"Com a implacável paciência/ de uma paixão minuciosa" – lê-se entre os versos que surgem em epígrafe na abertura do livro desde a sua segunda edição. "Da Rosa Fixa", primeiro aparecido em 1978, merece agora uma terceira edição com o alinhamento das obras de Maria Velho da Costa no catálogo da Assírio & Alvim. Aqueles dois versos de Manuel Gusmão apontam um signo sob o qual se irá inscrever a investigação das páginas seguintes. Mal se consegue ver entre os fragmentos, aforismos, uma série de rasgos em intrincada sequência que abrem a custo o seu caminho, lenta, tumultuosamente. Como desastres que ocorrem através da escrita e, daí, retrocedem até revelarem um sentido e se tornarem inevitáveis. "A justiça é o pudor dos teus olhos, anjo devoluto à minha morada, sardónico ante tudo, desamparado tu lá onde ocorre apenas a morte simples, cega." Cada passo tem de ser sentido, de corpo agachado, mãos à frente. Estas prosas não embalam, mas espinhosas, árduas, resistem à circularidade vulgar das ideias que nos trazem habituados, como se pensássemos encadeados uns nos outros. É um efeito de "desescrita", uma vez mais. Talvez porque a razão que contenta o mundo é fraca, é inócua.
Não há muitos escritores capazes de tornar tão claro o seu investimento no acto de romper com o sentido lúdico em que vamos vivendo amestrados, criando um processo de crise, primeiro na própria estrutura que diz, depois naquilo que é dito e, finalmente, ao nível de um pacto que obriga a ler a frase no escuro. Ler perdidamente. Sem grandes certezas, sem nenhuns confortos. Rebelde é uma leitura que não funciona a nosso favor, mas se nos opõe. "Como estamos ligados aos povos a quem aflige uma recorrente secura, o pasmo do orvalho, água indecisa."
Há sempre um degrau que nos falta, um fôlego traído. E estamos só no início. Investigação traduz-se em hipótese abandonadas, numa série de começos, a andar em volta de um alvo obsessivamente, roçando o absurdo. "Revenho-te secreta. Realeza de um lado que houvera de ter outro." É preciso suportar o mistério, viver na sua margem, baixo, ao nível das suspeitas. Até porque muito se aferrolhou já, se fechou por dentro e deixou ouvir apenas a queixa de quem foi levado a isso: "indómita fortuna de doer-se alto, surdina do meu texto latindo".
Este rejeita o fio que conduz e torna possível audácias interpretativas. Sob a ameaça de resvalar para as demarcações do terreno poético – "Que as asas dos anjos são a traça dos deuses decepados, suas mãos que movem, sangrando, lastros." –, estas prosas acabam, em conjunto, por se salvar desse que também é um jogo, que de algum modo entretém ou sacia. Há um tremendo desconsolo neste texto estilhaçado, mas que, no seu labor, ergue uma batida estranha. "Imparável como o espasmo da víscera insistente denominada cuore insano, moves-me." E então, somos de novo chamados aos versos em epígrafe, onde se lê também: "sístole e diástole no duplo coração, /estilhaçando e reunindo no corpo / da noite o sol / cavando no sol imóvel / a explosão a vertiginosa expansão / da noite". A escrita como um transplante, pondo lado a lado, estranhos, dois corações, que se ouvem e se combatem.
"E assentaram uma casa impraticável sobre a palha dos dias." Diz assim, de novo, Velho da Costa. E logo a seguir: "Nada nunca foi ainda comparável. Porque falavam cada um para o seu lado e continente e não havia receituário para o grão pétreo que iam segregando, absortos nos seus modos diversos."
Haverá uma narrativa íntima, um percurso impossível de deslindar. Porque é de uma "arte fechada" que se trata, teria até pouco interesse ir por aí. O próprio esforço e incompreensão, conflito, gera uma aprendizagem. Como sugere a autora, "a revolução é o permanente retrocesso do sim ao seu princípio, deslumbrado". Ou, mais à frente, "revolucionar é aguentar até amar muito mais". É amorosa esta escrita e excessiva ("Há excessos que redundam em espécies tardiamente verosímeis, amáveis"). "Da Rosa Fixa" funciona como um eixo, triturando e alimentando-se do mundo, impreganando-o do seu perfume.