Mais de um século depois de ter começado a coroar pomposamente os escribas e sempre segundo critérios algo insondáveis, distinguindo este contra tantos outros tão esperançosos, para arrecadar prestígio com a mal disfarçada inveja e o encenado desdém dos demais, já era tempo de ser a Academia Sueca a produzir um enredo tão suculento, apimentado por uma série de detalhes sórdidos, qualquer coisa que arrancasse o véu de solenidade e discrição do comité, puxando da sombra para a luz os seus 18 membros, por uma vez protagonistas de uma intriga com fulgor literário.
Se alguns eternos candidatos estão a ficar sem unhas, e já se puseram a roer as dos respectivos anjos da guarda, se há ainda, além desses, um bando de iludidos e taralhoucos que supõem que a Academia funcione um pouco como um sorteio, e julgam, por isso, ter pelo menos as mesmas chances de ganhar o Nobel da Literatura quantas têm de ser fulminados por um raio, o escândalo de abusos sexuais que envolveu o comité responsável pela atribuição do prémio continua a puxar para a sarjeta aquele organismo. Até o rei sueco e a fundação que o financia vieram já assumir publicamente que tinham perdido a confiança na Academia, e que agora o que os deixa nervosos é o perigo de um dos mais influentes prémios culturais do mundo ficar manchado.
Há, felizmente, o outro lado. O dos leitores que seguem deliciados os desenvolvimentos, e a quem se mete um brilho nos olhos face à perspectiva de ruína desta fabulosa operação especulativa no campo literário. Como defendeu o romancista espanhol Javier Marías – desde há uns anos outro dos nomes que circulam na lista das casas de apostas como candidato ao galardão –, o “Prémio Nobel de literatura, ao contrário do que as pessoas acreditam e cada ano é proclamado pela imprensa de todo o mundo, não é um prémio internacional, tendo antes um interesse e repercussão eminentemente locais. Ou, melhor dito, acaba por sê-lo com a passagem do tempo, que tudo assimila e nivela, a ponto de — com umas quantas excepções — os vencedores de tão exaltado galardão não serem muito mais recordados que os de qualquer outro prémio de casino ou parlamento provincial de qualquer país (recebeu-o Malamud ou Singer? Nenhum deles? Os dois?). É bem certo que enquanto a memória não tem que fazer esforço — sobretudo durante o ano de reinado —, os que foram agraciados obtêm algumas vantagens e benefícios: fama instantânea e por isso não duradoura, o próprio dinheiro da Fundação Nobel e das vendas nem sempre assim tão multiplicadas, umas quantas traduções para línguas remotas, uma viagem a Estocolmo em pleno Inverno, numerosos convites para congressos e refeições, algum desfavorecedor barrete com orlas honorís causa, mesa livre nos restaurantes e entradas grátis para as estreias, o assédio momentâneo de políticos e mitómanos (…)” (texto que integra a compilação “Literatura e Fantasma”, entre nós publicada pela Relógio d’Água)
Mas deixemos a arenga e sigamos para a matéria que aqui nos trouxe: a sacanagem. Nesta história temos dinheiro e posição, altos privilégios, gente que veste esquisito, togas, narizes empinados, uma guerra de poder que, aparentemente, envolve boas doses de sexismo, assim fazendo repicar os sinos da época, com um (alegado) predador sexual que, ao longo de mais de duas décadas, terá deixado um rastro caótico à sua passagem, com tantas vítimas quantos os membros que compõem a Academia Sueca. O senhor de que falamos, Jean-Claude Arnault, tem hoje 71 anos, e é descrito pelo “Le Monde” como “uma personalidade cultural de primeiro plano na Suécia”. E esse reino, até aqui pacato, precisou que viesse um estrangeiro, este dramaturgo e fotógrafo francês, para preencher a quota no que toca à vilania. Casado com a poeta Katarina Frostenson, essa sim membro da Academia Sueca, consta que Arnault se gabava de ser o 19.º membro do júri. E há anos circulam rumores de que não só quebrou por sete vezes o segredo quanto ao galardoado com o Prémio Nobel, como terá tido algum papel no sentido de influenciar aquele júri nas escolhas feitas em 2008 e 2014, sendo decisivo para a eleição dos seus conterrâneos Le Clézio e Patrick Modiano.
A questão é perceber se Arnault se faz mais importante do que é, se se incha e, no fim, tudo não é mais do que bazófia, atirando-o para o papel do bufão, ou se é mesmo o vilão que, finalmente, foi desmascarado. Este paralelismo com as tragédias shakespearianas não é uma originalidade deste escriba: foi um editorial do “Dagens Nyheter”, o diário mais vendido na Suécia, que abriu esta linha, comparando o drama que envolve o mais prestigiado organismo cultural com as cenas finais de “Hamlet”. É ali que se fala em figuras sem escrúpulos trocando taças com veneno na boca e cruzando espadas num campo onde tradições e valores ancestrais ainda são respeitados.
