#MeToo. Também ela, Uma Thurman

Ao “New York Times”, a estrela de  “Pulp Fiction”  e “Kill Bill” falou  pela primeira vez publicamente sobre Harvey Weinstein – e Tarantino, o realizador  que fez dela a sua musa.

Dissociá-la do escândalo que derrubaria Harvey Weinstein parecia impossível, desde o primeiro dia. Daí que, logo que surgiram as primeiras notícias de que o produtor que na Hollywood da década de 1990 ajudou a fazer nomes como o de Quentin Tarantino – e atrás dele, a sua musa, Uma Thurman – tinha assediado e abusado sexualmente de várias atrizes, os holofotes não tenham demorado a virar-se para ela.

E à primeira pergunta, logo em outubro, Uma Thurman não respondeu, respondendo tudo. “Não tenho um sound bite pronto para si”, disse em declarações ao “Access Hollywood”. “Tenho estado à espera de sentir menos raiva… Quando estiver preparada, direi o que tenho a dizer.” O derradeiro aviso viria num post no Instagram no final de novembro, com um desejo de feliz dia de Ação de Graças para todos – todos, “exceto tu, Harvey e todos os teus conspiradores perversos”. “Estou feliz por isto estar a ir devagar. Não mereces uma bala. Fica atento.”

As respostas vieram este fim de semana, num artigo publicado no “New York Times” que Maureen Dowd titulava “É por isto que Uma Thurman está zangada” e que começava: “Sim, Uma Thurman está furiosa. Foi violada. Foi sexualmente abusada. Foi desfeita em aço quente. Foi traída e manipulada por aqueles em quem confiava.” E uma chamada de atenção para não ser uma descrição de uma cena de “Kill Bill”, mas de uma realidade tão “amoral, vingativa e misógina” quanto a ficção de Tarantino. “Usei a palavra ‘raiva’ mas estava mas estava mais preocupada com não chorar, para dizer a verdade”, revelou agora. “Não era a primeira numa história que sabia que era verdade. Portanto o que viram foi apenas uma pessoa a comprar tempo.”

Vem então a descrição de como só depois de “Pulp Fiction” (1994) começou a conviver com Harvey Weinstein e a sua mulher, Eve. “Conhecia-o bastante bem antes de me ter atacado. Costumava passar horas a falar-me de trabalho e a elogiar a minha cabeça, a validar-me. Talvez isso me tenha feito ignorar os sinais de alarme”, reconhece explicando que o via como o seu herói. “Nunca fui do tipo bonitinho dos estúdios. Ele percebeu logo o tipo de filmes e de realizadores certos para mim.” 

Os encontros nos hotéis

O primeiro encontro com contornos embaraçosos, em que diz não se ter sentido imediatamente ameaçada (“achei que estava só a ser idiossincrático, uma espécie de tio maluco, excêntrico”) aconteceu num hotel em Paris em que a conduziu do seu quarto a uma sauna, que terminou com um reparo de Thurman, completamente vestida: “Isto é ridículo, o que é que estás a fazer?” Weinstein ficou nervoso e saiu. Mas o mesmo não aconteceria da vez seguinte. Num outro hotel, em Londres: “Empurrou-me. Tentou pôr-se em cima de mim. Tentou expôr-se. Fez todo o tipo de coisas desagradáveis. Mas na verdade não chegou a forçar-me […]. Fiz de tudo para conseguir pôr o comboio de novo na linha. A minha linha. Não a dele.” No dia seguinte, recebeu um ramo de rosas amarelas, os assistentes de Weinstein começaram a telefonar-lhe para conversar sobre novos projetos, e Thurman achou que o melhor seria voltar a encontrar-se com ele para resolver tudo.

Regressou ao hotel e, assim que ficaram sozinhos, diz tê-lo avisado: “Se fazes o que me fizeste a outras pessoas juro-te que perdes a tua carreira, a tua reputação e a tua família.” E não se lembra de nada do que aconteceu entre esse momento e ter encontrado, de volta, à saída do elevador, a amiga que a tinha acompanhado, Ilona Herman – que, ouvida pelo “New York Times”, recorda que Thurman estava “completamente descontrolada”, que a levou para casa “a tremer” e que, assim que conseguiu falar, lhe contou que o produtor tinha ameaçado destruir a sua carreira.

Os cúmplices

Na entrevista, feita em duas noites, Thurman acusa ainda a agência que a representava à época, a Creative Artists Agency – que entretanto emitiu já um comunicado com um pedido de desculpas -, compactuava com os comportamentos predatórios de Weinstein.

Mas não deixa ela própria de fazer o seu mea culpa: “Sou ao mesmo tempo uma pessoa que foi sujeita a isto e uma pessoa que depois se tornou parte da nuvem que o encobriu, é uma divisão super estranha.” E ainda: “O sentimento complicado que tenho em relação a Harvey Weinstein tem a ver com quão mal me sinto por todas as mulheres que foram atacadas depois de eu ter sido. Sou uma das razões pelas quais uma jovem rapariga caminharia para o quarto dele sozinha, como eu fiz. O Quentin usou o Harvey como produtor executivo do ‘Kill Bill’, um filme que simboliza o poder feminino. E todos estes cordeiros caminharam em direção ao massacre por estarem convencidos de que ninguém que chegue àquela posição lhes faria algo ilegal. Mas fazem.”

Nada disto foi negado por Weinstein, entretanto internado numa clínica no Arizona, que através dos seus representantes pediu desculpas à atriz, dizendo que “interpretou mal os seus sinais”. Enviou ainda ao jornal uma série de fotografias dos dois juntos em festas e estreias de filmes.

O que Thurman alega é que tolerava a susa presença nesses ambientes controlados – e que a partir de certa altura assumiu que tinha “passado a idade do espectro de abusos” de Weinstein. Conta ainda na entrevista que, depois de questionada por Tarantino sobre a distância que mantinha em relação ao produtor, teve que lhe recordar os episódios dos hotéis, que já lhe tinha contado, para que o realizador finalmente o confrontasse.

E também de Tarantino Thurman diz, meses depois desse episódio, ter sido vítima. “O Harvey violou-me, mas não tentou matar-me”, recorda a atriz sobre o acidente que, na rodagem de “Kill Bill” a deixou com sequelas para a vida, depois de Tarantino a ter obrigado, contra a sua vontade, a conduzir a 70 Km/hora um descapotável com problemas mecânicos. 

Era dessa cena a imagem que em novembro acompanhava o seu aviso a Weinstein e àqueles que o protegeram. “Foram precisos 47 anos para parar de dizer que pessoas que foram más para mim me amavam. Levou muito tempo porque, desde pequenas, somos levadas a acreditar que a crueldade e o amor estão de alguma forma ligados. É dessa era que temos que sair.”