Receber um convite do Papa para orientar o retiro quaresmal é algo “esmagador”. José Tolentino Mendonça, que ontem falou publicamente e de forma um pouco mais demorada sobre o desafio que lhe foi lançado por Francisco este ano, disse ainda assim que não houve qualquer crise de inspiração, ou “secura” de ideias – numa alusão ao tema “sede” que escolheu para as meditações que tiveram lugar em fevereiro nos arredores de Itália. Por um lado, porque o Papa, que o convidou pessoalmente, lhe deu carta branca. “Teve a preocupação paternal de me pôr muito à vontade. ‘Olha, tu é que és o padre”, citou o sacerdote português num colóquio que teve lugar ontem na Universidade Católica Portuguesa, onde é vice-reitor. E, depois, porque nunca tinha sentido tanto a força “interceção dos irmãos” para que tudo corresse bem, partilhou.
“Senti que tinha muita gente a rezar por mim”, concretizou Tolentino Mendonça, contando que lhe escreveram de vários países, até a dar sugestões. Por exemplo quando se soube que ia falar da sede – tema que escolheu por ser cristão e amplamente tratado na bíblia mas ao mesmo algo que se estende “para lá da cerca do cristianismo, porque toda a gente entende o que é a sede” – uma das mensagens de apoio chegou-lhe do padre que tratou da causa de beatificação da Madre Teresa de Calcutá, a lembrar-lhe o que a religiosa tinha escrito sobre a temática. Quando lhe respondeu que Madre Teresa de Calcutá ia ser citada, o sacerdote disse-lhe que todas as comunidades de irmãs seguidoras de Madre Teresa iriam estar a rezar por ele durante a semana do retiro, que teve lugar entre 18 e 23 de fevereiro.
“Senti-me um padre a falar para o santo padre” Sem querer entrar em muitos detalhes sobre os dias que passou junto de Francisco, Tolentino Mendonça sublinhou que, nos retiros, o “pregador” não é o mais importante, mas sim o diálogo entre o participante e Deus. Quanto a ter sido, ainda assim, o escolhido do Vaticano para guiar as reflexões, respondeu não ter ficado com ilusões. “Durante as celebrações os nossos casacos ficavam arrumados numa hierarquia. Éramos 90 e o meu casaco era o 89”, brincou.
O sentido de humor do sacerdote português de 52 anos não terá passado despercebido ao Papa, que no final do retiro comentou com ele as diferentes referências que fez ao riscos de se viver “em piloto automático”. A propósito, Francisco partilhou que uma oração que faz há 30 anos é uma prece de São Tomás Moro a pedir precisamente isso: bom humor.
Quanto aos hábitos do chefe máximo da igreja católica durante o retiro, vivido em silêncio inclusive às refeições, Tolentino Mendonça fez apenas questão de sublinhar que o silêncio do Papa é “muito eloquente” e um dos seus principais testemunhos. “O testemunho que dá em estar em silêncio, longos tempos em oração, é para confiarmos”.
Por responder ficou a pergunta sobre se, durante o retiro, confessou Francisco. “Fui o padre pregador do retiro, que nessa condição está disponível para atender as pessoas que desejarem”, sorriu.
Meditações em livro
O conjunto de dez meditações sobre a sede, em que são citados autores religiosos, textos bíblicos mas também referências literárias – algo que Francisco também apreciou – será publicado em livro no próximo mês, tanto em Itália como em Portugal, adiantou ao i Tolentino Mendonça, que para já não se quer alongar em mais detalhes sobre a semana passada em reflexão na Casa do Divino Mestre, em Ariccia, nos arredores de Roma.
Durante a sessão, questionado sobre se alguma vez se sentiu impelido a usar as suas meditações para “tentar mudar a cúria”, respondeu de forma inesperada: “rezei todos os dias para não cair em tentação.”
A pergunta mais direta sobre as eventuais tensões entre Papa e cardeais chegaria para o fim e de forma inesperada: o núncio apostólico, representante do Vaticano em Portugal, foi o único membro da plateia a intervir e questionou diretamente o padre português sobre se, durante aquela semana em retiro, teria testemunhado alguma “tensão, distração ou um olhar com suspicácia do Papa para os seus colaboradores”.
Tolentino Mendonça afugentou problemas. “O clima é de fraternidade numa grande simplicidade”, disse, considerando ter sido edificante e tocante e ver como os sacerdotes que têm o governo da igreja, cardeais e bispos, estão de joelhos a rezar e são exemplo da força da oração. “Penso que só quem não faz coisas é que não levanta resistências. Quem quer ser e responder aos desafios de Deus e da História tem de levantar resistências aqui e ali. O bispo de Albano disse uma coisa interessante: ‘o retiro espiritual é das reformas mais importantes do Papa Francisco’. As reformas não acontecem por fora, acontecem no espírito. E o clima que ali testemunhei foi de um amor ao Santo Padre, que na sua humildade é mais um mas é o garante. O clima é um clima de unidade no espírito”, concluiu.