Em 2015, a ensaísta e crítica literária Sara Danius tornou-se a primeira mulher a liderar aquela academia real criada em 1786 pelo “rei do teatro”, como era conhecido Gustav III. Desde 1901, este comité tem atribuído anualmente o Prémio Nobel da Literatura, sendo que nalguns anos não houve prémio, e noutros houve dois. Na quinta-feira, após uma reunião de três horas, a secretária permanente da academia (título enganador, uma vez que se trata de um mandato temporário) foi afastada da liderança, isto depois de, na semana passada, três outros membros terem decidido renunciar ao serem impedidos pelos restantes de excluir Katarina Frostenson. Ora, no meio de toda esta bronca, não escapou a ninguém a ironia de tudo ter começado com um homem acusado de abusos sexuais, mas ter sido uma mulher a pagar o preço.
Foi em novembro que uma reportagem no “Dagens Nyheter” levantou o lençol e deixou um cheiro a podre a circular pelo reino, com várias mulheres encorajadas pelo furacão que, iniciado em Hollywood, correu o mundo, na sequência das revelações sobre os abusos cometidos por Harvey Weinstein, com um amplo debate e um grau de consciência mais agudo para este tipo de situações. Em alguns dos casos, o abuso terá ocorrido em apartamentos que pertencem à Academia Sueca, e segundo estas mulheres a sua ligação e influência junto daquele organismo era instrumental à estratégia de Arnault. De resto, juntamente com a mulher, ele dirigia um clube exclusivo em Estocolmo, chamado Forum, e que era frequentado pela nata da cena cultural sueca, com a parte de leão do seu financiamento a corresponder a subsídios da Academia. No ano passado, e em resultado das alegações contra Arnault, o clube fechou portas.
Nas semanas seguintes, com a atenção pública focada no escândalo, soube-se que as primeiras alegações remontavam a dezembro de 1996, altura em que uma jovem artista de têxtil, Anna-Karin Bylund, escreveu ao então secretário permanente Sture Allén, denunciando Arnault por abuso sexual. A carta foi ignorada e o assunto abafado.
A razão por que o escândalo se conhecia há meses mas só agora se produziu este colapso envolvendo a Academia Sueca prende-se com a tradição que a imprensa sueca respeita de não nomear os suspeitos de crimes. Acontece que, neste entreacto, e nos bastidores daquele organismo, tensões que já vinham de trás viram neste abalo uma oportunidade. A nomeação de Sara Danius não caiu bem junto de alguns membros. Segundo a maioria dos relatos, Danius, de 56 anos, não é o género de mulher que se limita a dar cara pelo comité e, no resto, fica contente por dançar a música que os mais velhos põem a tocar. Ao que parece, até ser forçada a sair, ela estava a desempoeirar aquela carcaça e tinha em vista para o seu mandato todo um programa de modernização que terá encontrado resistência junto de dois dos seus predecessores: o historiador e ensaísta Horace Engdahl (69 anos) e o linguista Sture Allén (89 anos). Este último, além de ter recebido e desconsiderado a tal carta, em 1996, era o secretário permanente na altura em que a Academia enfrentou outra das suas raras controvérsias, quando dois dos membros permanentes passaram a uma condição inactiva depois daquele comité se ter esquivado a apoiar publicamente Salman Rushdie quando foi alvo da fatwa, após a publicação de “Os Versículos Satânicos”.
Há um ingrediente principal e que é preciso relevarmos para se perceber como chegamos a esta caldeirada tão pesada para os estômagos que se ficam pelas saladas mais leves do meio literário. O ponto aqui é que a Academia Sueca vem preservando, para o melhor e para o pior, a sua condição de relíquia de um passado aristocrático, tratando-se para todos os efeitos de uma oligarquia mais investida na sua auto-perpetuação do que propriamente em abalar as consciências com as escolhas que faz uma vez por ano, sugerindo o que ler aos débeis leitores que vão apanhando do ar e deste tipo de ondas médias o caminho que devem seguir nas suas leituras.
Se falta algum tempo para o anúncio do novo galardoado com o Nobel da literatura – o que só deverá acontecer em outubro –, é por esta altura que o comité estaria a definir a sua short-list de 20 candidatos ao prémio. Mas, contando com as demissões dos últimos dias, e com aqueles membros que já antes se tinham afastado, não se consegue sequer o quórum de 13 membros para eleger o Nobel. E aqui, puxando os cabelos (quem os tiver), chuchando no que restar das unhas, a gente que vibra com estas alegrias galácticas, diz para o lado: “ai mãezinha, então agora vamos ficar sem o Nobel!” Pois é, a coisa está dramática.
Porque se, em face de tudo isto, a solução óbvia devia passar por dissolver os aristoletrados, mesmo que fosse necessário aplicar pressão para eles largarem o poleiro, o problema aqui é que são os estatutos definidos em 1786 que não dão margem para desbloquear um engulho destes. Os membros são eleitos e depois só a morte pode arrancá-los de lá. Mesmo senis, ainda que a alma houvesse já dado de frosques (como acontece às vezes tão cedo entre as sumidades académicas), podia aparecer lá um desses só com pele para segurar os ossos, e babar sentenças, jogar os dentes fora como dados na mesa daquele casino a tentar acertar com a fortuna que terão os escritores que nos sobreviverão a todos.
