Médio Oriente: Irão mudar?

Mashhad não é um lugar qualquer. A cidade que viu nascer o Aiatola Khamenei e que o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad rotulou como «a capital espiritual do Irão», é sítio de peregrinação obrigatório para os xiitas. 

Mashhad também foi a cidade onde eclodiram os primeiros protestos de 28 de dezembro, com centenas de iranianos nas ruas a contestar a inércia do governo em lidar com a longa crise económica, com o desemprego e com a corrupção endémica. Mas quando em Mashhad, como em dezenas de outras cidades dominadas por ortodoxos, os protestos se transformam em ataques aos Basij – um dos braços da temível Guarda Revolucionária – e gritos de morte contra o presidente Rouhani e contra o líder supremo do Irão – heresias para as quais a lei dos aiatolas tem certamente mão pesada – percebemos que algo está a mudar na República Islâmica. 

Mesmo que a rua tenha vindo a perder gás nos últimos dias, porque o regime é bom a reprimir e porque Teerão (a maior cidade do país) e as classes mais importantes (intelectuais e média burguesia) se colocaram à margem dos protestos, há poderosas válvulas de mudança que podem provocar ruturas na ordem interna iraniana.
A crise atual deve, por isso, ser lida em três níveis. 

Primeiro nível: a sociedade. Cerca de 50% da população tem menos 30 anos mas o desemprego jovem (não oficial) chega aos 40%. Muito dependente da internet e politicamente mais exigente, a opinião pública iraniana tem vindo a repudiar os privilégios das elites religiosas em tempos escassez. Quando as aspirações de todos são notoriamente sacrificadas no altar dos privilégios de alguns, isso cria um enorme problema de legitimidade à liderança.

Segundo nível: a política. Desde a morte do aiatola Khomeini em 1989 que há uma batalha entre as forças reformistas e os ortodoxos. Essa luta pelos destinos da República está no auge com a sucessão de Khamenei cada vez mais próxima. A escolha do próximo aiatola, em função dos problemas de saúde de Khamenei, há muito que deixou de ser tabu. Os reformistas olham para a transição como a oportunidade de mudar o curso da história. Em sentido contrário, a linha dura procurará criar uma fortaleza teocrática.    

Terceiro nível: a estratégia. Khamenei foi célere em denunciar interferência externa nos acontecimentos dos últimos dias. Há muito tempo que há uma guerra encoberta que opõe o Irão às forças ocidentais, israelitas e sunitas que têm como objetivo travar o projeto de domínio regional de Teerão. Recordemos o assassinato de cientistas ligados ao programa nuclear, o ciberataque com o vírus stuxnet aos sistemas iranianos ou o bombardeamento de instalações nucleares. Operações a que o Irão tem respondido com equipamento de ‘proxies’ no Iémen, no Líbano, na Síria e no Iraque. A retórica incendiária e o choque total entre xiitas e sunitas deixa antever um aumento das operações clandestinas. 

A guerra fria que opõe as coligações lideradas pelo Irão e Arábia Saudita, na ambição de constituir poderosos arcos de influência geopolítica, está a ter pesadíssimos custos económicos internos. A desestabilização social interna é uma externalidade do expansionismo regional e uma ameaça real á sobrevivência dos dois regimes. Há já sinais evidentes de que tanto o poder da teocracia xiita como o do wahabismo saudita estão a ser contestados. Até que ponto é que isso é suficiente para provocar alterações radicais na natureza dos regimes? Não sabemos. Há ‘estados dentro do estado’, normalmente fieis à liderança religiosa, que puxam todos os cordelinhos. Certeza há uma: o Islão como projeto político está em dificuldades.