Luís Filipe Castro Mendes. As amenidades de um cortesão no palácio da lírica

Tendo escolhido este momento para lançar a reunião da sua obra poética, o ministro da Cultura não deu pela ironia de ter pedido para ser ouvido, por um momento ainda que breve, apenas na condição de poeta. Pois façamos-lhe a vontade

Antes de metermos a colher nesta sopa de cavalo cansado, detenhamo-nos num ponto prévio. Luís Filipe Castro Mendes quis, ao que parece, pendurar a toga de sua excelência, pôr de lado o estatuto de ó-senhor-ministro que diz como se repartem as batatinhas caídas da mesa orçamental e lançadas aos da Cultura. E os motivos dessa baixa? Não é que o poeta que sua eminência chutou lá para os fundos de si na hora de assumir o leme da Nau da Treta também é gente. E nenhuma hora melhor que esta para ver os seus bordados sonoros emoldurados em Obra reunida. Mais um tijolo para o muro que confina o quintal de consagrados da Assírio & Alvim. Assim, o pedido prévio que fez ao aceder a uma recente entrevista à Renascença foi esse: que dessem colo ao poeta. Lá se falou um pouco sobre as horas vagas sonhando-se eterno, e como tudo isso levou a um mono de mais de 800 páginas: Poemas Reunidos.

Não vamos agora ser nós a contrariar o gosto que o ministro faz em escapar às suas responsabilidades. Para mais se o que quer é fazer de poeta. Haverá, afinal, em toda a criação bicho melhor adaptado a safar-se no fundo da cadeia alimentar da cultura? E, no estado atual da economia, ele é coisa que, ou bem que morreu, e os fuminhos de incenso já o vão elevando a besta mitológica, ou, se vivo, anda aí escoiceando, alegrando-se daqueles que acerta sempre que lhe vêm com selas. Há ainda a via intermédia: nem morto nem vivo. Essa senhoria de salão, passajando e acariciando as peles que leva mortas aos ombros, enquanto se banha em salamaleques.

 

Sublinhe-se que ao escolher este momento para reunir a sua obra, dificilmente Castro Mendes defende aquela «separação entre a vida pública e o trabalho poético, que vimos exercida no seu máximo rigor por Saint-John Perse». É já de finais de 2013, o texto publicado no blogue que manteve (Tim Tim no Tibet) em que sublinhava este imperativo como «uma higiene de vida fundamental». Mas não iremos tão longe ao ponto de ser parvos para agradar ao senhor. Ou admitimos que, nesta situação, é o autor quem tira benefício da visibilidade que o cargo público lhe oferece, ou, de outro modo, a ação do ministro é de tal modo empenhada e marcante na direção da política cultural que deixa cair para uma nota de rodapé o advento da reunião da obra poética. Acontece que deste ministro se pode dizer que perdia até para um espantalho no esvaziado exercício das suas funções, na medida em que tendo a capacidade de emitir sons, articular frases, vai sendo obrigado a responder pelas coisas que faz, e, sobretudo, pelas que não faz. E o mais sofrível é vê-lo a contorcer-se tão delicadamente dentro da camisa-de-forças, amarrado com cordas e correntes; talvez se sonhe um Houdini, mas na verdade, enquanto se afoga na absoluta irrelevância do seu papel, só o vemos coser desculpas como quem cose as peúgas de um pobre espetáculo de marionetas.

 

