Diziam que já estava louco. Que o seu discurso era aleatório e brincava com as pessoas que recebia em casa. Diziam que já não recebia pessoas em casa. Que se isolara na sua residência em Las Cruces, a mais de cem quilómetros de Santiago do Chile, e não aceitava visitas nem entrevistas de jornalistas, académicos, aspirantes a escritores ou meros curiosos que por ali passavam.
Até ao passado dia 23 de janeiro, Nicanor Parra foi o poeta de língua hispana vivo mais importante do mundo, o último sobrevivente da grande literatura do século XX neste idioma. Era o mais velho de nove irmãos, num clã de artistas criados no caldo de canções folclóricas que a mãe preparava em casa. Sua irmã Violeta tornar-se-ia numa das mais importantes figuras da música popular do Chile e da América do Sul.
Dos nove Parras, Nicanor foi o único com direito a um percurso académico. Através de uma bolsa chega à Universidade de Chile para estudar Matemática e Física. À poesia chegará cinco anos depois, aos 23, para publicar o seu primeiro livro: “Cancionero sin nombre”, poemário que abnegará ao longo da sua vida apesar de lhe ter valido na altura uma menção da nobel Gabriela Mistral, dizendo que Nicanor era “o futuro poeta do Chile”. Durante a década de quarenta, Parra viaja aos Estados Unidos, para especializar-se em mecânica avançada na Universidade de Brown e posteriormente em Oxford, na Inglaterra, como bolseiro do Conselho Britânico, onde realiza um doutoramento em cosmologia.
É no Reino Unido que prepara o livro que irá mudar para sempre o rumo da poesia hispano-americana: “Poemas y antipoemas”, influenciado pela ironia, pelo humor cínico e a confusão citadina, propondo uma abordagem nunca antes vista nas letras da América do Sul. O antipoema seria, em essência, o oposto do cânone nerudiano e dos gestos heroicos e desejos românticos que povoavam a poesia em espanhol. Parra preferia o discurso de rua, as pequenas frustrações do quotidiano, o desequilíbrio mundano e chistoso da própria existência.
“Poemas y antipoemas” é publicado em 1954 pela Editorial Nascimento. Dos seus adeptos iniciais, para além do próprio Pablo Neruda, destacam-se figuras como Allen Ginsberg ou Lawrence Ferlinghetti, que mais tarde o iria publicar nos Estados Unidos sob a sua chancela City Lights Books. O crítico Harold Bloom terá dito na sua escrita, Parra “entrega-nos uma individualidade inquieta por ela própria e pelos outros. É, indubitavelmente, um dos melhores poetas do Ocidente”. Num artigo para o New York Times, Alexander Coleman avisava: “Não se enganem: Nicanor Parra é um poeta (ou anti-poeta ou qualquer coisa) de total controlo e total grandeza.”
Mas para Nicanor Parra a poesia estava em qualquer lugar menos nos versos dos poemas. Os que conviviam com ele dizem que manteve a sua sagacidade e astúcia até aos últimos dias, e era isso que lhe dava vida. Por essa razão nunca faltou gente a argumentar que Parra envelhecia ao contrário, não como a personagem de aquele curioso conto de F. Scott Fitzgerald, mas como alguém que passa a vida na procura, por vezes brutalmente honesta, por vezes irónica a um ponto irrisório, de aquilo que é mais essencial ao humano. Essa procura verteu-a em tantas áreas que se torna difícil enumerá-las. Deambulou versado como só ele soube ser nas ciências exatas, nas letras e nas artes plásticas. Ensinaria até aos 82 anos, dando aulas de literatura aos alunos de engenharia da Universidade do Chile.
Os galardões e as cerimónias chegariam de década em década, com a prenúncia da sua morte, apesar de esta se fazer demorar. Recebeu em 1991 o Prémio de Literatura Juan Rulfo, no México. Em 2001 foi a vez do Prémio Reina Sofia de Poesia Ibero-americana e em 2011, aos 97, foi galardoado com o Premio Cervantes. A guerra contra pedantismo lírico combateu-a desde dentro, desafiando o status quo das letras hispanas e puxando os limites da sua própria poética vezes sem conta. Formalizou elementos da poesia que existiam há muito, mas foi ele quem lhes deu um desígnio. “Os poetas desceram do Olimpo”, advertiria no seu “Manifiesto” de 1963. Porém, com o passar do tempo esta tarefa, tanto na poesia como em qualquer outra área da vida, viu-se complicada pelo seu estatuto, pois Parra tornara-se ele próprio uma instituição das letras e um espelho do último século de história do Chile. Da mesma forma, o facto de não se ter expressamente distanciado da ditadura de Pinochet valeu-lhe um sem fim de críticas. Afinal de contas, para Parra, qualquer governo seria uma forma de ditadura. Na sua exposição de “artefactos visuais” de 2006, chamada “Obras Públicas”, o autor apresentava uma instalação com recortes de todos os presidentes do Chile enforcados.
Um poeta é alguém que cristaliza pensamentos e emoções de uma forma que os seus leitores não seriam capazes de articular por eles próprios. É isso que torna a poesia de Parra tão fundamental. Na sua missão brava de destruir os floridos que povoavam a literatura de aparelhos desnecessários, de destruir conceitos com o intuito de chegar ao âmago da arte literária, influenciou gerações e gerações de artistas e escritores: o quase nonagenário Alejandro Jodorowsky, o poeta Enrique Lihn, os míticos Ricardo Piglia e Roberto Bolaño, apenas para citar alguns. “Durante meio século/ A poesia foi/ O paraíso do tolo solene/ Até que cheguei eu/ E me instalei com a minha montanha-russa./ Subam, se vos apetecer./ Claro que eu não respondo se descerem/ A jorrar sangue pelo nariz e pela boca” diria Parra num poema do livro “Versos de Salón” de 1962, traduzido ao português por Miguel Filipe Mochila para a antologia “Vou morrer de poesia” da Língua Morta, editada em 2015.
“Por mim não se preocupem. Estou melhor do que quando estava bem. Descansem em paz” propôs o autor como possível epitáfio para alguma das suas mortes, décadas atrás. Resulta difícil consentir que tamanha figura literária desapareça com esta transitoriedade tão súbita e tão humana. 103 anos continuam a parecer pouco para o fugaz Nicanor. Deve ser assim a morte de um anti-poeta.