A estação festiva. Ironia e Natal por encomenda

Dos cancioneiros medievais aos grandes escritores do século XIX, passando por Camões e Bocage, o Natal é tema maior na literatura portuguesa. E avançou modernidade dentro, expandindo-se ora em poemas já desprendidos do sentido do sagrado, ora nos vários géneros da ficção narrativa, com destaque para o conto. Mas entretanto, o repique festivo de um…

Há quem se torça diante da possibilidade de, neste Natal, ver cair no sapatinho mais um par de peúgas, pretas, com losangos de cima a baixo ou, nos casos mais graves, brancas como a neve que, segundo Fernando Pessoa, faz mal (“Chove no Natal presente./ Antes isso que nevar”). É bem conhecido esse poema de Pessoa, cujo final, de um humor a fugir para o negro, mal disfarça o desconforto perante a temática natalícia e o natal da convenção. Do mesmo passo, esse poema gélido levanta questões de alto coturno metaliterário, que só por malvadez aqui traríamos. Afinal, o Natal aproxima-se a passadas largas: “Quando o corpo me arrefece/ Tenho o frio e Natal não.// Deixo sentir a quem quadra/ E o Natal a quem o fez,/ Pois se escrevo ainda outra quadra/ Fico gelado dos pés.” É um momento da poesia portuguesa de assinalável solidão desolada e cujo amargor poderá talvez recuar um tanto à vista do “pai natal de chicolate” de Fernando Assis Pacheco.

Mas há também quem se impaciente ao pressentir que a máquina dos poemas natalícios, com um potente motor de arranque e combustível de mistura suspeita, se prepara para laborar sem interrupções, oferecendo-nos esse produto de fabricação em série, liso, insensato, tantas vezes mal sazonado, ou que – acontece – só por uma coincidência de calendário se diria de Natal. De um modo geral, é um produto que não aquece nem arrefece, dando-nos, na melhor das hipóteses, o simples conforto das coisas conhecidas. Carlos Drummond de Andrade reagiu com impaciência às fornadas líricas da quadra: “Menino, peço-te a graça / de não fazer mais poema/ de Natal/ Um dois ou três, inda passa …/ Industrializar o tema,/ eis o mal”. 

Desimportantizar, sim; banalizar nunca foi verbo para Alexandre O’Neill. Leiam-se os natalícios, quanto insólitos, “Exercícios de auto-apoucamento”, um conto sardonicamente corrosivo que comparece em “Uma Coisa em Forma de Assim” (1980). Quem os pratica é o bom do Valério, Lèrinho de sua Quinhas, todo enfiado por uma perna de calça, “sustentando-se em pé, sem, aparentemente, homem lá dentro”. O propósito de Lèrinho é preparar uma surpresa daquelas ao filho, o Necas, auto-apoucando-se na “amurada do sapato” de Natal. A coisa termina muito afastada da comunhão festiva e familiar, com a criança transformada num “órfão vivo”, atónito e horrorizado, a soluçar no regaço da mãe: “Sa… Sa… Saiu-me o… o… o pai no sa… sa… sapato!”. E a mãe a prometer-lhe que “o pai voltaria a crescer, a crescer”. Enfim, um divertimento bizarro capaz de fazer sorrir “o cachopinho/ tam fermoso e sesudinho/ filho de Nossa Senhora” (Gil Vicente). 

Bem menos desamparado ficou o Menino do bem-humorado conto “D. Quixote contra Herodes”, do agnóstico Aquilino Ribeiro, cujo interesse pelas tradições natalícias se revela nos ensaios de “O Livro do Menino-Deus”. A paródia cervantina não se fica pela livre evocação ou pela alusão simbólica do Quixote, que aqui aceita não acometer os gigantes (em boa verdade, cabeçudos de um festa natalícia que não se quer estragada) para ficar de guarda ao presépio e acautelar assim a fúria de Herodes. Toda uma série de quixotecas aventuras, confusões imaginosas, interpretações equivocadas da realidade num jogo entre a verdade, a ficção e os seus incertos limites. O que mais visivelmente emerge é a importância de saber construir a justa crença nas ficções literárias, tal este menino Jesus, não já objeto de adoração mas peça de ficção, expectante passivo de uma suposta salvação vinda de fora. 

Agustina Bessa-Luís, numa audaciosa crónica de dezembro de 1978 que percorre com desembaraçado humor as figuras da praxe – anjos trombeteiros, pastores com capotes de burel e meninos pobres do tempo da Revolução Industrial inglesa -, confessou reagir com maus modos às solicitações editoriais do Natal e toda essa boa vontade de encomenda: “Outra vez, uma história de Natal! Que chatice!”. Enfado, eis o que leitor não experimentará diante de “O conto de Natal” de Tomaz de Figueiredo (1902-1970), incluído num livro cujo impiedoso título não acerta com o espírito da quadra que atravessamos, “Tiros de Espingarda” (1966). 

Trata-se de uma irónica passeata pelos processos da escrita de histórias de Natal por encomendas de revista, um alvo apetecível a um contista tão exemplar quanto esquecido, inadaptado ao mundo burguês dos magazines e ao universo suficiente dos bacharéis, doutores, literatos e escritores verdadeiramente inspirados, como o que abre este texto. Inspirado e crédulo, capaz de se fiar nos bons entendedores. Depois de uma aplicada manhã, “saíra-lhe o conto original, invulgarmente novo: autêntico achado. Nisso de contos, e então de contos de Natal, como nas mulheres e na lotaria, havia horas felizes”. A sua prosa natalícia, pastosa e mais açucarada do que um conventual papo-de-anjo – “a melhor do país, segundo a crítica séria” -, causa sensação e um riso impossível de conter: “Farto de ser plagiado, farto! E se havia género difícil, era o dos contos de Natal, até pelo que pareciam fáceis.” De mistura, o autor do Minho, que acolheu de bom grado o epíteto de “fera do Soajo”, dispara neste conto algumas piadas sibilinas que atingem a literatura dita de preocupação social, esse campo onde todos se destroem em boa paz, indiferentes aos desfavorecidos, sempre invisíveis ao olhar dos “empeliçados senhores com cerdas no coração”.

Entretanto, se tiver curiosidade sobre “A razão de o Pai Natal ter barbas brancas”, leia o conto homónimo de Jorge de Sena, incluído em “Andanças do Demónio”, um verdadeiro conto de natal para os mais pequenos, um divertimento de marca surrealizante para crianças grandes. Se der de caras com o homem do fato vermelho, não estranhe. É Natal.