Nos dias em que a gravata não lhe apertava a garganta ao ponto de lhe reduzir a voz a um pio, dizia Castro Mendes, na tal entrada do blogue, que «o poeta está tão longe de poder ser o ‘legislador da humanidade’, com que sonhava o adolescente Shelley, como se deve afastar da mistura enjoativa entre a aura poética e outras quaisquer auras, sejam elas a do cidadão exemplar, do lutador indómito, do bruxo da razão ardente ou do marginal maldito, repescado cada fim de semana pelas gazetas». E depois vêm os exemplos maiúsculos mais à mão, aqueles poetas que durante o dia punham as mãos ardentes nos bolsos frios de alguma farda, e cumpriam de forma zelosa as suas funções como o mundo quer: «Para Wallace Stevens era certamente mais fácil não misturar a sua atividade poética com a direção da companhia de seguros para que trabalhava. T.S.Eliot foi funcionário de um banco, antes de dedicar toda a sua vida profissional à edição, e disse sempre que um poeta deve ter uma profissão, porque a poesia é um trabalho intermitente e uma ligação infiel, ao contrário da prosa, que pode perfeitamente profissionalizar-se, conjugalizar-se e até mesmo burocratizar-se». Do ar subitamente amofinado destas frases podeis, caros leitores, inspirar esse distinto travo a ranço com que se detecta um cínico. Mas o ponto a que fazia mira o futuro ministro com esta explanação, e isto após ter sido tachado de «poeta-cônsul» por Abel Barros Baptista («num texto de humor», sublinha Castro Mendes), é que nada obsta a que o poeta, fora dos versinhos, seja um diligente funcionário (i.e. um pau bem mandado). Não viessem assim a apontar-lhe esse risco de andar há tanto tempo a roer os ossos do outro ofício que já não soubesse ver a diferença entre seguir um deus através da estreita lira e obedecer aos protocolos, ficar em sentido junto ao croquete. É até possível que alguns só se encham de uma raiva maior de tanto conter o impulso transgressivo. Mas é boa a suposição de que a diplomacia se infiltra, e torna alguns incapazes dessas extravagâncias que alçam a perna a meio da cerimónia, daquele bocejo que contamina uma sala, criando um concerto de bocejos, fazendo cair no ridículo alguma eminência, dessas azucrinantes, que estivesse palrando.

Sirva-se Castro Mendes dos exemplos que quiser, de um osso sem volta a dar como João Cabral de Melo Neto, com isso não apaga as saudades de Vinicius, do modo como arrumou o fato e desarrumou a vida íntima de todo um país. E também não nos tira do sentido a noção de que os versos que ao longo de uma vida nos assombram são esses urros de sentido sobrenatural que ouvimos uma vez e comoveram o nosso silêncio para sempre. Naquele texto, acusando a beliscadela do outro, este que cuidou sempre para que não houvesse mácula na sua folha de serviços, assume que o seu «rigorismo, ligado à imagem ideal do poeta», o fez sempre recear aquela perigosa mistura das duas esferas, mas defendia-se ali da ideia de que a vida de cônsul pudesse ter feito dele essa coisa que nem é carne nem é peixe. Ora, a hipótese que aqui avançamos é a de que a poesia de Castro Mendes sabe claramente a galinha, por isso é carne. E, no entanto, não deixa de ser preciso algum cuidado, porque às vezes apanha-se uma espinha.

 

Vamos, então, aos Poemas Reunidos. «Ouve: os poemas são alusões/ dolorosas, infinitas. A outros poemas, a Deus,/ a pequenas obsessões pessoais:/ corpo, choro, casa. Ouve». Neste pedido, quase súplica, temos aquela que é a mais sincera arte poética deste autor, e uma indicação preciosa para entender a linhagem em que Castro Mendes se inscreve: a das figuras de segundo plano, a dos que se movem nos bastidores da tradição, inspecionando os adereços, motivando os atores. Não é alguém da equipa técnica, esses sempre alheados das emoções e das questões humanas, mas alguém sussurrando frases encorajadoras para o elenco. Temos aqui uma boa alma, alguém que adora o teatro, mas sem a intrepidez para tentar roubar a cena. Este poeta dá-se por contente podendo conviver com os grandes. Se tivesse de assumir um papel, seria uma dessas personagens secundaríssimas de Jane Austen. Acompanhando a sorte das protagonistas de mãos juntas sobre o peito, esticando e recolhendo longos suspiros, torcendo para que o amor triunfe. Há um certo anacronismo romântico nesta poesia, uns enlevos permanentes, umas enfatuações que arfam e sufocam à superfície de intrigas que adivinhamos bem domésticas, entre o telefone e a janela. «A dor/ ‘antiquíssima, libertando’/ o archeiro do seu arco,/ o tempo do seu peso,/ tornando enfim o corpo/ pura respiração». Logo a seguir diz-nos que: «A poesia/ recupera restos, tonalidades/ desapercebidas,/ a intensidade de uma paixão vazia». Chama-se ‘História Pessoal’ este poema, e é seguido de um outro chamado ‘Do Medo’, em que nos garante: «Quase sempre é o medo/ que nos conduz à poesia». (O plural deve ser majestático.) Há um poema de permeio, e logo retoma o anterior: «Voltando ao medo: o poema// desenha uma elipse em redor da tua voz/ e cerca-se de angústia/ e ervas bravias – nada mais/ pode fazer». É muito isto, o que se anuncia nas primeiras páginas e aquilo com que poderemos contar ao avançar pelos anos e os livros, virar as páginas, colher os incessantes envios, prolongadas alusões, e que deixa claro um desejo imenso de estar à altura dos poetas maiores.

