Quem percorra boa parte dos balanços literários que por estes dias se multiplicam, pode ser levado a pensar várias coisas: a) que um balanço literário é uma celebração anual dominada por uma fúria elogiosa; b) um catálogo de interessantíssimos produtos, apresentado a um leitor pouco esclarecido ou havido por tolo; c) uma farsa de estafada representação e desfecho já padronizado, em que à literatura não coube verdadeiro papel: o mais largo consumo afiança a maior qualidade; d) uma possibilidade de leitura do desempenho comercial dos grandes grupos editoriais, a quem cabe hoje, juntamente com os media, ditar as críticas leis viciosas, determinar o que vinga e o que morre. Não tem o leitor de se decidir por nenhuma das alíneas, mesmo porque todas elas refletem a portuguesa realidade, apta a galgar valores que não se transformem em moeda de troca.
Aqueles de quem o espírito natalício não se ausentou ainda dirão que os balanços literários fazem lembrar um presépio, a começar pelo colorido e pela candura do ambiente, mas também pelas cintilâncias, as palhinhas fofas onde a facilidade e o simplismo vêm aninhar-se, enfim temas para embaraçar várias cabeças. Depois, há as figuras habituais, dispostas em boa ordem, com a sagrada família editorial a preponderar, camelos que se creem magos e que querem ser reis, seduzidos que estão por direções que levam aos lugares sabidos. E há até as ovelhinhas – todas brancas: a incómoda ovelha negra é hoje, no nosso reino literário, uma espécie em vias de preocupante extinção. Mas um presépio – espécie de miniaturização do literário mundo português, já de si pequeno (e apoucado) – onde a boa-nova, não é boa nem sequer nova: a falha de um mundo novo restituído pelo poder das palavras que estremecem. Como se, por acidente ou desvario, os meninos se multiplicassem e o ser capaz de fazer a efetiva diferença não comparecesse. No centro, a ancestral manjedoura, porque, já se sabe, “ou há moralidade ou comem todos”. Ausência notada é a do burro …
O desejo de autopromoção e a lógica burguesa do proveito têm vindo a silenciar o que há uns anos se defendia de peito aberto. Sobre a vida dos livros, cada vez mais cingida (e conformada) às lógicas do entretenimento e às dinâmicas do mercado livreiro, sobre a facilidade triunfante, sobre o lixo editorial varrido para debaixo do tapete nada dizem os balanços. Nem sobre as linhas que, de um modo geral, a crítica dita literária, hoje um exercício de banalidade desacreditado, atira às colunas miúdas em que se transformaram as páginas culturais. Tão-pouco sobre a “literocambada”, escorada em reputações duvidosas e outras figuras que de sumidade terão apenas a vontade de o ser. Mas há mais: a dinâmica de certos prémios, alguns até prontamente recusados, como se fossem coisas de infamar cadernetas literárias, sobre o tempo findo das polémicas, substituído por corajosos monólogos, sementes atiradas às areias do deserto, nem uma sílaba de protesto. Apetece citar um conhecido verso de Antero de Quental: “Silencio e escuridão – e nada mais”. Tudo vai bem. Tudo decorre na pura normalidade.
Diante de um tal quadro, e no que toca à chamada ficção narrativa, não surpreende que o retrovisor, descontada alguma ficção estrangeira e uns poucos casos nacionais, nos mostre uma paisagem empobrecida. O destaque vai para o universo dos clássicos, alargadamente entendido, e para as (re)edições que deles se fizeram, de “As Mil e Uma Noites – 1.º vol.”, com cuidadíssima tradução de Hugo Maia (E-Primatur), às “Obras Completas de Luís Vaz de Camões – Vol. I: Épica & Cartas”, com organização de Maria Vitalina Leal de Matos, com o mesmo selo editorial. De assinalar ainda a edição das "Obras Completas de Mário-Henrique Leiria, Vol. 1: Ficção”, organizada por Tania Martuscelli. Disperso, indisponível, esquecido, encaixotado no depósito da Biblioteca Nacional, o autor está a renascer por partes, à boa maneira surrealista. 2017 trouxe-nos o primeiro de três volumes que hão de reunir a obra completa do genial iconoclasta. Ao elenco já conhecido dessa “comédia humana de gosto bem português” juntam-se agora revolucionários de café (e cápsulas de humor concentrado), leitores de suplementos de letras e artes (Que diabo!, “ou somos intelectuais ou não somos”), novos ministros e presidentes com o mesmo grau de desvario, generais com mais medalhas, juízes sem ponta de siso, o próprio J. Cristo, acusado de exercício ilegal da medicina, depois de ter acorrido a um lázaro de nova espécie, simples tipos com sorte: “Não era progressivo. Foi uma sorte. Chegou a Primeiro Secretário dum Partido”. Vilhena e o seu “Manual de Etiqueta” (E-Primatur) é já um indispensável clássico da literatura humorística, a valer ouro neste país de céu cinzento e riso amarelo.
