Isabel do Carmo foi militante do Partido Comunista Português. Fundou com Carlos Antunes, em 1970, as Brigadas Revolucionárias, uma das primeiras organizações políticas em Portugal a defender as ações armadas contra a ditadura fascista. Médica prestigiada e ativista, escreveu recentemente um livro que faz uma espécie de balanço histórico e político da violência e das suas ideias políticas: “Luta Armada – Brigadas Revolucionárias, a ARA e a LUAR contadas pelos seus dirigentes e os dias de fúria da Europa Rebelde”.
Alguma vez colocou a hipótese de matar alguém?
Não, para mim, isso sempre foi muito claro, nem sequer tenho hesitações. Acho que deve haver uma linha vermelha que nos diz: não podemos matar ninguém, mesmo que seja o nosso maior inimigo. Eu nunca pus essa hipótese na minha vida.
Mas andou armada.
Andei armada antes e depois do 25 de Abril.
Para quê, então?
[Risos] A sua objeção é lógica. Andei armada para me defender, embora a pessoa, para se defender, pode matar outra. Mas eu nunca pus essa hipótese. É uma contradição.
Uma contradição pessoal e teórica: fundou um movimento que defendia a luta armada, o que pressupunha que, numa determinada escala de desenvolvimento, pudesse haver confrontos armados e uma escalada guerrilheira, em que uma pessoa pode ter de matar.
Não penso que, em Portugal, a luta armada pudesse tornar-se uma guerra; não tinha a dimensão nem nunca teve massa suficiente para se tornar guerra. Fazíamos ações armadas, é certo, mas nelas pode-se atirar para não matar.
Parece-me muito pouco controlável entrar em confronto com armas e ter a garantia de que não se vai matar ninguém. Isso parece-me apenas possível se as armas não levarem balas. Lembro-me sempre de uma história da ETA, que afirmou sempre que tinha avisado previamente a polícia que tinha colocado uma bomba num supermercado em Barcelona, que matou mais de 20 pessoas – uma desresponsabilização política que levou um seu antigo quadro, condenado à morte no processo de Burgos, a dizer: “Quem quer que as bombas não matem não as coloca.”
A verdade é que se pode ter os cuidados suficientes para o aviso ser eficaz. A verdade é que houve muitas bombas colocadas pelas Brigadas [Revolucionárias], muitas bombas colocadas pela ARA [Ação Revolucionária Armada], e foram colocadas para não fazer mortos.
Embora tenha havido mortos por acidente – uma pessoa que passava na rua às tantas da manhã morreu em consequência da bomba posta pela ARA na escola da PIDE.
É verdade. E no nosso caso [das Brigadas Revolucionárias] morreram dois militantes.
Mas também houve casos de execuções de bufos.
Nós não tivemos problemas nenhuns com execuções de bufos. Esse bufo foi morto pelas pessoas que derivaram depois para as FP-25, e nós não tivemos nenhuma decisão sobre isso.
Penso que, na altura, tanto a Isabel do Carmo como o Carlos Antunes estavam presos, e quando foram interrogados, em separado, a esse respeito, responderam que era uma ação que apenas convinha à polícia.
E foi. Criou um ambiente muito desfavorável no nosso julgamento. Nós não só não tivemos nada que ver com a morte do bufo como só soubemos depois que aquilo tinha sucedido. E só nos prejudicou. Significou uma deriva, porque a morte do bufo é uma execução…
É matar alguém.
É uma execução, não é um confronto com a polícia, como sucedeu em Espanha com Puig Antich [militante anarquista catalão], que matou um polícia num confronto e posteriormente foi executado [um dos últimos garroteados em Espanha]. Não é isso, é decidir calmamente numa reuniãozinha que se vai executar uma pessoa e decidir como se vai fazer isso, quem é que vai disparar o tiro, etc.
Seria sempre contra isso? A FAP (dissidência maoista do PCP) executou um informador. Durante a sua longa história, diz-se que o PCP terá executado um dirigente acusado de colaborar com a PIDE, Manuel Domingues, e terá feito um atentado falhado contra outro, Augusto Lindolfo. Acha que isso é defensável ou indefensável?
É sempre indefensável. Não é porque eu tenha respeito pela vida de um bufo, mas é uma vida humana. E numa visão mais tática, digamos assim, eu sei que não há limites para esses atos.
Mas quando se passa a andar armado e a fazer ações armadas não há um limite que já está ultrapassado, que se calhar não se pode controlar? É como inventar mísseis nucleares?
Sim, a imagem é correta. Inventar mísseis nucleares será aquilo de que homens como o Einstein se podem arrepender, porque também não tem limite.
