Dez anos depois, quem (ainda) tem medo do Luiz Pacheco?

Em Janeiro de 2008 desaparecia o escritor que, a contragosto, e a suas expensas, foi declarado maldito, sendo-lhe movido um ardiloso processo para fazer dele um ser excremencial, um emplastro dado a todo o tipo de sacanices. 10 anos depois, o louvor e simplificação tem mostrado igual engenho em fazer do diabo um mero palhacito…

Um dos alcances possíveis entre os mil de uma efeméride é ser o honrado a desmontar da estátua equestre para passar no meio de nós, pôr aquele frio nas hostes, cheirar-nos, ver se os rapazes formam como dantes, se está firme a continência que batem diante de um oficial superior. Ver ainda quem, segundo a sua consciência, milita e quem apenas se militarizou. Num tempo em que amiúde damos por nós a invejar aqueles que já enterrámos, o título aí em cima por um triz não foi juntar-se ao coro no que mais zumbem hoje as moscas: “Não é Pacheco quem quer.” É certo, não basta querer. Mas mais curioso talvez seja perguntar, agora que passam 10 anos do desaparecimento do mais fulgurante e sulfuroso dos escribas – esse que tirava um evidente gozo de estalar o chicote sobre o lombo das tigrezas de papel no “circo merdonho” das nossas letras –, quem ainda molha a cama imaginando que ao fantasma possam estar a crescer as unhas no espírito daqueles que já só se cruzaram com ele à saída.

Isto vem a propósito desta glória póstuma que, entre nós, se serve cada vez mais fria, como se ao resgatá-lo da peste e aos efeitos coléricos que provocou, se quisesse desfigurar o exemplo do “demoníaco palhaço”. Assim, o mesmo gesto com que lhe são prestadas honras, logo faz por ungi-lo de água benta. Fica a impressão de que o génio se pode descolar do implacável retrato da sociedade portuguesa e, particularmente, da espectacular desenvoltura com que  procedeu à “desmitologização da Cultura como salão mortuário da vida”. E é importante notar como estes que hoje, com tantas luvas, o recuperam, fazem-no ao arrepio de tudo quanto “o bicho de calças curtas” traçou como um programa de modo a atacar o problema onde dói, furar os embustes, “fazer o que geralmente não vejo que se faça, isto é aclarar publicamente tramas que se ocultam, apontar flibusteiros das Letras, pondo-lhes a careca à mostra embarrilando-os pela gargalhada; sempre que preciso, denunciar os compromissos de vária ordem em que se atolam os nossos pseudointelectuaizinhos que por aí andam a governar-se à larga, seguros na sua impudência e da sua impunidade mercê das circunstâncias”.

Um texto fulcral como “Crítica de identificação”, originalmente publicado no “Notícia”, de Luanda, a 17 de Outubro de 1971, ou seja, há 46 anos, não envelheceu um dia, dir-se-ia até que está mais enérgico e desafiante hoje, e é por isto precisamente e por, de lá para cá, não ter feito outra escola senão a dos invulneráveis admiradores – “um público apagado e quase tão clandestino como eu” –, que o fantasma se passeia como um princípe andrajoso entre “a pia hipocrisia das gentes de bem, a bem da Nação”. Mas aqui, e se tão recentemente tivemos um virador profissional de frangos literários a lembrar que não é Pacheco quem quer, note-se que, no estado em que as coisas estão, querer já basta para se ir fazendo alguma diferença. E desde logo para se ser mais consequente diante dos santinhos e diabos que cada um expõe no seu altar.

Porque se do Pacheco hoje se fala como de batatinhas, dessas que vão bem com tudo, seja aos palitos, às rodelas, ou assadas e a murro, o que é evidente é o quanto a nenhum destes empregados de balcão da loja de conveniência das letras lhes convém que entre por ali outro “pintocalçudo, saco de plástico nas unhas (cartola de prestidigitador: sai escalope, cuecas, manuscritos, Lenine ou Peter Cheney), botando parlapié a quem nunca viu mais pintado, travestindo-se em mata-moscas: salte mosca ao caminho, zás, berlaitada” – isto no retrato que saiu da pena do amigo e, em alturas, mesmo um ‘pai’ para Pacheco, Vitor Silva Tavares.

Pois é, se aos que hoje, face ao desbaste com que estas lides se aproveitaram da crise para provocar o acidente atómico ao qual só as baratas sobrevivessem, e as moscas triunfassem, está bom de ver que não lhes convém nada que se perfilem sequer candidatos para o vazio que ficou depois de Luiz Pacheco. Vão continuar a cantar com o Carreira que depois dele mais nada, porque assim procuram garantir-se contra o ânimo que nos invectiva hoje – não a mim, nem a ti nem ao outro, mas a todos, e na medida da sua convicção – a reactivar o quanto antes aquela que é verdadeiramente a grande tradição da literatura portuguesa, a sua “função positiva”, a crítica. E o argumento dissuasor que usam de que não é um qualquer que chega a tanto é outra imbecilidade, porque a verdade é que não é preciso chegar a tanto, ir tão longe nos “exercícios de estilo”, mas, em nome dessa “moral-outra”, pagar o preço, ter a coragem de assestar uns nas nulidades ululantes que nos cercam.

