Uma obra tão lesta que, nos seus movimentos, provocasse uma crise de identidade à sua própria sombra, num soberbo exercício literário capaz de desenterrar ossos do mesmo chão que o seu fulgor fez tremer. “O Nervo Ótico” é um relato miraculosamente fragmentário, encadeado segundo a mais natural das convicções, e que não perde um minuto para se deixar amarrar a algum dos mais gerais espartilhos das letras. Assim mesmo, pratica uma intolerância radical no que concerne às adiposidades narrativas que tomam conta do estilo de tanto escritores que parecem estar do outro lado de uma linha de valor acrescentado, a tentar sacudir os cobres ao pobre leitor, educado demais para desligar a chamada sem a menor cortesia.
Apresentado como um romance, numa classificação que só pode ser vista como uma homenagem à condição mais difusa e omnívora deste género, este livro de proporções justíssimas marca o primeiro flirt da crítica de arte argentina María Gainza com a ficção. O livro é, na verdade, uma flecha entre géneros, dividindo-se em onze capítulos, “onze incursões furtivas na história da pintura”, um enlace soberbo entre a crónica, o ensaio, o conto, que lhe deixa uma folga para desenhar fluidamente o seu percurso, sem que fique claro o que é autobiográfico e o que é já o recreio dessas patologias íntimas que qualquer inteligência fenomenal desenvolve.
Com o esplendor das exuberâncias dos livros de história, num efeito de decalque admirável de quem se dá ao luxo de ir pelo buffet dos séculos compondo um prato de iguarias que nos faz trocar várias vezes a ordem dos sentidos que privilegiamos, este livro faz a melhor vénia que se possa imaginar a uma vital ideia de cultura. É uma substância viciante que nos assalta com a primeira dose, obra de uma audácia estupefaciente que excita zonas mais recônditas da mente, levando-a para longe desses espaços entretecidos entre o bocejo e o fio de baba.
“Só estiveste em frente de um Hubert Robert no Museu Decorativo. Encontraste-o num corredor estreito, quase secreto, do segundo andar. É uma tela fina e vertical que mostra um grupo de jovens em volta das ruínas do que foi outrora um templo grego. Olhes para onde olhares nesse quadro, o templo em ruínas, a árvore seca, o burro esfomeado, tudo anuncia o fim. A única distração momentânea é esse jogo de alterar a perspetiva de observação. Como aquele cãozinho que depois do bombardeamento de Berlim emergiu de entre os escombros, desenterrou um pequeno osso com o qual brincou um bocado e, quando viu o camião militar que passava a toda a velocidade, se atirou para debaixo das rodas.”
Numa obra que nos devolve à noção de romance como um verdadeiro trabalho de campo, uma forte incerteza sobre o processo, resolvida a par e passo através de intuições arrojadas, saltos de fé e alguns exorcismos, numa espécie de mergulho em apneia, uma suspensão daquilo que se impôs mais por efeito de calcificação, como herança doentia, do que por resistência ao embate.
“Quando estudava História da Arte acreditava obedientemente que El Greco sofria de uma doença dos olhos. Um astigmatismo forte que o fazia ver como via. Agora sei que isso é uma ideia redutora que não consegue explicar a sua cosmogonia, como a epilepsia não explica Dostoiévski nem a tuberculosa, Keats. O que El Greco tinha eram uns ciúmes descomunais. Quando Jerónima de las Cuevas, uma espanhola que engravidou, lhe disse que queria chamar ao filho Miguel Ângelo, os vidros do palácio em Toledo estilhaçaram-se com os gritos: ‘Não sabes, mulher, que esse nome me põe os cabelos em pé?!’ Jerónima não tinha como saber. El Greco encarregara-se de ocultar a lenda em Espanha. Mas em Roma os círculos de arte continuavam a recordar o dia em que, durante uma visita à Capela Sistina, El Greco se horrorizara tanto com os corpos pintados por Miguel Ângelo que se ofereceu para os pintar de novo. Entre eles, os romanos concordavam que o que El Greco não suportava era chegar a tudo sempre mais tarde do que o seu rival.”