A publicação, entre nós pela primeira vez, da estreia de Mário de Andrade como romancista é um acontecimento editorial a registar. “Amar, Verbo Intransitivo” traz a chancela da Maldoror, que carimba também o excelente “Cuidado Com os Rapazes”, uma coletânea de contos de Alface.
Do que por cá se produziu, entre os já habituais volumosos romances históricos e romances anódinos, boa parte nem ao Menino Jesus despertaria interesse. Pelo contrário, há romances que nos prendem desde a primeira página. É o caso de “A Casa das Tias”, o romance de estreia de Cristina Almeida Serôdio, escrito ao longo de cinco pacientes anos, ao arrepio da lógica comercial e das cartilhas inócuas que servem de guia a boa parte da ficção narrativa que por cá se publica. É inimigo figadal da ligeireza e do português empobrecido. O resultado é um exercício narrativo de extrema sensibilidade e delicadeza. Simples. Ou, antes, nada tão pouco simples como a simplicidade conseguida por um aturado trabalho de despojamento e da arte de ocultar os meios e os instrumentos de que a autora se serve, oferecendo-nos o espanto de como, como aparentemente tão pouco, se levanta um mundo de sentidos densos.
Mas 2017 foi também o ano que veio amplificar o aplauso crítico a Ana Margarida de Carvalho, a quem foi entregue, pela segunda vez, o Grande Prémio de Romance e Novela da APE pelo romance “Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato”. Aparecido já o ano declinava, “Pequenos Delírios Domésticos”, o seu muito aguardado livro de contos, dececiona. A grande virtude da romancista – a capacidade de explodir contra a ideia da domesticação – é talvez também a sua maior limitação ao transitar para as formas breves. A este livro falta contenção e unidade temática. É verdade que, como a própria já fez notar, em todos eles há uma casa “ou a memória de uma casa, ou o desejo de uma casa, ou a saudade dela”. O problema é a habitação em si, excessivamente mobilada, ataviada de peças dispensáveis, algumas de puro efeito, que se não atravancam não encaixam num género em que a seta se quer apontada ao coração da história. Dir-se-ia que a escritora se deixou cair na rede das solicitações editoriais.
No campo do ensaio e outros géneros que vieram a este mundo bater a má porta, como o diário ou a crónica, o destaque vai para “Camões e Outros Contemporâneos (Presença), de Helder Macedo, que segue aqui a mais alta linha de cumes da nossa literatura, de D. Dinis a Herberto Helder, mas igualmente para “Dia Alegre, Dia Pensante, Dias fatais” (Relógio D’Água), de Maria Filomena Molder, publicado com 2017 já a esgotar-se, e “Caminhos e Destinos – a Memória dos Outros II” (D. Quixote), do diplomata Marcello Duarte Mathias, uma compilação de textos sobre temas diversos, publicados ocasionalmente em revistas e jornais, a revelarem o prazer da leitura e da partilha numa escrita bem respirada.
Por fim, uma nota: nem todo o pivot de telejornal cede à facilidade e aos esquemas comerciais. A prová-lo “O Pianista de Hotel”, de Rodrigo Guedes de Carvalho (Dom Quixote), nos antípodas da ligeireza.