José Carlos Martins. “Propaganda do ministério não se compagina com o que vivem os enfermeiros”

Presidente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses explica os motivos por trás da greve de hoje e amanhã e aponta críticas a Centeno: “Finanças estão a olhar para os gastos na saúde como um custo”

Com que expetativas partem para esta greve?

A ausência de solução para vários problemas criou um enorme descontentamento e indignação dos enfermeiros. O Ministério da Saúde, o Ministério das Finanças e o governo como um todo não dão resposta, o que para nós é um desrespeito.

Um dos pontos que ainda não avançaram é o pagamento do subsídio para enfermeiros especialistas, de 150 euros, dado que até aqui recebem tanto como os enfermeiros sem especialização. Que indicação tem da tutela?

O não pagamento deste suplemento remuneratório é apenas um dos pontos que nos levam a esta greve. O governo já nos deu conhecimento do texto legislativo que está para publicação, pelo que parece estar agora a avançar. Há questões mais amplas em que não há sinais disso, como o descongelamento das progressões na carreira com a contagem dos pontos justamente devidos a todos os enfermeiros independentemente do tipo de contrato de trabalho.

Defendem que devem ser contabilizados pontos desde que ano?

No caso dos enfermeiros, trata-se de contar 1,5 pontos por cada ano de serviço e que isso seja feito desde 2004 para efeitos da progressão a partir de janeiro deste ano. Com a greve, também queremos que seja publicado o acordo coletivo de trabalho para os enfermeiros em contrato individual de trabalho (CIT), que foi assinado a 12 de janeiro. Passaram dois meses… Uma terceira questão que neste momento é dramática nos serviços prende-se com as contratações de enfermeiros. 

Pedem a contratação imediata de 500 enfermeiros este mês e de mais mil entre abril e maio.

Neste momento há uma carência brutal, o que depois se reflete em centenas de horas extras que ainda não estão a ser pagas. Se formos, por exemplo, ao Centro Hospitalar de Lisboa Central, devem aos enfermeiros cerca de 140 mil horas.

Há a garantia de que essas horas serão pagas e não continuarão apenas a ser usadas como banco de horas, para serem gozadas mais tarde?

O governo já aceitou numa circular que era para pagar a partir de 31 de dezembro de 2017, só que as instituições não cumpriram porque não têm financiamento. Portanto, os enfermeiros continuam a acumular horas sem receber. Exigimos que tudo o que fosse horas a haver fosse pago em março e em abril.

Há horas por pagar desde que ano?

Ninguém consegue dizer desde quando. O que o sistema informático nos dá é o total por enfermeiro. Sabemos que a nível nacional são milhares de horas em dívida. A questão de fundo é esta: devem-nos estes milhares de horas e, ao mesmo tempo, continuam a sair dezenas de enfermeiros dos hospitais, o que exige mais contratações. E os ministérios da Saúde e das Finanças continuam sem o admitir. Só no Centro Hospitalar de Lisboa Norte, desde janeiro saíram 58 enfermeiros e só foram autorizadas nove contratações.

Saíram para onde?

Para o privado, para o estrangeiro.

Em relação ao privado, a diferença salarial é grande?

É muito variável. Os salários, em regra, são mais baixos para quem inicia funções, mas para enfermeiros com vários anos de experiencia e competências em algumas áreas pagam mais. Tem havido várias saídas e, em muitas zonas do país, as autorizações para contratar são extremamente insuficientes face ao que são as solicitações das administrações. Posso dar-lhe outro exemplo: o próprio conselho de administração da Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano, em Santiago do Cacém, assume que faltam 100 enfermeiros; contudo, o Ministério da Saúde não autoriza contratações e inclusive, entre ontem e hoje, estão a ser despedidos dez enfermeiros, de vários serviços, porque não lhes renovam os contratos.

O governo tem sublinhado que há um aumento dos profissionais de saúde no SNS, incluindo enfermeiros, e os dados publicados no portal do SNS apontam nesse sentido [em janeiro de 2017 havia 40 752 enfermeiros no SNS e há dois meses eram 41 525]. 