E não há mal que o façamos todos às avessas, caindo das cavalitas uns dos outros, trepando pelas paredes, que se erga um basqueiro medieval neste que é, por excelência, o recreio das almas. (Senão aqui, onde?) E desmoralizar este erro enorme, o ambiente de sacristia que procura hierarquizar-nos, fazer-nos chafurdar num muro de processos burrocráticos, este regime do um por todos e todos por um que, à boca pequena, já todos zurzimos aliviando a má-consciência geral e própria. É preciso fazê-lo mas publicamente, e reconhecer no exemplo do Pacheco aquilo que, como notou Vitor Silva Tavares, poucos lhe reconhecerão: “o obsessivo civismo intelectual”.

 Porque sai caro mandar às urtigas as conveniências, perder para outros todos os subsídios de inserção social, ver-se maldito por uns seres malescreventes, lacaios dos valores em alta do momento, bater-se segundo o princípio do “um só e contra todos”, não virando as costas, e mesmo assim tendo-as cicatrizadas de alto a baixo. O medo que lhes mete – e por uma vez não nos peçam nomes porque a verdade é que seria mais justo e fácil nomear as excepções – que alguém não veja no Pacheco precisamente um exemplo de todas as razões por que devemos observar as maiores cautelas face a esta gente que de nada precisa tanto como de um inimigo para finalmente nutrirem alguma paixão (negativa, pois claro) em comum.

Assim, “o zero a comportamento” que lhe foi dado é o que faz ainda de Pacheco, dez anos depois da sua morte, e muitos mais desde que se iniciou o processo da sua normalização, tomando por colheita vintage os “biliosos ajustes-de-contas  e quase obscenos confessionalismos”, procurando fingir que são águas passadas esses cálices de maldoso vinho com que revirou o aguado sangue deste incestuoso meio literário, procedendo a um alegre e eficacíssimo massacre do esquema das tias e primos, passando a certidão de óbito a cadáveres vivos, e assim surge hoje, sem surpresa, à cabeça de qualquer lista que tome a literatura como mais do que um curso de etiqueta e conformismo, e muito à frente de quantos levavam para casa a caderneta escolar cheia de vintes.

No país que, mais do que nunca, se honra por ser o dos bons alunos da Europa, por cima até do currículo (ou cadastro) como editor, à frente da Contraponto – selo que, como toda a gente sabe, “extraiu da sombra António Maria Lisboa, Manuel de Lima, Cesariny, Herberto Helder, Natália Correia, Raul Leal e tantos mais argonautas” –, e que particularmente o orgulhava, surge o Pacheco vulcânico, o “agitador frenético, provocador terrorista”, o da artigalhada, das “pedradas volantes”, o que entendeu a urgência de, primeiro que tudo, nos desenvencilharmos “todos da bisonhice congénita (ou adquirida à força?, por prudência?) tão portuguesa”. E se toda a gente diz que sabe, e repete até, que a Liberdade custa, que é uma luta de todos os dias, sempre difícil, como se explica que só se facilite?

E não é isto o que nos obriga a arregaçar as mangas, atacar esta lepra, e, sujando-se, ser acusado de carregar os piores sintomas? Mas obrigando-nos, ainda assim, a impor cada texto como uma prova, uma audácia e uma violência aos bons modos, como quem atira sobre a mesa os pregos que irão selar a procissão de caixões abertos e seus esqueletos chocalhantes contra os quais se abate a carne, o sangue e a vida de mais outra geração.

 


"Puta Que os Pariu! – A Biografia de Luiz Pacheco"

de João Pedro George  

616 páginas, 24,90€

edição: Tinta da China, Novembro de 2011

Uma empreitada desumana, esta biografia trata Pacheco como a um Churchill na sua minúcia. Insuperável no empenho e ultra-documentada (ao ponto de, aqui e ali, se tornar um pouco maçuda), não só fidelíssima, é um exemplo sem par neste género que em Portugal continua confrangedoramente sub-representado. 

 

"Luiz Pacheco: Essencial"

de António Cândido Franco

200 páginas, 13€

edição: Maldoror, Outubro de 2017

Uma obra que cumpre com aquilo a que se propõe: oferecer o contexto e alguma perspectiva para a “travessia dos acidentes alucinantes” da vida de Pacheco. Escrita com alguma emoção, é uma leitura prazerosa, numa prosa escorreita que soube escapar à tentação de emular o estilo vitriólico do retratado. Aí está uma vantagem, mas está aí também a pecha de um livro que, do ponto de vista crítico, podia ter arriscado mais.