Papa em retiro ‘made in portugal’

Tolentino Mendonça foi convidado por Francisco para orientar o retiro quaresmal que começa este domingo. Não será o único português: D. José Saraiva Martins, há 60 anos no Vaticano, contou ao SOL que também estará presente. Pessoa será citado nos sermões. 

É a primeira vez que um padre português orienta o retiro do Papa na Quaresma, foi uma notícia muito boa». 

D. José Saraiva Martins, de 86 anos, atende o telefone na sua casa no Vaticano e explica que, fora essa novidade, são exercícios espirituais «normais» aqueles que a partir deste domingo juntarão alguns membros da Cúria na Casa  do Divino Mestre, em Ariccia, localidade a pouco mais de uma hora de carro do centro de Roma. O cardeal português há mais tempo na Santa Sé também estará presente, pelo que já serão dois a falar português. «Se haverá outros portugueses isso já não sei, depende de cada um», sorri. Se bem que a maior parte do retiro será em silêncio como manda a tradição dos jesuítas, a meditar.

O convite ao padre José Tolentino Mendonça para orientar o habitual retiro quaresmal que Francisco optou por levar, desde o início do pontificado, para fora do Vaticano – marca da prática  jesuíta de fazer exercícios espirituais fora dos locais onde habitualmente se reside e trabalha – veio a público no final de janeiro e nos últimos dias foram sendo conhecidos mais detalhes.

Sabe-se que foi o cardeal Gianfranco Ravasi,  presidente do Conselho Pontifício da Cultura, a propor o nome do sacerdote português ao Papa. «Penso que é um belo testemunho da capacidade criativa que a Igreja e a cultura portuguesas têm», disse Ravasi à Agência Ecclesia, explicando que as reflexões de Tolentino Mendonça são conhecidas na Cúria, não só por ser consultor do Conselho Pontifício para a Cultura da Santa Sé mas também porque tem os seus livros publicados em Itália e publica regularmente crónicas no jornal católico italiano Avvenire. Foi precisamente nesta publicação que Tolentino Mendonça, de 52 anos e natural da Madeira – com quem o SOL não conseguiu chegar à fala nos últimos dias – discorreu com detalhe sobre a missão que lhe foi incumbida pelo Papa. Numa crónica publicada esta semana, o padre que é vice-reitor da Universidade Católica de Lisboa vai direto ao assunto e explica o que dirá a Francisco nos exercícios espirituais que começam este domingo pelas 18h e decorrem até dia 23, sexta-feira. «Quando o Santo Padre quis falar comigo para que colaborasse nos Exercícios da Quaresma, disse-lhe que sou apenas um pobre padre e é a verdade. Encorajou-me a partilhar da minha pobreza. Ocorreu-me então propor um ciclo de meditações muito simples sobre sede, intitulado ‘Elogio da Sede’», escreve Tolentino Mendonça, recordando ainda que ao longo dos 25 anos da sua vida de padre tem trabalhado sobretudo na esfera do pensamento e cultura, onde a sede de respostas é grande. «Se há um lugar em que a Igreja se parece com um hospital de campanha – para pegar na mais do que oportuna imagem do Papa Francisco – é precisamente este, onde as questões são exigentes e continuas, a procura de significado é intensa e onde a fome de Deus está, claro, latente, mas também escondido numa dor humana que nem sempre é confessada, num grande vazio, muito sofrimento, no conflito ou na solidão na forma de lidar com a vida ou com a fé», escreve ainda o padre, numa alusão à ideia de Francisco de que a Igreja deve ser um local que cura feridas e aquece os corações dos fiéis. «Ouvir já é em si uma maneira de cuidar, uma maneira de lidar com as feridas do coração humano. Um padre não precisa necessariamente ser um megafone. Muitas vezes, o que Deus lhe pede é ser uma antena humilde», continua Tolentino Mendonça na crónica, que remata com a ideia de que a sede é um tema bíblico e ao mesmo tempo um «mapa real, muito concreto», que ajuda a ficar atento ao quotidiano e chegar ao coração do Homem. «Interessa-me sobretudo uma espiritualidade no quotidiano», conclui.

Silêncio, até às refeições

A participação nos exercícios espirituais não é obrigatória mas estão abertos aos membros da Cúria e habitualmente Francisco, que neste período não terá outros compromissos públicos como as audiência habituais no Vaticano, faz-se acompanhar dos seus colaboradores mais diretos. A viagem para Ariccia é feita de autocarro. A casa fica num monte e é rodeada de um bosque, ideal para as meditações e com uma vista para um enorme lago.

O início do retiro está marcado para as 18h de domingo (menos uma hora em Portugal) e a primeira reflexão do padre Tolentino Mendonça tem como título ‘Aprendizes do Espanto’.  Diariamente haverá duas meditações, num total de dez preparadas pelo padre português, além de uma celebração da missa pelas 7h30 e, ao final do dia, a oração das vésperas e a adoração eucarística.

Greg Burke, porta-voz do Vaticano, explicou ao SOL que se trata de um retiro de silêncio, inclusive às refeições. Ao todo, estarão presentes nos exercícios espirituais cerca de 40 pessoas. Tolentino Mendonça será dos poucos a falar, já que apresentará diariamente as duas meditações, que são «como que uma homilia», explica Greg Burke. 

Os temas das meditações são a ‘Ciência da Sede’, ‘Percebi que estava sedento’, ‘Esta sede de nada’, ‘A sede de Jesus’, ‘As lágrimas contam uma sede’, ‘Beber da própria sede’, ‘As formas de desejo, ‘Ouvir a sede das periferias’ e, por fim, ‘A bem-aventurança da sede’, um caminho que vai desde a descoberta de que se está sedento, ao grito de Jesus na Cruz quando disse ter sede e todo o percurso de conversão a partir da Bíblia, revelou Tolentino Mendonça numa entrevista ao  site Vaticano News onde diz acreditar que o Papa Francisco «sabe identificar a sede que há no coração humano e no coração da Igreja».

Já à Radio Vaticana, o padre adiantou que também haverá referências literárias e poemas nos sermões, ou não fosse a poesia um pilar da sua obra. «Emily Dickinson disse que a sede ensina o caminho da água, acredito muito nestas palavras. (…) A literatura é muito real, não é abstrata, é feita de personagens e palavras poéticas que estão próximas da nossa experiência humana, não é ideológica, representa a vida e o mundo como ele é, sem escolher», disse Tolentino Mendonça, deixando algumas pistas: Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Antoine de Saint-Exupéry e o italiano Tonino Guerra serão alguns dos autores citados. Greg Burke disse ao SOL que não é habitual a publicação das meditações, mas é uma questão a considerar.