Os preços disparavam, o mercado negro também. Entre as dificuldades de abastecimento que marcaram os primeiros anos da democracia, a escassez do bacalhau era particularmente sentida. Havia uma razão de fundo, explicada por um secretário de Estado numa reportagem da RTP que procurava responder às perguntas de ‘donas de casa’ em fúria com o aumento dos preços da comida: «Não se pode recorrer com a intensidade que seria desejável às importações».
O bacalhau, que vinha da Noruega ou da Islândia, passou num instante de comida de pobres, como era no início do século XX, a quase comida de ricos quando o século entrou nos anos 70. Não havia. Era importado em pequenas doses, insuficientes para o amor incondicional dos portugueses por bacalhau seco.
A 2 de maio de 1976, entrevistado pela RTP a propósito do novo sistema de distribuição, o secretário de Estado do Comércio Alimentar, Alberto Ferreira, dizia que a situação obrigaria os portugueses a reduzir o consumo de bacalhau seco, uma tradição nacional que se perdia nos tempos. «A médio e longo prazo temos de nos convencer que o bacalhau é um produto que tende a existir cada vez menos no mundo. Pelo menos o bacalhau seco tal como nós o comemos. Temos que nos preparar, nós os consumidores todos, para ir gradualmente substituindo o bacalhau por outros produtos, como o bacalhau congelado, que é consumido noutros países como os Estados Unidos e o Canadá», dizia o governante.
A questão para a falta de bacalhau era sempre a mesma: «A importação tem limites», justificava o secretário de Estado do Comércio Alimentar que, mesmo assim, apontava que no ano de 1976 conseguiria superar-se as 64 mil toneladas de bacalhau importadas em 1975. Mas ao dizer que a importação tinha limites, o governante torneava habilmente a razão verdadeira desses limites: Portugal não tinha divisas para comprar ao exterior.
«A importação tem limites, primeiro porque o bacalhau não abunda no mundo, e também tem limites porque se aparecermos no mercado a dizer que estamos aflitos para comprar bacalhau, o preço sobe. E temos de considerar esse aspeto», disse o homem responsável pelo comércio alimentar.
Em 1978, a 23 de novembro, o Governo já garantia aos portugueses um quilo e pouco por cabeça. O bacalhau não faltaria nesse Natal.
É com entusiasmo genuíno que o jornalista da RTP Pedro Oliveira (o único sex-symbol televisivo desses tempos, que António Pedro Vasconcelos aproveitará depois para o cinema como protagonista do filme O Lugar do Morto) faz a reportagem da distribuição do bacalhau importado da Noruega e Islândia. «Cada português tem em média um quilo e 200 gramas do fiel amigo para cozinhar de 1001 maneiras. Efetivamente começa agora a distribuição de 135 mil fardos de bacalhau, mais de 8 mil toneladas e um milhão de contos, a cargo da Comissão Reguladora do Comércio», diz Pedro Oliveira.
A produção nacional «muito reduzida» iria «mesmo assim lançar mais 60 mil fardos no mercado». Continua a reportagem da RTP: «Mais de 40 mil armazenistas e retalhistas acorrem às praças da Comissão Reguladora de Lisboa, Porto e Aveiro levando uma quantidade de bacalhau calculada em função do seu movimento comercial.
O consumidor poderá encontrar o [bacalhau] especial a 200 escudos por quilo, preço tabelado, o [bacalhau] corrente a 150 escudos e o sortido pequeno a 100. Isto se forem respeitadas as margens legais de comercialização e a fiscalização não permitir que se vendam postas por debaixo do balcão».
É verdade que a venda da posta por baixo do balcão estava há algum tempo instituída e ter um merceeiro amigo valia ouro por esses dias de escassez de bacalhau. Mas para a consoada do Natal de 1978 o bacalhau parecia garantido a todos os portugueses.
E o muito jovem Pedro Oliveira concluía a reportagem: «Esta distribuição de Natal é a última das quatro efetuadas em 1978. Portugal consome atualmente cerca de 20 mil toneladas de bacalhau por ano, o que corresponde a três milhões de contos. Não será o suficiente, mas esperemos que a consoada de bacalhau faça esquecer a austeridade pelo menos por uma noite».
Nesse ano de 1978 Portugal tinha conhecido três governos: o segundo de Mário Soares, com o apoio do CDS, que tomou posse em janeiro e durou sete meses. Seguiram-se os governos de iniciativa presidencial. Primeiro, o de Nobre da Costa, que só durou três meses. No Natal o primeiro-ministro era Carlos Alberto da Mota Pinto.