Do vosso ponto de vista era sempre possível impedir uma deriva ética que vos levasse a matar alguém.
Isso é um ponto que nos leva longe. Foi na base do matar o bufo, matar o inimigo, que nos países onde se estabeleceu o poder dito socialista houve uma espiral em que se mataram todos aqueles de quem se discordava.
Não está aí apenas metade da história? É que nesses países, pelo menos no caso da União Soviética, houve uma guerra civil, e, mesmo antes dela, as repressões dos governos czaristas mataram muitas dezenas de milhares de pessoas; a i Guerra Mundial, milhões; e a contrarrevolução branca, centenas de milhares de pessoas. Era possível uma revolução sem violência?
É preciso distinguir os tempos de guerra de outras situações. O que foi chocante e que deu cabo das esperanças do projeto socialista, nesses países, foram outras situações, como a liquidação de muitos dirigentes e militantes revolucionários que tinham feito a revolução, quando numa das reuniões da Internacional [durante a i Guerra Mundial], o Lenine, Trotsky e a Rosa Luxemburgo, que ainda era viva, aprovaram uma moção contra a pena de morte.
Aliás, há uma frase muito reveladora do Estaline, na biografia feita pelo Isaac Deutscher, em que Estaline diz, a certa altura: “Kamenev e Zinoviev pediram-me a cabeça de Trotsky, eu respondi-lhes: se começamos a cortar cabeças, nunca mais acabamos.”
Pois é, e foram parar, de facto, muito longe.
Quando é presa, já tem filhos?
Quando fui presa antes do 25 de Abril, tinha a minha filha. Aliás, dá-se a coincidência de ter sido presa antes do 25 de Abril, com a minha filha com oito meses ao colo; e depois do 25 de Abril, com o meu filho Sérgio, que tinha também oito meses quando isso aconteceu, e também estava comigo. Não foi fácil.
E como foi da primeira e da segunda vez?
Na primeira vez, barafustei muito. Nessas alturas barafusto sempre, mas não aos gritos.
Vem o Barreiro ao de cima…
(Risos) A parte do Barreiro tem os dois lados: a parte dos gritos e daquilo que é secreto e silencioso. Da primeira vez, entreguei a filha ao pai e fui. Da segunda vez, o meu filho Sérgio foi comigo para a cadeia. Estive no isolamento muitos meses só com ele, e depois também ficou quando continuei presa.
Isso marcou-o?
Ele, aparentemente, gostou. Esteve sozinho comigo no isolamento quando, normalmente, os filhos são deixados nas creches muito cedo. E depois, quando saímos do isolamento, era mimado por toda a gente. Para ele, do ponto de vista psicológico, é um bocado complicado dizer que foi benéfico, mas teve aspetos positivos.
No tempo da PIDE havia pressão e tortura. Na segunda vez foi diferente?
Na primeira vez havia uma questão que era aquilo que no nosso imaginário poderia acontecer, mesmo que não acontecesse. Tive muitas horas de interrogatório, mas não tive tortura de sono e também não houve nada sob o ponto de vista físico. Na segunda vez, também foram muitas horas de interrogatório. Pedi uma manta para colocar o meu filho no chão e estive também muitas horas a ser interrogada. Foi bastante duro. Depois estive no isolamento. Para mim, o que faz completamente a diferença é estar no isolamento com acesso a livros ou sem nada. Sobre outra coisa relacionada com o papel do imaginário naquilo que nos está a acontecer, há um outro episódio depois do 25 de Abril que recordo. A forma como me prenderam foi tão brutal – enfiaram–me, com o meu filho, dentro de uma carrinha, à bruta, a vasculharem tudo, com os apitos das sereias à frente e atrás – que eu pensei que tinha havido uma contrarrevolução e um golpe de direita, e aí pensei: “Lá vou eu.” Depois havia coisas iguais. Os períodos de isolamento tinham o mesmo tempo de recreio, e os guardas eram os mesmos, a verdade é que as estruturas intermédias da repressão não mudaram com a democracia. Eram os mesmos, com as mesmas observações…
(Risos) Do tipo: já sabiam que eles iam voltar.
Sim, sim, exatamente o mesmo tipo de insultos e comentários, “os comunistas são uns ordinários, têm várias mulheres, são casados com uma e depois andam com outras”, e coisas desse teor para pior.
Há pessoas com quem, mesmo depois do 25 de Abril, cortou absolutamente, por diferenças ideológicas e políticas anteriores e posteriores. Estou a dizer isso porque alguém comentou comigo que Manuel Alegre acha que vocês o quereriam matar em Argel.