Como se vê pelas abusadas citações – mas o que há fazer quando deparamos com um livro cuja maior defesa que se lhe pode fazer é abri-lo ao calhas e dá-lo a ler ao leitor que passa -, estando perfeitamente consciente de que, “mal administrada, a história da arte pode revelar-se letal como a estricnina”, Gainza constrói o seu ‘romance’ como uma visita guiada por um museu cujas paredes têm a consistência porosa da híper memória, dos sonhos. Nestas páginas, que poderiam ser a expansão da vida interior de uma personagem que nos fez virar até ao limite a cabeça a meio de um dos contos de Borges, a tensão vai-se tornando cada vez mais pessoal, como se a voz ao telefone se nos tornasse irrecusável, como se tudo o que fosse concatenando erguesse pedra sobre pedra a paisagem mais abundante daquilo que nos fascina. Este livro é tão desarmante como uma conversa acidental e que se prolongou pela madrugada para acabar num tal grau de êxtase que nos dias seguintes nos provocasse aquele tremor delicado e, ao mesmo tempo, desolador, de uma poderosa ressaca.
Se na sua trama docemente caótica o anedótico abunda, se damos por nós arrebatados com o desfile de curiosidades, daqueles trechos que tanto enlevo nos causam das vidas dos mestres, desde as epifanias e troca de bilhetes com os deuses, às pulhices e aos momentos de fraqueza humana, de desilusão e miséria, tudo isso confabula com os tais momentos de abertura pessoal da autora, ou pelo menos da voz que narra. A certa altura, falando-nos do período em que acompanhava o marido ao hospital enquanto este se submetia a “quimioterapias mortíferas e toda a lista de coisas arrepiantes a que vos vou poupar”, narra-nos o encontro com uma puta que se passeava num vestido vermelho durante a noite pelos corredores do hospital, “os saltos ecoando sobre as lajes geladas; ia de doente em doente, esfregava-se de encontro ao ferro das camas, fazia o que tinha a fazer”. Não cabe aqui antecipar a força monumental deste episódio mas, para arredondar, diga-se que é uma dessas passagens que nos fazem arrumar um livro, depois de o lermos, naquela estante em chamas, ficando de lição para os períodos de cinza que atravessamos vida fora, procurando que, a cada morte, suceda um renascimento.
“O Nervo Ótico” é um desses exemplos que justificam a prodigalidade do mito da literatura sul-americana, e em particular a argentina. Basta lembrar outros sobressaltos recentes com Samanta Scheweblin, Selva Almada ou Mariana Enríquez para nos aventurarmos a ensaiar a hipótese de que este país soube virar a seu favor a condição marginal das suas letras, produzir uma literatura que é tão cativante porque sabe descolar dos exemplos que triunfam no esquema central da república mundial das letras. E a este respeito, aprofundando a sugestão, remate-se com outra citação do livro: “Era o seu desapego terreno que fazia com que não tivesse apreço nem pelo êxito nem pelo fracasso deste mundo. Rousseau não era um artista naïf mas um tipo elevado com uma boa razão para se manter à distância: apercebera-se de que o ar do seu céu mental era mais puro do que o vapor rarefeito que circulava pelos salões de vanguarda. Alguns não suportavam que fosse tão esquivo. Quando Picasso organizou o famoso banquete em sua honra, todos aplaudiram o genial Aduaneiro; e, quando no final da noite se ofereceram para o acompanhar num carinhoso grupo até ao carro, os seus rostos estavam molhados de lágrimas. Depois Picasso, com a crueldade de que fazem gala os cobardes, disse que tinha sido tudo uma piada, une blague. O mesmo Picasso que depois amealhou Rousseaus como se fossem coca-colas no deserto e vinte anos depois, quando teve de pintar a sua ‘Guernica’, se barricou no seu atelier a estudar em segredo ‘A Guerra’ de Rousseau, embora em público nunca o admitisse. Em termos artísticos, as vanguardas receberam mais de Rousseau do que este recebeu delas: seria de esperar que em qualquer momento o recém-chegado adotasse alguns dos tiques dos donos da casa, mas nada disso se verificou.”