própria Censura deixou passar o célebre verso que atentava, não sem provocação, contra a moral vigente: “quem faz um filho, fá-lo por gosto”.
José Carlos Ary dos Santos afirmou com veemência a sua virilidade de poeta. Pela voz de Simone de Oliveira fez, nesse ano de 1969, a apologia do corpo e do prazer femininos (“Desfolhada Portuguesa”), certamente por distracção da Censura, arrebatando o primeiro lugar no Festival RTP da Canção, um dos certames mais badalados da época. Um escândalo numa sociedade toda pudor e rubor nas faces. Quatro festivais depois, arrasava a tourada na voz de Fernando Tordo e, na mesma faena, vencedora, investia sobre a primavera marcelista e apelava à resistência. As suas origens aristocrático-burguesas também não foram poupadas, como testemunha o conhecido poema “O Burguês”, figura tratada a ferros sarcásticos: “A gravata de fibra como corda/ Amarrada à camisa mal suada/ Um estômago senil que só engorda/ Arrotando riqueza acumulada […] É uma besta humana que rumina/ É um filho da puta, é um burguês”. A salvo ficou “A Bandeira Comunista” (1977), corajosa e muito pessoalmente hasteada: “o meu comunismo – dizia – vem-me por via Czarista!”. O espólio daquele que foi um activo militante político, que não se cansou de cantar a revolução de Abril, encontra-se na posse do Partido Comunista.
Ary dos Santos: o nome – do poeta e declamador carismático, conhecido do grande público como autor das letras de algumas das mais populares canções das décadas de ’60, ’70 e começos de ’80 – não faz jus a uma personalidade explosiva, irreverente, de humor sulfúrico e de grande turbulência imaginativa, capaz mesmo de fazer detonar “O Bombista”.
Quando, com apenas 16 anos, sai de casa em ruptura com o pai, traçara já, num soneto de um livro dedicado à mãe (“pela infinita dor de a ter perdido” pouco tempo antes), um programa de vida: “E canto na certeza do porvir,/ Que todo o mundo é meu e eu vou partir/ À conquista dos reinos da poesia!”. Mal sonhava o jovem Zé Carlos que a poesia tinha reinos, uns mais nobres que outros. Natália Correia, que manterá com ele uma relação de amor-ódio, não se cansará de lho lembrar.
Insuficientemente amadurecido, naturalmente, esse primeiro livro que quis apagado da sua bibliografia, “Asas” (1952), antecedendo bastante o volume “Liturgia do Sangue” (1963), considerada sua efectiva estreia literária, incubava já o seu tom excessivo e rasgado, o seu estilo transgressor, a rasar o libertário. Compreensivelmente, quando em 1966 Natália Correia preparar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, celebrizada pelo veredicto do Tribunal Plenário, Ary dos Santos não poderá ser dispensado.
À saída de casa seguiram-se anos financeiramente difíceis, de embates quotidianos, e sucederam-se empregos: vendedor de máquinas de pastilhas elásticas, paquete na Sociedade Nacional de Fósforos, escriturário no Casino Estoril e estivador (a crer no seu testemunho, nem sempre fiel). “Isto vai meus amigos isto vai/ um passo atrás são sempre dois em frente” – dirá mais tarde no poema “O Futuro”, incluído em “Tríptico do Trabalho”. Expulso do Colégio Infante Sagres, chegou a frequentar as faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa, mas a verdade é que “com toicinho e talento ambas partes” (palavras do seu “Auto-Retrato”) e uma criatividade extraordinária, Ary dos Santos depressa as trocou pelo mundo da publicidade, área que em Portugal revoluciona, alcançando reconhecido êxito.
A criação poética, com comprazimento no ludismo verbal e disponibilidade metafórica, decorre paralela a uma vida profissional com cobranças difíceis e artes de espantar. “Adereços Endereços” (1965), “Fotos-Grafias” (1970), “As Portas Que Abril Abriu” (1975), “O Sangue das Palavras” (1978), “20 anos de Poesia” (1983) são algumas das obras daquele que reuniu num único terceto as três linhas que, reconhecidamente, perfazem o todo que é a sua poesia: a linha interventora, a satírica e a lírica: “Poeta de combate disparate/ palavrão de machão no escaparate/ porém morrendo aos poucos de ternura”. Tinha em preparação um livro de poemas intitulado “As Palavras das Cantigas” (publicado postumamente, em 1989, pelas Edições Avante!), onde reuniu o que considerava serem os melhores poemas dos últimos quinze anos, e um outro intitulado “Estrada da Luz – Rua da Saudade”, onde viveu praticamente toda a sua atribulada vida, no n.º 23. Pretendia que este último fosse uma autobiografia romanceada, mas não houve tempo. O excesso, a solidão e o gim foram a mistura explosiva.
“Quando eu morrer – afirmou um dia – vai ser em glória. Vai a classe operária toda ao meu funeral, e eu sentado no muro do cemitério, a vê-los passar!”. O desígnio cumpriu-se quase inteiramente a 18 de Janeiro de 1984. Luiz Pacheco, que nesse dia assistiu ao enterro, com uma multidão a gritar “Ary, amigo, o partido está contigo”, não escondeu o seu desejo: “Isto é que me convém, porra! Pagam-me o funeral, pagam-me o caixão e levo a bandeira que me aconchega. É que eu sou um gajo friorento!”.