Nunca quisemos matar o Manuel Alegre. As questões da Argélia [onde estavam exilados inúmeros oposicionistas portugueses de várias tendências] são sempre muito complexas. Era um ambiente de grande tensão: havia organizações diversas e conflitos de caráter interpessoal. Eram pessoas que estavam confinadas a um espaço limitado e a um dinheiro limitado. É difícil falar das nossas relações com o Manuel Alegre sem contextualizar isso. É evidente que, a certa altura, há divergências de facto que vêm a refletir-se depois do 25 de Abril: o Manuel Alegre vem a integrar o PS, é chamado histórico; e nós estamos numa organização de esquerda revolucionária. Há diferenças aí. Depois, nas questões das relações interpessoais, houve factos com gravidade. Agora, nós jamais quisemos matar o Manuel Alegre.
Falam agora normalmente?
Não. É das poucas pessoas com quem eu tenho relações cortadas. Aliás, ele, depois do 25 de Novembro, também teve um papel censório ao fechar “O Século”, mas nem gosto de estar com grandes antagonismos pessoais.
Chegou a votar nele nas presidenciais quando o Bloco de Esquerda o apoiou?
Não. Acho que votei no Soares nas eleições anteriores. Foi um ato de coragem ele ter-se candidatado. Mas é preciso ver que eu nunca fui do PS nem soarista. Nas eleições seguintes, não me recordo. Dou pouco valor às eleições e normalmente voto em branco.
Também nunca terá votado no PCP?
Julgo que nunca votei. Não sei se terei votado em algumas eleições autárquicas quando vivia em Camarate, mas julgo que nunca votei. Esta minha falta de memória mostra bem a pouca importância que tenho dado às eleições. A maior parte das vezes votei branco.
É engraçado que a Isabel do Carmo e o Carlos Antunes, principais dirigentes do PRP-BR, viveram juntos, têm filhos, mas, sendo completamente diferentes, mantém uma grande amizade. Do que conheço dos dois, acho que se pode resumir a uma anedota: quando a Isabel vê uma bosta de cavalo, diz: “olha, uma bosta”. O Carlos Antunes diria: “Onde está o cavalo?” Ele é o eterno otimista.
Ou então ele diria: “Esta bosta de cavalo é boa porque pode servir para estrume e vamos plantar naquele campo uma árvore e essa árvore vai dar frutos.” Está sempre nessa deriva, e esse otimismo nem sempre é fácil. Temos diferenças de personalidade grandes, mas partilhamos muitas coisas. É uma pessoa com uma argúcia de análise política muito grande, com um gosto estético que coincide com o meu, em artes plásticas, espetáculos e livros. Há coincidências na forma de ver as coisas e depois há um passado e há memória.
No início do livro “A Luta Armada” pega no livro do Dostoievski sobre uma geração de militantes que usaram o terror e as armas, “Os Demónios” ou “Os Possessos”, segundo a tradução. Isto pode ser visto como um exercício de exorcismo?
Não é um processo de exorcismo porque eu nunca estive encaixada no chamado Catecismo de Netchaev [anarquista e autor do chamado “Catecismo Revolucionário”, que defendia qualquer forma de violência, terror e de ação para fazer a revolução] e nunca pratiquei o terrorismo como forma de luta.
Netchaev não era propriamente a pessoa mentalmente mais equilibrada do mundo.
Era terrível, mas a verdade é que houve muita gente que embarcou naquilo, inclusive o Bakunine [pensador e dirigente anarquista que participou com Marx na Primeira Internacional]. E é interessante que o Marx e o Engels rejeitaram imediatamente aquilo, esse terror pelo terror.
O fenómeno vai bastante para além de Netchaev. Naquela época do séc. xix e início do xx há uma série de atentados que vitimam reis, generais e ditadores um pouco por toda a Europa. O historiador Mike Davis relata-o até no seu “Buda’s Wagon”, o primeiro veículo-bomba, em Wall Street, que mata em 1920 mais de 40 pessoas.
Uma vaga de terror com objetos específicos, na maior parte dos casos. Não é uma vaga de terror indiscriminado. Penso que é uma diferença, embora eu esteja completamente contra este tipo de ações. É diferente um ato de violência contra reis e generais de uma bomba contra a população em geral.
Voltando ao papel do terror e dos atos específicos: há um célebre filme, “A Batalha de Argel”, em que se vê um grupo de mulheres argelinas fazer explodir um bar com jovens franceses. Quando é preso, um dirigente da resistência argelina é levado a uma conferência de imprensa e é-lhe perguntado: “Não tem vergonha de levar as vossas mulheres a transportarem bombas nos cestos delas?” O dirigente da FLN responde: “Os vossos aviões bombardeiam as nossas aldeias, matando milhares de pessoas. Se quiserem trocá-los pelos nossos cestos, trocamos já.” O terror não faz parte da guerra?