Como versos de espuma de uma maré que se esvazia, esta poesia contém a melodia que uma lapa emprenhou do mar, estando ali nas rochas, junto à rebentação. Não há um sobressalto, não se espere dela movimentos bruscos, imagens numa conjunção lancinante como atos irracionais. O que temos são ritmos saturados, muitas cartinhas à amada, trocando os arroubos pela métrica, a paixão por rimas. E a luz de sonetos como velas orando num campanário, gemendo umas intimidades sacras, com inveja das profanidades que o vento regouga lá fora.

 

Por muito que lhe custe, o aspeto em que o poeta se mostra um virtuoso é no seu domínio dos protocolos, que não só nunca fere, como parece mesmo conduzir alguém pela sua morada, pelos quartos com o nome dos poetas que mais admira, e onde à noite se recolhe a tecer-lhes homenagens infindas, perpétuas glosas. Vemos assim reunida uma obra que não deixa de ser um exemplo de fervor, ainda que beato, uma imensa casa de hóspedes, onde os convidados vão chegando e ali ficam entregues a uma noção da poesia como arte mesureira, a reverência por tudo aquilo que há de exterior nela, e que só retém a abafada impressão que se ouve dela através das paredes quando se põe aos gritos no andar de cima. Isto não impede que, uma vez por outra, nos surja pelo caminho um verso inteiro, vivo, isolado, como um perdido: «Quem ouve o seu próprio coração e alucina/ não conhece paisagem de amor nem casa iluminada». Ou: «Deserto é o sabor da própria sede». Há outros. É uma questão de ter a paciência de um garimpeiro. Por vezes até damos com uma fiada de versos deleitosos, de joelhos, insistindo na sua nobre e inútil devoção: «Adormecemos já os rios no seu curso/ de sombra a emanar da solidão;/ e demorámos o verso, feito turvo/ meandro de água preso em nossa mão».

Não se trata nunca, aqui, como é fácil perceber, de fragilidade ao nível da oficina. Talvez até haja oficina a mais. Demasiadas vénias, um excesso de consciência, um ouvido que se entupiu de melodias alheias, uma pulsação enterrada debaixo dos martelos de outros corações. «Sinais que a vã memória não guardou,/ deixados como sombra entre a ruína,/ a estrema escura e erma levantou/ nos rudes tragos de que se ilumina.// O fogo aviva a luz de mil pesares/ que névoa se me volvem na retina/ e que feitos de enganos similares/ são versos que o viver já desatina.// Sabei que a cinza vil se fez ardor/ maior que o que contém a natureza/ e a desilusão se deu fulgor/ que não cabe no brilho da beleza».

É fácil ir por estas páginas, lendo-as dobrado, perdendo os contornos às palavras, que se tornam membros dormentes de um corpo que parece querer transplantar-se para a música. Só que, nem com muita prática nos ritmos quinhentistas, nem com todo o seu investimento em fazer o português cantarolar, Castro Mendes consegue fazer da língua um piano. O que consegue é entorpecer as palavras: ao fim de uma hora a lê-lo, parece que já não lhes conseguimos ouvir uma frase que faça sentido. Uma sensação de formigueiro deixa-as desajustadas, à bulha num trânsito de ecos, e ficamos, muito portuguesmente, enredados no nevoeiro. Só uma boa noite de sono conseguirá restaurar-nos deste inebriamento lírico, maçador como uma sensação de tontura.