Bashar al-Assad venceu a guerra. O ditador sírio não controla por completo o país, que é ainda um manto de retalhos pronto a romper-se de um dia para o outro. Assad, porém, sobreviveu a sete anos de conflito fratricida lançado a começo contra ele próprio, um conflito que causou mais de 500 mil mortos e obrigou mais de metade da população a fugir de suas casas e cinco milhões de pessoas a abandonar o país. O mesmo homem que há cinco anos assistia a um presidente americano dizer-lhe que cruzara a linha vermelha e que por isso podia esperar uma intervenção mundial vê hoje o seu destino decidido por mãos amigas. As exigências dos Estados Unidos, entretanto, praticamente desapareceram. As disposições europeias tornaram-se irrelevantes e as Nações Unidas, que nunca chegaram a influenciar determinantemente o fim da guerra, realizam por estes dias conferências de paz cada vez mais irrelevantes e nas quais Damasco se comporta como bem entende, confiante de que o que verdadeiramente importa é o eixo russo, iraniano e turco, e que esse se reúne em Astana e Sochi, não em Genebra.
Veja-se o exemplo das negociações que terminaram na última semana na Suíça. O ciclo diplomático de quase duas semanas começou com um estrondo: a nova liderança do Alto Comité das Negociações, a plataforma da oposição no exílio apoiada pelo mundo árabe mas com pouca influência no terreno, disse pela primeira vez que partia para as discussões sem pré-condições, disposta a debater “tudo o que for lançado para a mesa”. Esta abertura constitui uma mudança sísmica no que diz respeito à oposição síria, cuja exigência crucial ao longo das negociações foi sempre a de que Assad tem de partir e nem sequer fazer parte de um eventual governo de transição. Trata-se também de um sinal de que o mundo árabe, como foram fazendo os líderes ocidentais, já desistiu do fim a curto prazo do ditador sírio, o que seria impensável há dois anos, por exemplo. Apesar de tudo isto, a última ronda de negociações em Genebra concluiu como as outras: num fracasso. Na quinta-feira, o enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura, admitiu aos jornalistas que, como vem acontecendo, as delegações da oposição e regime não se reuniram uma única vez. “Perdeu-se uma oportunidade de ouro”, disse.
De Mistura exagera. Há muito que não há oportunidades de ouro para os rebeldes sírios e muito menos para a oposição no exílio. Os primeiros radicalizaram-se ao ponto de o Exército Livre da Síria, por exemplo, ter sido substituído na sua importância por grupos armados islamistas, o maior de todos ligado à Al-Qaeda. Os segundos, cada vez mais distantes de uma revolta que se desfigurava, foram perdendo o contacto com os grupos no terreno e a autoridade para discutir a sua causa. O grande golpe que levou os rebeldes à irrelevância aconteceu há dois anos, na data em que a aviação e forças especiais russas entraram no conflito e mudaram o rumo de uma guerra estagnada. Moscovo venceu o conflito por Damasco e isso tornou-se claro nos últimos dias de 2016, quando Alepo, a joia da coroa da revolução, regressou às mãos de Assad. O resto da guerra fluiu sem grandes estragos para o regime: o grupo Estado Islâmico perdeu força e hoje desapareceu já quase do mapa; os curdos sírios e pequenos grupos armados árabes, patrocinados pelos Estados Unidos e que ficaram com os territórios dos jihadistas, não insistem na partida de Assad; e os rebeldes encontram-se por estes dias cercados na zona rural de Idlib, preservando apenas alguns bairros nos arredores de Damasco e algumas propriedades no sul do país.
Não se sabe ao certo o que sairá deste estado de coisas. O que se sabe é que o poder está nas mãos daquele que é talvez o maior vencedor da guerra civil síria. Se Assad vence sobrevivendo, Vladimir Putin triunfa afirmando-se como uma potência no Médio Oriente e, hoje, como o grande proprietário do processo político. “Há um rumo claro e os russos são os que o estão a supervisionar”; contava na semana passada um responsável do governo sírio, falando à Reuters. Esse rumo é o que vem sendo discutido em Sochi e Astana, sob os auspícios não da ONU, mas do governo russo, que se senta à mesa com o regime, o governo iraniano e o governo turco – o único insatisfeito pelo triunfo de Assad, mas resignado e interessado em manter a amizade russa e influência sobre o futuro dos curdos a sul da sua fronteira. Em princípio, as negociações do eixo devem concluir com algo de semelhante ao mapa desenhado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas: um governo de transição seguido de uma nova Constituição e eleições para breve, possivelmente já no próximo ano. A grande diferença é que o que sair das negociações em Astana e Sochi será quase certamente do interesse russo, iraniano e do regime. Os cinco milhões de refugiados podem ver-se excluídos do sufrágio, por exemplo, e os crimes de guerra cometidos por Damasco, como os ataques químicos contra Ghuta, por exemplo, podem nunca ser julgados. As eleições, por sua vez, podem dar-se daqui a um ano como daqui a três, dependendo das sensibilidades de Assad, Putin, Rouhani e Erdogan. A transição, pelo menos uma sua forma genuína, pode nunca acontecer.
A resolução política, no entanto, não está garantida. E a paz também não. É difícil ver Moscovo conciliar os desejos dos próprios países que integram o seu eixo e ainda mais complicado imaginar um entendimento politico estável entre rebeldes, curdos e regime. Assad, até ao momento, não se mostrou disposto a fazer concessões aos grupos armados de Idlib. O Irão, por sua vez, acredita que fez muito mais para resolver a guerra em nome do regime do que os russos, e não abdica por isso dos seus desejos de influência. Os curdos, por sua vez, embora pareçam por agora dispostos a entregar pelo menos as cidades que capturaram ao Estado Islâmico no noroeste do país, dificilmente conseguirão a autonomia que desejam no norte, um desfecho muito indesejado na Turquia e Irão – países com grandes e insatisfeitas populações curdas. Israel, para além disso, pode despertar um novo conflito por oposição à grande rede de influência que Teerão vai estendendo sobre o Iraque e Síria, onde se movimentam com liberdade os Guardas da Revolução e o seu satélite libanês, o Hezbollah. O Estado Islâmico está hoje remetido aos subterrâneos ou a pequenas tiras de deserto no centro do país, mas o grupo, como os movimentos irmãos no seio dos rebeldes, pode estar apenas à espera de uma nova explosão de guerra para regressar. E a instabilidade síria parece quase garanti-la, como explica à “Foreign Policy” Amr al-Azm, professor de História na Shawnee State University, no Ohio, e membro da oposição síria: “Embora pareça improvável que o Estado Islâmico volte a ter capacidades operacionais no desfecho imediato da sua última campanha síria, os desafios correntes da repartição do país e dinâmicas regionais garantem que as feridas sectárias gangrenosas continuarão a alimentar o extremismo, eventualmente abrindo portas a que uma versão reincarnada do Estado Islâmico regresse à Síria e ao Iraque.”