Há quem diga que este pode ser um dos momentos mais complexos da relação entre Portugal e Angola desde o acordo de paz angolano de 2002. Há também quem faça notar que as relações diplomáticas e de negócios entre os dois países permanecem normais e que nestes anos todos de independência de Angola, tendo em conta a relação íntima entre os dois Estados, sempre houve altos e baixos.
Se a situação poderá aprofundar-se ao ponto de trazer entraves às trocas bilaterais, manda a prudência que ninguém avente possibilidades. Pelo menos até ao encontro do primeiro-ministro António Costa com o Presidente João Lourenço, na próxima semana em Davos, na Suíça, durante o Fórum Económico Mundial (FEM).
Ainda não há data, nem hora definidas. António Costa chegará à Suíça na terça-feira à noite, daí que o encontro à margem do programa do FEM terá, necessariamente, de acontecer na quarta ou na quinta-feira. Até lá, o silêncio e os caldos de galinha imperam.
Angola pretende manter a questão dentro dos limites jurídicos e retirá-lo da esfera política. Sim, é certo que se trata de um ex-vice-Presidente de Angola, mas, se existe crime, os tribunais angolanos podem julgar o processo. O Jornal de Angola publicou esta semana, dividido por vários dias, uma extensa apreciação do caso pelo advogado Sérgio Raimundo, onde este diz que o julgamento de Manuel Vicente «se transformou hoje numa vexata quaestio [questão controversa] nas relações entre Angola e Portugal muito por culpa de um grupo minoritário (de pessoas) de cá e de lá, mas influente na formação da opinião pública, que procura pôr em causa o interesse maior e sublime dos dois povos irmãos».
Uma ideia também referida ao SOL pela politóloga Elisabete Azevedo-Harman, especialista em questões da África de expressão portuguesa e atualmente professora na Universidade Católica de Moçambique. «Existe tensão e discussão nas redes sociais e nos média sobre o caso Manuel Vicente», e mesmo sendo certo que o Presidente angolano «respondeu a uma pergunta sobre o caso, denunciando descontentamento», como aliás, o ministro das Relações Exteriores já tinha feito, «não sei se essas declarações são para Portugal ou se não são mais para público angolano».
Pode ser que a questão esteja a ser alimentada longe dos circuitos diplomáticos e as palavras de João Lourenço visem ser demonstração de firmeza do novo chefe de Estado, que chegou ao poder há pouco mais de três meses e sucede a um homem que esteve 38 anos no poder e a quem, na sua última encarnação mediática, os órgãos de imprensa estatal chamavam sempre arquiteto da paz.
O certo é que José Eduardo dos Santos nunca se pronunciou publicamente sobre o caso judicial que envolvia o seu ex-vice-Presidente (que a certa altura foi apontado como seu sucessor e a quem os problemas judiciais poderão ter cortado as asas para mais altos voos). Foi João Lourenço quem agora trouxe para a dimensão pública o mal-estar sentido pelo Governo e instituições angolanas por causa deste caso.
Na sua entrevista coletiva dos 100 dias no poder, no passado dia 8, o chefe de Estado falou da «ofensa» sentida por a Justiça portuguesa argumentar que não confiava na Justiça angolana para negar o envio do processo para Angola e sublinhou que o que estava em causa não era uma tentativa de ilibar Manuel Vicente.
«Nós não estamos a querer dizer que o senhor engenheiro Manuel Vicente deve ser absolvido ou que o processo seja arquivado, porque não somos juízes nem temos competência para determinar se é ou não responsável pelos crimes de que está acusado, o que dizemos é que seja qual for o desfecho, este deve ocorrer nos tribunais angolanos», sublinhou Lourenço.
Para Elisabete Azevedo-Harman, a posição do chefe de Estado angolano limita-se «a corresponder ao que tem sido a voz de vários juristas angolanos», a de que, mais do que o caso de uma pessoa, em causa aqui está a questão da soberania e a defesa das instituições angolanas. E, tendo em conta que «a imagem da Justiça portuguesa é péssima», refere a politóloga, não admira que o assunto acabe por ser fogo no capim das discussões em Angola.
O certo é que mesmo não afetando de forma direta aquilo que são as relações normais entre os dois países, colocam em banho-maria ou fazem desaparecer da mesa aquilo que poderiam ser as hipóteses de cooperação estratégica e alianças privilegiadas (ainda para mais nesta nova era pós-JES). Tudo porque a desconfiança judicial ensombra todas as outras áreas de atuação.
«Apelidar de ‘mau’ este momento é exagerado. Ambos os países têm relações diplomáticas e representações; os negócios continuam normais. Continuamos a ter milhares de portugueses em Angola e não me parece que sob qualquer ‘situação má’», diz ao SOL Elisabete Azevedo-Harman. Mas mesmo não sendo mau, o momento traz dissabores ou, como disse António Costa, «as relações entre Portugal e Angola vão decorrer com toda a normalidade possível, num contexto em que há um problema irritante».