O Ministério da Saúde tem utilizado a propaganda do aumento do número de enfermeiros, mas depois há uma falta de transparência nos dados. Os dados que o ministério publica no Portal do SNS traduzem realmente um aumento dos enfermeiros. Mas qual é a fonte de informação para publicar esses dados? O que nos foi referido é que essa informação vem do número de vencimentos pagos a enfermeiros. Acontece é que temos muitos enfermeiros em contratos de trabalho de funções públicas que estão ausentes temporariamente, seja por gravidez de risco, baixa ou doença prolongada, e, de facto, o vencimento é pago, mas os enfermeiros não estão lá. 

Não é a Segurança Social a pagar nesses casos?

Quem está em funções públicas, o vencimento é pago pelo Ministério da Saúde. Só os enfermeiros com contrato individual de trabalho é que recebem pela Segurança Social, como no setor privado. Portanto, é isto que explica a diferença e, garantidamente, aqueles dados, tendo como fonte o sistema de vencimentos, incluem mais de 1000 enfermeiros que não estão ao serviço. E há outro ponto que importa sublinhar: quando dizemos que o ministério não autoriza contratações em número suficiente para repor as saídas, isso seria o mínimo perante o que é hoje a realidade dos serviços.

O trabalho está a tornar-se mais pesado?

Vários estudos têm mostrado que a idade e o perfil dos doentes se alteraram muito nos últimos anos: hoje, a grande mancha de doentes internados são pessoas idosas e muito dependentes, que precisam de muito mais cuidados de enfermagem. Mais de 80% dos doentes de medicina têm mais de 76 anos e várias morbilidades. E tudo isto contribui para um grande grau de exaustão entre os enfermeiros. Nas medicinas do Garcia de Orta ou do Santa Maria há macas nos corredores e os números nos enfermeiros são os mesmos ou estão reduzidos no turno da tarde. E depois ouvimos sistematicamente o governo dizer que há mais enfermeiros… Não se compagina o discurso de propaganda por parte do Ministério da Saúde e a realidade que cada enfermeiro vive nos sítios onde está.

O presidente da Associação dos Administradores Hospitalares escreveu esta semana que “o Ministério das Finanças trata as instituições de saúde como suas repartições, aplicando as suas terapêuticas de um boticário para o controlo dos custos: restrição de tesouraria e adiamento burocrático da despesa”. 

E é verdade.

Entendem que o ministro da Saúde devia ter uma posição mais assertiva ou é um problema imputável ao governo como um todo?

O que se passa neste momento é que o Ministério das Finanças está a olhar para os gastos na saúde como um custo, não como um investimento na resposta e na melhoria das condições das pessoas para continuarem a trabalhar e representarem menos custos à medida que vão envelhecendo. O ministro da Saúde, neste momento, daquilo que nos é dado apreciar, não tem uma posição política que lhe permita fazer valer as suas posições. E com isto há uma degradação brutal da capacidade de resposta do SNS.

Os médicos pedem honestidade nas negociações. O SEP diz que o Ministério da Saúde não concretiza os compromissos assumidos. Esta crise é reversível?

Naturalmente que o caminho de degradação do SNS e de ausência de resposta aos profissionais é sempre reversível, depende da posição do governo. Agora, a manter-se assim é que não é mais sustentável. 

Na vossa nota explicativa sobre a greve dizem que a pressão para os enfermeiros não aderirem à greve é ética e legalmente reprovável. Há relatos dessas pressões?

Já houve mais. Não é uma mancha brutal no país, mas continua a haver algumas pessoas ligadas às administrações que querem ficar bem perante o patrão e carregam nos mais frágeis.

Têm mais alguma ação em vista? 

Neste momento avançámos com a greve e esperamos, no pós-greve, que haja uma resposta ao nível da política do governo. Se não houver, continuaremos a ter formas de luta.

O ministro da Saúde disse esta semana que o facto de os médicos terem adiado a greve de abril para maio dá mais tempo para negociar e conversar. Foi-vos pedido tempo? 