Indo ao seu artigo dos “Os Não Europeus não pensam”, é incrível a hipocrisia com que se encara as mortes provocadas pelos drones. Eu coloco isso no livro, quando cito um escritor que se interroga: “Um drone que mata um casamento inteiro, essas vidas não têm importância?” É incrível a hipocrisia que existe também na comunicação social. A perceção das nossas populações é, em grande parte, formada por essa perceção e essa comunicação que dá com estrondo e relevância os atentados que se passam na Europa e nos EUA, e que têm vítimas destes países, ao mesmo tempo que remete para o pé de página o que se passa com os drones e os bombardeamentos feitos pelas grandes potências. Mas nós, em Portugal, não fizemos nenhuma guerra de terror. Nem a ARA, nem as Brigadas, nem a LUAR usaram o terror como arma. E isso foi uma escolha. Aliás, tenho essa discussão com o meu filho Sérgio. Ele discute comigo como é que eu sou contra a pena de morte pelo Estado e contra a pena de morte por grupos que decidem matar pessoas, por razões ultrajustas que sejam; o que faria em relação ao julgamento em Nuremberga dos criminosos nazis. E eu não sei responder.
E num conflito entre o exército e uma guerrilha, não é normal que haja mortos?
Isso é diferente. É guerra. É horrível, mas é frente contra frente. Acho normal, mas não acho bom. Como em Espanha também é preciso analisar bem, grupo a grupo, aquilo que vai acontecer. Em alguns casos há uma espiral em que há mortos de rua provocados em confrontos que levam a confrontos com a polícia e depois há retaliações violentas que levam a mais mortos.
No seu livro não analisa quase o caso da ETA e do IRA, porquê?
Porque são diferentes. São nacionalistas, com lógicas nacionalistas, e cada um mereceria um livro próprio. Não há, em minha opinião, um hiato entre o nacionalismo do séc. xix e a ETA. Ela é, de facto, contaminada pelo clima da guerra da libertação da Argélia e depois pelos anos 60, mas não há uma rutura total com o nacionalismo. É contaminada ideologicamente, é sempre nacionalista, enquanto os outros movimentos se viam como internacionalistas. A ETA é difícil de estudar até porque as traduções das designações e os conceitos em castelhano são mais fáceis, mas nem sempre coincidem com os seus conteúdos em basco. E a ETA vai-se organizando e dividindo por várias assembleias e documentos estratégicos, até sobrar apenas a ETA militar.
O livro aborda a violência como uma espécie de herança animalesca.
É interrogação que eu me coloco. Gosto muito de estudar coisas de paleoarqueologia. É muito cedo que se vê na evolução do ser humano sinais de violência interpessoal. E é antes do processo que é descrito pelo Engels, n’“A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, em que a existência de uma violência coletiva e da formação de um aparelho de repressão é associada à criação de um excedente de produção e de uma divisão de classes. Há sinais de violência entre indivíduos antes do aparecimento do Homo sapiens, antes do nosso aparecimento. Provavelmente, os hominídeos confrontavam-se em determinadas circunstâncias. Agora, a violência organizada, eu continuo a pensar que está ligada ao aparecimento da propriedade. Há uma investigadora francesa que estuda essas épocas e que diz que o aparecimento da violência organizada está ligada ao aparecimento da propriedade privada. Outra coisa interessante é que a violência é sobretudo masculina.
Não há amazonas?
É capaz de ter havido, mas provas provadas… Há algumas interpretações que diziam que as amazonas eram mulheres que perdiam a menstruação por via do exercício e da falta de alimentos.
Não considera que em nenhuma circunstância possa haver a necessidade de uma violência divina, como defendia Walter Benjamin, uma espécie de momento que não é feito para destruir, mas que permite a criação de uma rutura que torna irreversível o aparecimento de novas condições? Onde a violência, embora não seja um fim em si mesmo, é necessária?
Eu ponho interrogações mais se a violência é própria do ser humano e que no futuro possa ser possível uma humanidade sem violência. Do ponto de vista político, os processos de violência contra a dominação colonial e contra as ditaduras têm razões tão óbvias que quase não é preciso demonstrar. Os meus três entrevistados [Camilo Mortágua, Raimundo Narciso e Carlos Antunes] diziam o mesmo: o regime era tão violento na manutenção de uma determinada ordem que não havia outra forma de combater o regime que não fosse pela força e usando a violência. E a verdade é que o regime português caiu pela força.