Mas não dá. Os membros desta távola, mais quadrada talvez que redonda, e em tempos tidos como “os 18 melhores e mais brilhantes” daquele país mais conhecido pela exportação desses legos de madeira com instruções para, a partir deles, montarmos os nossos móveis e pela literatura policial, não podem fazer mais do que meter gazeta em tudo o que sejam actividades do grupo. Hoje, e mesmo se já só restam 11 membros activos, mesmo não havendo quórum sequer para acolher novos membros, e quando o apoio público a Sara Danius é enorme, ao passo que a confiança nos que ficaram bateu no fundo, não é certo que a Academia venha a ser dissolvida. Para isso, como notou o editor de cultura do “Dagens Nyheter”, Björn Wiman, é preciso que o rei Carl Gustav XVI entre em palco como um deus ex machina e mude as regras do jogo, alterando os estatutos da academia. Essa possibilidade já foi sugerida pelo próprio, e o espetador de telenovelas que pousou o romance histórico ou o policial que estava a ler para seguir esta barafunda, pode bem aguardar pelos episódios das próximas semanas: isto ainda vai dar molho.
Entretanto, o presidente da Academia, Anders Olsson, foi nomeado na sexta-feira como “secretário permanente interino”, numa tentativa de ultrapassar a crise provocada pela demissão, mas o que está em jogo agora é perceber como é que o monarca puxa este pau do mikado sem fazer desabar o prestígio daquela instituição. Porque este assenta na ideia de que os seus 18 cavaleiros cabeçudos representam o que o reino tem de melhor no que toca a poetas, escritores, intelectuais e bruxos. Se o rei lhes retira a qualidade de membros vitalícios, deixa-os sujeitos às jogadas tão conhecidas do meio literário para neutralizar os juízos mais ferozes, mais sérios, menos alinhados. Se há algo que confere aos membros deste júri a condição de “semi-deuses” é o facto de estarem, até certo ponto, escudados dos humores mais febris e mundanos. Assim que o rei lhes retire esta condição excepcional, eles deixarão de ser habitantes de um Parnaso, podendo cozinhar raios e trovões do cimo das suas nuvens, e espicaçar os meros mortais que se desunham para agradar a gregos e troianos, coleccionando posições nas mesas onde se decidem os prémios que não passam de degraus até este.
Já estamos a chegar a algum lado. Falta agora perceber porque é que um comité, apesar de tudo um pouco mais digno do que outras instâncias alinhadas hoje com as mais profanas inclinações de um mundo rendido ao que se vende e, por isso, vende, precisa, noutro aspecto, de uma forte sacudidela para ser ver livre dos seus velhos tiques patriarcais.
No ambiente de intriga e golpes palacianos das últimas semanas, transpiraram alguns pormenores do que tem ocorrido nos bastidores deste organismo que sempre se protegeu fechando-se em copas quanto ao modo como chega às suas decisões. Depois da reunião de quinta-feira, houve um deles, o escritor e jornalista Per Wästberg, que deu com a boca no trombone. Escreveu uma crónica em que comparou o que se passara a “uma negociação de cavalos que sacrificou duas mulheres [além de Danius, Frostenson, que, humilhada, também se afastou dos trabalhos do comité], virando uma contra a outra”. E rematou “é uma mancha na reputação da Academia e não há maneira de limpá-la – e tudo isto por causa de um predador sexual”. (E, no que diz respeito a Arnault, convém dizer que este tem negado todas as acusações, sendo que a procuradoria sueca que investigou o caso não formulou qualquer acusação, seja porque não encontrou provas, seja porque as situações alegadas tinham já prescrito.)
Sara Danius também não ficou calada. Depois de Horace Engdahl, que lidera a facção conservadora, ter dito que a falha da Academia em lidar com todo este processo se devia a um fracasso da liderança, chegando ao ponto, num artigo de jornal publicado na sexta-feira, de dizer que Danius era a pior secretária permanente da história da Academia, ela fez saber que durante o verão fez algo que deu cabo da paciência dos seus opositores. Terá recorrido ao seu alter-ego, “Gittan P. Jonsson”, nas tensas reuniões em que o comité discutia como lidar com a actual crise. E quem é esta personagem surpresa? Aparentemente, uma mulher que vem da região mais a sul do país, alguém que se distingue até pela pronúncia, cerrada, com um sotaque que roça o dinamarquês, e que, “com o cabelo em crista por efeito da laca e uma bolsinha de mão à Margaret Thatcher”, não se limitava a levar a sua avante, mas, no caminho, ainda passava por cima dos galos que pretendem manter a ordem no comité segundo o modelo de uma capoeira.