Há várias coisas em andamento e essa pode ser uma mensagem que o senhor ministro, politicamente, pode tentar fazer passar. Um dos 15 pontos reivindicativos do sindicato tem a ver com a negociação da carreira de enfermagem. Sobre isso, há um protocolo negocial e iremos desenvolver negociações. Isto está em andamento. Sobre o pagamento aos enfermeiros especialistas, exigíamos o pagamento em março e não está a ser pago, mas o projeto legislativo já está para publicação. Agora, contratações, o acordo coletivo de trabalho, as horas extra… há um conjunto de questões em que não há resposta política por parte do Ministério da Saúde. Estamos num ponto em que estamos a negociar coisas, mas temos de exigir outras.

Falou de degradação e da insatisfação dos profissionais, mas a situação está pior do que no tempo da troika?

A situação global não está pior, mas isso não depende do Ministério da Saúde. Se está alguma coisa melhor, prende-se com a política geral de reposição das coisas tiradas, isto relativamente aos profissionais. Mas, simultaneamente, o Ministério da Saúde tem deixado avolumar problemas, nomeadamente a carência de enfermeiros, e não há iniciativas para o resolver. E em relação ao SNS continua-se numa lógica de emagrecimento e dificuldades e, ao mesmo tempo, de desvio de dinheiro para o privado.

Os indicadores mostram, porém, que o SNS tem feito sistematicamente mais consultas e cirurgias.

Sim, só que o volume de dinheiro que tem vindo a desaguar para o privado tem vindo a crescer. Isto quer dizer que o aumento das necessidades da população é uma evidência. Face a isso, o SNS tem aumentado a sua produção, mas isso não é suficiente para acomodar toda a procura e, por isso, as pessoas deslocam–se para o privado.

Sentem que ainda há uma desvalorização do trabalho dos enfermeiros no sistema de saúde, nomeadamente em relação aos médicos?

Independentemente das comparações com outros profissionais, hoje há uma profunda desvalorização económica do trabalho dos enfermeiros face à sua formação, competências e o seu papel de relevo no SNS. E não é por sermos o maior grupo profissional, somos nós que asseguramos o funcionamento ininterrupto dos serviços. Os médicos estão nas urgências e nos cuidados intensivos mas, nos serviços de internamento, são os enfermeiros que estão 24 sobre 24 horas nos serviços e chamam outros profissionais quando é necessário. Portanto, há aqui uma desvalorização económica dos seus salários, que não acompanharam a evolução de competências, e é esse tratamento subjetivo que avassala a enfermagem.

Lá fora, os enfermeiros já têm uma remuneração e mesmo um prestígio diferente dentro das instituições?

Depende muito do contexto de cada país, sejam fatores culturais ou a perspetiva sobre a paridade das profissões, mas uma coisa é clara: o salário dos enfermeiros portugueses continua muito longe daquilo que são os salários médios que pagam nos países da zona económica europeia e, por isso, os enfermeiros emigram, não é só por ausência de emprego em Portugal. Temos muitos enfermeiros empregados e com contratos efetivos e que emigram porque encontram lá fora melhores condições de trabalho.

Houve alguma crispação entre o ministro da Saúde e a bastonária dos enfermeiros. Foi contraproducente para as reivindicações dos sindicatos de enfermagem?

Não temos nenhuma apreciação sobre essa matéria.

O surto de sarampo na região Norte tem afetado muitos profissionais de saúde e falou-se de tornar a vacina obrigatória. Como vê o sindicato essa hipótese?

Estando cientificamente comprovada a relevância da vacinação, não vemos inconveniente em que, havendo uma decisão de vacinar todos os profissionais de saúde, os enfermeiros também o fizessem. Aliás, os próprios profissionais de saúde devem dar o exemplo.

Como têm os profissionais vivido este surto? Há preocupação?

Estamos naturalmente preocupados porque, mais uma vez, os enfermeiros são, em regra, os primeiros profissionais que contactam com os utentes, portanto, facilmente podem apanhar esta e outras doenças. Claro que temos consciência do que é necessário fazer para minimizar esse risco e aqui é preciso dizer que, muitas vezes, não há os meios de proteção necessários nas instituições, por exemplo, máscaras e outros.